Brasiliana vol.5 põe em discussão o Brasil Indígena pós Constituição de 1988

“A Constituição Federal de 1988, símbolo jurídico do processo de redemocratização do Estado brasileiro, também promoveu uma alteração significativa no paradigma conceitual e jurídico das políticas indígenas no Brasil. Entre os direitos e garantias estabelecidos para os povos indígenas, a especificidade cultural, o direito à terra tradicionalmente ocupada e à autonomia foram expressamente reconhecidos. Após quase 30 anos da proclamação da Carta Cidadã de 1988, é hora de avaliar como suas dimensões políticas, econômicas e sociais influenciaram os processos e a promoção desses direitos”.

Esta é uma das principais propostas do volume 5 da revista Brasiliana, referente ao segundo semestre de 2016. Publicada pelo King’s College de Londres, a edição temática teve a participação de Maria Augusta Assirati e Carolina Schneider Comandulli, atuando como co-editoras, ao lado de Vinícius Mariano de Carvalho. Abaixo, o Editorial assinado por ambas, seguido do Sumário linkado para a edição. (TP)

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Editorial

Por Carolina Schneider Comandulli e Maria Augusta Assirati

Como fruto de uma parceria que estabelecemos para a promoção de debates sobre os povos indígenas no Brasil, e com o apoio do King’s Brazil Institute, King’s College London, nasceu a ideia da realização de um número especial da Brasiliana – Journal for Brazilian Studies sobre o tema. Na qualidade de pesquisadora do Ciência Cidadã Extrema (ExCiteS) e de ex-Presidente da Fundação Nacional do Índio, aceitamos o convite de Vinícius Mariano de Carvalho, editor-chefe da Revista Brasiliana, para a edição desta publicação que ora apresentamos. O cenário conjuntural da política brasileira no que tange à relação com os povos indígenas representou uma grande fonte de motivação dessa iniciativa.

Segundo o Censo Demográfico do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE de 2010, vivem hoje no Brasil 305 diferentes povos indígenas, falantes de 274 línguas, em cerca de 500 territórios tradicionais já demarcados, segundo fontes oficiais, ou em áreas urbanas, com presença em todas as regiões do país1. O transcurso de mais de vinte e cinco anos desde a promulgação da Constituição Federal Cidadã, marco do processo de consolidação da redemocratização do Estado brasileiro, que promoveu também uma significativa alteração no paradigma conceitual e jurídico da política indigenista no país, recoloca o tema no centro de reflexões e debates. Atualmente, os assuntos respectivos reassumem posição de destaque no âmbito de debates fundamentais acerca das questões fundiária e agrária, da concepção e modelos de desenvolvimento, e dos paradigmas de modelagem político-jurídica da ação do Estado.

Nos últimos anos, tem sido pautada a revisão do arcabouço jurídico positivo vigente em relação aos povos indígenas, por meio de propostas de alteração de dispositivos constitucionais e infraconstitucionais que garantem seus direitos. Nesse sentido, acentua-se a necessidade de expansão de espaços de debate e reflexão crítica sobre o assunto.

Desde a colonização, tanto a história, quanto a literatura oficial, abordaram a temática indígena, como regra, com base em narrativas como as de Padre Antônio Vieira e outros missionários e viajantes, onde se nota uma tendência à essencialização, o que jamais conseguiu definir ou conceituar o que é “ser indígena”. Historicamente, os indígenas foram rotulados de distintas e equivocadas formas, como súditos, vassalos, rebeldes, cruéis, ou bons selvagens, e atravessaram diferentes processos de dominação, como escravidão, extermínio, assimilação, doutrinação, e proteção paternalista. Até a atualidade, são vistos como personagens que vão desde figuras que teriam restado congeladas no passado, até protagonistas de empecilhos ao desenvolvimento socioeconômico. Foram, muitas vezes, invisibilizados pela própria projeção de um pretenso vazio demográfico amazônico. Por vezes, são “idealizados”, como seres “puros”, ou que vivem em “harmonia com a natureza”, etc.

Essas diferentes definições e tratamentos demonstram, por um lado, uma tentativa de definir o que é “ser indígena”, ante a dificuldade de lidar com o desconhecido, e por outro, a intenção de, justamente por esses meios, controlar e dominar “o desconhecido”. Mas essa tarefa não se consumou, pois no âmbito do conceito de “ser indígena”, residem a diversidade e o caráter dinâmico das culturas, que estão em constante transformação.

As narrativas e discursos monoculturalmente construídos ao longo do tempo denotam a predominância de ações voltadas ao domínio e à dominação desse desconhecido conjunto de sociedades indígenas, por meio do policiamento e adestramento de corpos e mentes, da doutrinação, escravização, e eliminação. De igual modo, a tutela, praticada até pouco tempo atrás, também ocupou espaço nesse rol de mecanismos adotados a fim de controlar o “outro imprevisível”.

Contudo, a aproximação entre a História e a Antropologia, sobretudo desde a década de 1970, faz emergir novas perspectivas de conhecimento, a exemplo da etnohistória, que permitiu a realização de transformações nos estudos sobre a história indígena. A legitimação de métodos como a coleta de histórias orais como fonte de pesquisa, contribuiu para deslocar as representações dos indivíduos indígenas enquanto vítimas e coadjuvantes nas construções sociais, para o papel de sujeitos ativos nos processos históricos,

Portanto, o interesse pelo aprofundamento da produção acadêmica, figurando no centro de nossas atenções como doutorandas pelo Departamento de Antropologia da University College London (UCL) e pelo Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra em Portugal, e pesquisadoras do tema, e foi igualmente fundamental para a concretização dessa iniciativa.

Nesse sentido, a expectativa é que a presente Edição Especial da Revista Brasiliana se configure, na atual conjuntura social, política e econômica, como mais um espaço de debates e análises críticas sobre as relações com essas populações no Brasil, bem como sobre expressões indígenas contemporâneas, contribuindo para o fortalecimento das lutas dos movimentos e povos indígenas, e das ações indigenistas. Esperamos, ainda, que a presente publicação possa dialogar e comunicar-se com outros setores e segmentos sociais e acadêmicos não envolvidos direta ou indiretamente com as temáticas indígenas ou indigenistas, como estímulo à amplificação de abordagens interdisciplinares sobre a temática.

O presente número da Revista traz artigos de diversas áreas de conhecimento, assim como outras abordagens que contribuem com o debate por meio de expressões indígenas e entrevistas com organizações e atores envolvidos com a pauta. A Edição está organizada em três partes.

A primeira delas, composta por artigos que abordam distintos aspectos das relações estabelecidas com os povos indígenas ao longo da história, inclui visões acerca de narrativas e discursos construídos em relação aos indígenas, e estudos que passaram a analisar a agência indígena nos processos históricos. Nesse bloco os leitores irão encontrar artigos como os de Barreto, que tratam da construção discursiva do preconceito sobre o índio no Brasil, de Lima da Silva, que trata da visão dos missionários sobre a alteridade no Novo Mundo, de Dornelles & Melo que versa sobre a agência indígena nos processos históricos dos Estados Unidos e Brasil, entre outros artigos que tratam da ação indígena em processos jurídicos e políticos em diversas regiões do país.

O segundo bloco trata da forma como as relações passaram a se estabelecer após o advento dos debates que levaram à promulgação da Constituição Federal de 1988, marco político-jurídico de uma importante alteração do paradigma da política indigenista no Brasil. Ali estão dispostos artigos que versam sobre desdobramentos de mudanças centrais na política indigenista brasileira, ocorridas sobretudo a partir da década de 1980, com a consagração dos princípios da autonomia e autodeterminação indígena e o fim da tutela. A partir desse novo contexto, passam a ser reconfiguradas as relações entre o Estado e os povos indígenas, e a surgir normativas e políticas diferenciadas para essas populações. Temas respectivos são tratados nos artigos de Pacheco de Oliveira, que versa sobre o novo marco constitucional, o de Dourado, que trata da gestão territorial e ambiental, e de Rodrigues, que fala sobre o papel do Ministério Público Federal, com ênfase na educação escolar diferenciada.

Importa destacar que este novo momento permite também a emergência de espaços para a expressão indígena, finalmente abrindo caminho para fazer ouvir suas vozes, afirmar suas identidades, e de figurar como sujeitos protagonistas nos processos de significação do pertencimento a um determinado povo indígena. As expressões indígenas, nos campos da literatura e do cinema, passam, portanto, a trazer à tona novas formas de construção e apresentação de narrativas, expressas, muitas vezes, por meio de autoria coletiva. Sobre essas expressões, tratam os artigos de Rosa, que versa sobre a produção literária indígena e de Nunes, que fala da produção de filmes de autoria indígena.

Por fim, a Seção Varia vem apresentar abordagens de caráter e enfoque não acadêmico, incluindo entrevistas, manifestações e expressões indígenas, e constituindo um conjunto de elementos que permite ao leitor um alargamento de suas perspectivas acerca das temáticas indígenas e indigenistas. Nesse tópico é possível vislumbrar alguns exemplos de como os indígenas têm respondido criativamente e de modo original a situações e condições negativas e adversas a que foram submetidos no processo histórico que vem transcorrendo desde a colonização. Os atuais resultados da organização comunitária dos Ashaninka do Rio Amônia, expressos por meio da entrevista trazida por essa Edição, e o relato da jovem artista e intelectual Daiara Tukano, como indígena que se insere em contexto urbano, ilustram essa afirmação.

Esperamos, pois, que a presente Edição possa servir como ferramenta de incremento à reflexão e discussão de questões centrais relacionadas ao desafio de ser indígena na atualidade, sobretudo, considerando o difícil histórico e a atual configuração da complexa interação das sociedades indígenas com a sociedade envolvente. Forçados historicamente à adesão ao consumo de hábitos e produtos da sociedade dominante, os indígenas são hoje, por essa mesma razão, acusados de abandono de suas formas tradicionais de organização e vida. Soma-se a isso, ainda, o fato de que a recente conquista de direitos pelos povos indígenas no plano jurídico formal, embora ainda demande um enorme conjunto de esforços para sua efetivação na prática, vem sendo submetida ao risco de retrocesso diante da conjuntura desfavorável trazida pela conjuntura político-institucional atual.

De outro lado, os povos e comunidades indígenas emergem, cada vez mais, como atores-chave na solução de desafios que têm afetado o Planeta e a Humanidade na atualidade, tais como as questões relacionadas às mudanças climáticas, à conservação e valorização da sociobiodiversidade, à redefinição dos padrões de relação com a terra, e sustentabilidade de modelos de desenvolvimento. Na consolidação e amplificação dessa percepção pelos mais diversos segmentos sociais, reside a principal contribuição que pode ser ofertada por todos aqueles que acreditam na ressignificação das relações sociais e humanas, a partir da valorização das diversidades.

Fundação Nacional do Índio – Funai (2013) “O Brasil Indígena”. Disponível em: http://www.funai.gov.br/arquivos/conteudo/ascom/2013/img/12-Dez/pdf-brasil-ind.pdf. Levantamento de entidades indigenistas e do movimento indígena indicam que ha mais de 600 terras indígenas a serem ainda demarcadas, incluindo as que não tem nenhum processo administrativo instituído ou que nem constam na lista oficial do órgão indigenista mas que são reivindicadas pelos povos e comunidades indígenas.

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Sumário

EDITORIAL

Editorial – PDF
Carolina Schneider Comandulli, Maria Augusta Assirati

DOSSIER

Marcos Rodrigues Barreto
Felipe Lima da Silva
Maria Florencia Donadi
Soraia Sales Dornelles, Karina Moreira Ribeiro da Silva e Melo
Leonardo Nascimento Bourguignon
João Paulo Peixoto Costa
Fernanda Aires Bombardi, Luma Ribeiro Prado
João Pacheco de Oliveira
Martha Fellows Dourado, Carolina Correa Nóbrega, Fernanda Bortolotto, Ane Alencar, Paulo Moutinho
Geisa Assis Rodrigues
Francis Mary Soares Correia da Rosa
Karliane Macedo Nunes

GENERAL ARTICLES

Vinicius Mariano de Carvalho
Bernardo Borges Buarque de Hollanda
Rubia R. Valente, Brian J.L. Berry
Lucas Amaral de Oliveira

BOOK REVIEWS

Alfredo Bosi (trans. Robert P. Newcomb) (2015) Brazil and the Dialectic of Colonization. University of Illinois Press: Urbana-Champaign, 392 pp.
Jaime Ginzburg – PDF
Reconhecimento dos rios Içana, Ayari e Uaupés, por Curt Nimuendajú. Athias, Renato (Org.) Rio de Janeiro: Museu do Índio-FUNAI; Recife: UFPE, 2015.
Camila do Valle – PDF

VARIA

Entrevista com Márcio Santilli. Realizada no 27 de maio de 2016
Maria Augusta Assirati – PDF
Entrevista com Marta Maria do Amaral Azevedo realizada em 7 de abril de 2016
Maria Augusta Assirati – PDF
Entrevista com Ashaninka Francisco Piyãko, uma das lideranças da Associação Ashaninka do Rio Amônia – APIWTXA
Carolina Schneider Comandulli – PDF
Expressão Indígena – PDF
Daiara Tukano
Foto de Claudia Andujar, reproduzida da internet.
Enviada para Combate Racismo Ambiental por Isabel Carmi Trajber.

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