Remoção de suas terras tradicionais, prisões forçadas e dispersão das famílias foram algumas violações sofridas pelos Krenak no período militar
O Ministério Público Federal (MPF) defendeu o direito de anistia coletiva aos indígenas Krenak. A Câmara de Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais do MPF (6CCR/MPF) lançou nota técnica em que rebate a validade da Portaria 2.523/2008 do Ministério da Justiça, que define normas dos procedimentos para requerimentos de reparações em função de violações estatais cometidas pelo Estado durante a ditadura militar. A portaria estabelece que o pedido de reparação deve ser individual, ignorando a coletividade como principal aspecto do modo de vida dos povos indígenas. De acordo com a nota técnica, tal previsão é inconstitucional e contraria convenções internacionais.
Segundo a nota, no caso dos Krenak, a dimensão coletiva das graves violações a direitos humanos cometidas durante o regime militar é evidente. Em 1972, o povo Krenak foi transferido compulsoriamente de suas terras para a Fazenda Guarani, até então pertencente à Polícia Militar do Estado de Minas Gerais e localizada no município de Carmésia (MG). Apenas em 1997, a etnia conseguiu recuperar parte do seu território tradicional. O deslocamento forçado impediu que o povo Krenak realizasse seus rituais culturais e religiosos às margens do Rio Doce, que chamam de Watu, além de ter provocado a dispersão de diversas famílias pelo território nacional.
Durante o regime militar, foi instalado um presídio, chamado de Reformatório Krenak, para onde foram enviados indígenas de mais de 15 etnias, oriundos de ao menos 11 estados das cinco regiões do país. No reformatório, os indígenas eram mantidos presos por diversos motivos, como ingestão de bebidas alcoólicas, ou simplesmente por terem saído da reserva sem autorização. No local, havia uma espécie de solitária, que os índios denominavam de “cubículo”, onde eram mantidos dia e noite como forma de punição. Assim, criou-se um ambiente de exceção, com trabalhos forçados e prática de tortura, causando ao povo Krenak intensa desagregação social.
O Requerimento 75.002 (pedido de anistia coletiva dos Krenak) foi elaborado pela Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão em Minas Gerais e submetido à apreciação da Comissão de Anistia. A comissão vai analisar o pedido conforme disposto na Lei 10.559/2002, que define condições de reparação aos anistiados políticos.
O texto da Câmara de Populações Indígenas do MPF esclarece que o Requerimento 75.002 visa à proteção de um bem jurídico específico: a possibilidade de existência coletiva do Povo Indígena Krenak enquanto grupo étnico diferenciado. “Negar a subjetividade coletiva aos povos indígenas representaria sua revitimização, bem como a continuidade de prática característica da atuação do Estado autoritário”, destacou a nota.
Segundo a nota da 6CCR, a Corte Interamericana de Direitos Humanos tem decisões com reconhecimento da coletividade indígena na qualidade de sujeito de direitos – exemplo do caso dos Povos Kuna de Madugandí e Emberá de Bayano, no Panamá. Nos casos em destaque, o tribunal internacional considerou a coletividade como parte lesionada para fins de reparação, e não apenas o caráter individual das vítimas.
Constituição
O MPF aponta ainda a inconstitucionalidade da Portaria 2.523/2008. O artigo 8º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias – que prevê o direito à anistia política – não estabelece limitações quanto ao exercício da subjetividade coletiva dos povos indígenas. O texto também destaca o artigo 232 da Constituição, que traz reconhecimento da atuação das comunidades indígenas e de suas organizações como entes personalizados. A partir dos fundamentos constitucionais citados, a nota questiona: “se os povos indígenas, por suas comunidades e organizações, podem coletivamente agir em juízo, não há razão jurídica que os impeça de apresentar requerimento coletivo de natureza administrativa”.
Tratados Internacionais
A 6CCR salienta também que tratados internacionais de direitos humanos reconhecem a coletividade indígena – e não somente os seus membros – como titular de direitos. A Declaração das Nações Unidas sobre Direitos dos Povos Indígenas, de 2007, estabelece, em favor dos indígenas, direitos que podem ser usufruídos tanto a título coletivo como individual, de modo que não se mostra adequada a limitação a uma perspectiva meramente individual, diz a nota.
A nota defende que, após deferimento, pela Comissão de Anistia, do requerimento de anistia coletiva, o povo indígena anistiado deverá ser consultado previamente sobre a forma como deve ser efetivada a reparação econômica prevista no art. 1º, inciso II, da Lei nº 10.559/2002. A consulta prévia e a participaçao dos indígenas nas decisões que interfiram em suas vidas estão previstas na Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho sobre Povos Indígenas e Tribais. De acordo com a convenção, na proteção dos valores e práticas sociais, culturais religiosos e espirituais dos povos indígenas, deve ser considerada a natureza dos problemas que lhes sejam apresentados, tanto coletiva como individualmente.
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