Reaberta sob alegação de supostas irregularidades na demarcação de terras indígenas, comissão representa ameaça real aos povos nativos, sobretudo os do Norte e Centro-Oeste
Por Rute Pina, no Brasil de Fato/ RBA
Os cinco deputados federais na presidência, vice-presidência e relatoria da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Fundação Nacional do Índio (Funai) e Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) são investigados em inquéritos ou são réus em ações penais no Supremo Tribunal Federal (STF).
Recriada no dia 17 de novembro, a CPI – Funai e Incra 2 é presidida por Alceu Moreira (PMDB-RS) e a relatoria será produzida por Nilson Leitão (PSDB-MT). Os deputados Luis Carlos Heinze (PP-RS), Mandetta (DEM-MS) e Nelson Marquezelli (PTB-SP) são os vice-presidentes do colegiado.
Eles são membros da bancada ruralista e acumulam processos nos tribunais de Justiça estaduais. Os cinco parlamentares também apoiaram a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 215, que transfere ao Congresso Nacional a competência de demarcação de terras indígenas e quilombolas.
A nova CPI da Funai e Incra dá continuidade às investigações na Câmara dos Deputados sobre possíveis irregularidades na demarcação de terras originárias dos povos tradicionais. Os trabalhos da comissão formada em novembro de 2015 foram paralisados em agosto, sem que os deputados produzissem um relatório final.
Segundo o relator, a CPI foi recriada porque a troca da presidência da Câmara impediu a prorrogação de entrega do relatório. “A prova de que há boa intenção da CPI é que ela começou no governo da então presidente Dilma e continua no governo Michel Temer. Não é um problema partidário, as instituições não estão funcionando, tanto que todas as demarcações dos últimos anos foram judicializadas”, disse Nilson Leitão. Ele afirmou ainda que os procedimentos da comissão são modernos e transparentes, “ouvindo a todos”.
No entanto, os trabalhos anteriores foram marcados por protestos de indígenas na Câmara, que acusavam os deputados de marcarem as reuniões da CPI sem antecedência e sem a divulgação dos horários das audiências.
Oposição
No último dia 24, parlamentares da oposição entraram com uma ação no STF contra a comissão. O objetivo dos deputados do PT, Psol, PCdoB, PSB e PDT é anular as atividades da CPI, alegando que não há um fato específico a ser investigado.
Entre os deputados que assinam o documento estão Edmilson Rodrigues (PSOL-PA), Janete Capiberibe (PSB-AP), Nilto Tatto (PT-SP), Marcon (PT-RS), Moisés Diniz (PcdoB-AC), Patrus Ananias (PT-MG), e Valmir Assunção (PT-BA).
Segundo Tatto, a CPI põe em risco direitos conquistados por indígenas e acirra os conflitos por terra. “Uma CPI que a gente chama de ‘fim do mundo'”, disse o petista em coletiva de imprensa.
Para os movimentos populares, organizações indigenistas, lideranças indígenas e quilombolas, a CPI é uma tentativa de criminalização dos movimentos populares em defesa dos povos tradicionais.
José Carlos Galiza, da coordenação estadual das associações quilombolas no Pará, afirma que possíveis irregularidades existentes em alguns processos do Incra são pretextos da CPI, que teria como pano de fundo, na verdade, o objetivo de barrar a titulação dos territórios.
“É uma estratégia da bancada ruralista que quer fazer com que o processo de titulação, que já anda lerdo, não ande. Quanto mais atropelos o Incra e a Funai têm com este tipo de coisa, como a CPI, menos os processos destes territórios vão avançar e madeireiras e outras empresas podem avançar nas terras do povos tradicionais”, disse.
Segundo dados da Comissão Pró-Índio de São Paulo, 92,5% destas comunidades não possuem títulos. Hoje, 1.525 terras quilombolas estão em processo de regularização no Incra.
Em nota, a assessoria da Funai afirmou que o tema da reabertura da CPI é de prerrogativa constitucional do Congresso Nacional, “não cabendo juízos de qualquer natureza”. Já a assessoria do Incra informou que a “autarquia se coloca à disposição da Comissão para prestar os esclarecimentos necessários e colaborar com as investigações”.
Os ruralistas no comando:
Nilson Leitão
É alvo de seis inquéritos no STF, um deles corre sob segredo de justiça e apura incitação ao crime e formação de quadrilha. O parlamentar teria incentivado invasões a terras indígenas.
O tucano também é réu em uma ação penal no STF por crimes de responsabilidade por desvio ou apropriação de bem público. De acordo com a acusação, o parlamentar teria superfaturado a execução de obras de pavimentação e drenagem em trecho urbano da BR-163 de forma a facilitar o desvio de recursos públicos, entre 2001 e 2006, quando era prefeito de Sinop, no norte de Mato Grosso. Ele ainda coleciona outros dez processos que correm em varas do Tribunal de Justiça e no Tribunal Regional Eleitoral do Mato Grosso.
Como defesa, o deputado afirmou que o fato de ter investigações em curso não diminui sua representação parlamentar e obrigações no Congresso. “Fui escolhido para esta relatoria da mesma forma que em outras, inclusive em comissões mistas [Câmara e Senado]. Tenho apresentado a minha defesa de forma serena. Os processos em andamento são do tempo em que fui prefeito, provocados por quem fazia oposição a meu governo na época”, disse.
Leitão chegou a ser preso preventivamente em 2007 durante as investigações da Operação Navalha, da Polícia Federal (PF), referente aos esquemas de corrupção entre a empreiteira Gautama e administradores públicos na cidade de Sinop (MT), na época em que o parlamentar era prefeito do município.
Integrante da bancada ruralista, o deputado não declarou possuir bens em propriedades rurais, mas mais de um terço de sua campanha em 2014 foi paga com recursos da Galvão Engenharia, da família Maggi, maior cultivadora de soja do país e pela Copersucar, maior exportadora brasileira de açúcar e etanol.
Alceu Moreira
Vice-presidente da regional sul da Frente Parlamentar de Agricultura (FPA), o deputado foi propositor do Projeto de Lei (PL) 2479/2011, que transfere a competência de demarcar terras indígenas do poder Executivo para o Legislativo.
Em 2013, em uma audiência pública em Vicente Dutra (RS), Moreira incitou a população local a se “fardar de guerreiros” contra indígenas “vigaristas”. Por causa das declarações, o Ministério Público Federal e a Comissão de Direitos Humanos e Cidadania da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul denunciaram o deputado por racismo e incitação ao crime.
No STF, é alvo de um inquérito sobre o favorecimento da empresa MAC Engenharia e Construções em obra de pavimentação da rodovia RS-494. Foi condenado no TJ-RS por improbidade administrativa. Segundo o deputado, o processo é antigo e “foi devidamente esclarecido, tanto que seu arquivamento já foi solicitado”.
O maior doador de sua campanha foi a Agropecuária Araguari, com R$ 250 mil. O peemedebista recebeu mais de R$ 967 mil de financiadores ligados ao agronegócio. Moreira também recebeu R$ 50 mil do colega de partido e atual presidente, Michel Temer.
Luis Carlos Heinze
Proprietário rural, é investigado em inquérito no STF por causa da Operação Lava Jato, que investiga esquema de corrupção e lavagem de dinheiro com recursos desviados da Petrobras. O parlamentar foi citado nas delações do doleiro Alberto Youssef e do ex-diretor de abastecimento da estatal Paulo Roberto Costa.
No início de 2014, Heinze recebeu o título de “racista do ano” pela ONG inglesa Survival por um discurso em que afirmou que “quilombolas, índios, gays, lésbicas” são “tudo que não presta”.
O grupo frigorífico JBS foi o maior doador da campanha do deputado do PP, com R$ 500 mil. Heinze recebeu pelo menos RS 1,68 milhão de empresas e empresários rurais.
Segundo o deputado, a delação de Yousseff, em março do ano passado, jogou seu nome “na lama, na mesma vala dos corruptos e dos ladrões, sem nunca ter participado de qualquer esquema de corrupção” e que o depoimento do doleiro é “rodeado de contradições sobre o meu nome”.
O parlamentar afirmou que a demora na condução das investigações é “absurda” e ele esteve presente por diversas vezes nos órgãos, como a Procuradoria Geral da República, para cobrar sua conclusão dessas investigações. “Quem, verdadeiramente envolvido demonstraria tanto desejo na conclusão das investigações?”, questionou.
Mandetta
Pertencente à família Trad, uma das mais tradicionais da política no estado do Mato Grosso do Sul, é investigado em inquérito que apura crime da Lei de Licitações e tráfico de influência, relacionados à CPI da Saúde, instaurada na Assembleia Legislativa do Mato Grosso do Sul em 2013.
É alvo de inquérito que apura crime da Lei de Licitações e tráfico de influência, relacionados a fatos investigados na CPI da Saúde, instaurada na Assembleia Legislativa do MS em 2013. A Comissão apurou irregularidades no repasse de verbas do SUS para municípios do estado.
É alvo de ações na Justiça Federal por improbidade administrativa e dano ao erário.
Assim como Heinze, recebeu R$ 15 mil do fazendeiro Cornélio Adriano Sanders, acusado pelo Ministério do Trabalho e Emprego e pelo Ministério Público Federal de explorar trabalho escravo para o cultivo de soja e arroz. Ele próprio foi o maior doador de sua campanha, repassando mais de R$ 580 mil para si mesmo. Sua declaração de bens à Justiça Eleitoral totaliza pouco mais de R$630 mil.
Procurado, o parlamentar não respondeu à reportagem até o fechamento desta matéria.
Nelson Marquezelli
No STF, é investigado em um inquérito penal ajuizado pelo Ministério Público Federal e é réu em duas ações civis públicas no TJ-SP, movidas pelo Ministério Público Estadual, por dano ambiental e improbidade administrativa.
Mais de 40% de sua campanha eleitoral foi financiada pela Brapira Comércio de Bebidas, empresa que tem sede em Pirassununga, cidade do centro-leste paulista, a 230 quilômetros de São Paulo.
A assessoria de imprensa de Marquezelli afirmou que não conseguiu o contato com o deputado, que esta nos EUA em missão oficial.