A ‘lição’ das obras da Copa e Olimpíadas – Criação de mecanismos que subordinam o Estado ao setor privado. Entrevista especial com Orlando Alves dos Santos Junior

Patricia Fachin  – IHU On-Line

O cientista social Orlando Alves dos Santos Junior é contundente ao descrever a situação do Rio de Janeiro: “É um caso de escândalo, é a ilustração do que não deve ser feito”. Sua análise vai além: “Nós estamos vivendo um contexto que podemos caracterizar como golpe político, em que as instituições democráticas não foram minimamente respeitadas, e temos um governo ilegítimo do ponto de vista democrático”.

Na sua visão, “as elites que fizeram, deram e sustentaram o golpe estão divididas, com uma parte sustentando o atual governo ilegítimo e outra parte tentando buscar outra solução que, ao mesmo tempo, reproduza e sustente o golpe que foi dado no país”. Santos, em entrevista concedida por telefone à IHU On-Line, observa que a conjuntura é de incertezas, mas aponta que há um grande desafio para as forças progressistas: “Juntar os cacos de uma fragmentação e de uma divisão, também provocada por esse processo político de golpe das elites, e tentar construir ou reconstituir uma alternativa democrática popular para o país”.

Ao analisar a situação em que se encontra o Rio de Janeiro, os descalabros cometidos em nome da Copa do Mundo e das Olimpíadas e, no âmbito da Lava Jato, a ausência de investigação do setor financeiro, da mídia e do Poder Judiciário, Santos afirma que “é muito difícil analisar esse processo sem avaliar os próprios interesses daqueles que estão à frente da investigação”. Considera que Sérgio Cabral não conseguiria fazer o que fez no Rio de Janeiro, em aliança com empreiteiras, “sem uma fortíssima conexão com o Poder Judiciário, com o poder da mídia e mesmo com o poder financeiro”.

Conforme o cientista social, as denúncias que investigam a relação entre o setor privado e os partidos no Brasil deveriam levar a refletir que esse segmento também é pautado por interesses e pela competição. “Está longe de ser o lugar da pureza e da ética, pelo contrário, é o lugar da improbidade, do jogo sujo”, critica. Isso exige um Estado que “seja protegido, seja regulador, fiscalizador e que seja, efetivamente, público na sua maneira de ser e de agir”.

No contexto das irregularidades e da crise atual, Santos acusa que o governo carioca se mostra incapaz de retomar os investimentos em todas as áreas sociais. Sobre o chamado legado da Olimpíada, é taxativo: “Isso mostra que o Rio de Janeiro é um caso de escândalo, é a ilustração do que não deve ser feito, mas muitos fecham os olhos para não mostrar ao mundo quais foram os impactos negativos de sediar uma olimpíada, como aconteceu no Rio de Janeiro”. Alguns dos impactos já são visíveis, passado apenas um ano das Olimpíadas. Para Santos, a cidade está mais desigual, houve um crescimento da pobreza urbana e impactos na mobilidade urbana.

Orlando Alves dos Santos Junior é graduado em Ciências Sociais pela Universidade Federal Fluminense – UFF, mestre e doutor em Planejamento Urbano e Regional pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. Leciona no Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional – IPPUR da UFRJ e é pesquisador da Rede Observatório das Metrópoles. Autor e organizador de mais de dez livros, entre eles As metrópoles e a questão social brasileira (São Paulo: Revan, 2007).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – O senhor foi um dos pesquisadores que denunciaram as megaobras realizadas durante a Copa do Mundo e as Olimpíadas. Considerando as denúncias e delações envolvendo empreiteiras como a Odebrecht e a prisão do ex-governador do Rio de Janeiro Sérgio Cabral, que leitura tem feito da atual conjuntura?

Orlando Alves dos Santos Junior – Há várias questões envolvidas na conjuntura que estamos vivendo e nesse processo relacionado à Lava Jato. Vamos tentar destacar algumas. Em primeiro lugar, independente de Lava Jato, nós estamos vivendo um contexto que podemos caracterizar como golpe político, em que as instituições democráticas não foram minimamente respeitadas, e temos um governo ilegítimo do ponto de vista democrático. Enfim, um processo que não encontra bases democráticas para legitimar o processo de impeachment e de posse de um governo ilegítimo. Então, esse é um contexto que, a meu ver, é paralelo ao contexto da Lava Jato, mas que não se confunde com ele.

Em segundo lugar, temos a operação Lava Jato, em um processo de investigação da promiscuidade da relação entre empreiteiras e partidos políticos, que, por um lado, tem a importância de revelar essas relações promíscuas, o que há muito tempo já se denunciava. A operação tem se revelado bastante seletiva naquilo que investiga, nos procedimentos que toma, e chama a atenção o fato de que, nesse processo de investigação acionado pela Lava Jato, nós percebemos o insulamento, ou seja, a proteção de três setores que, historicamente, poderiam estar relacionados ou poderiam estar sustentando essa relação promíscua: o setor financeiro, o setor midiático e o Poder Judiciário.

Sobre esses três setores, nada se fala. Eles estão blindados no processo de investigação. É, portanto, uma investigação que vai revelar vários dos mecanismos de promiscuidade entre o poder público e o setor privado. Por outro lado, também tenderá a esconder e a omitir outros tantos mecanismos de subordinação do setor público ao setor privado e, consequentemente, pode ser limitado na superação desses mesmos mecanismos, ou seja, é muito provável que os mecanismos que sustentam a relação promíscua entre o Poder Executivo e o setor privado permaneçam. Essa é a minha avaliação.

É uma conjuntura política de incerteza, que ninguém sabe no que vai resultar, mas, ao mesmo tempo, revela algumas coisas, por exemplo, como um governo sem absoluta legitimidade popular e sem absoluta legitimidade democrática pode continuar funcionando, ignorando esses mecanismos democráticos e a legitimidade popular para exercer o poder. É uma conjuntura de visão das elites, e evidentemente as elites que fizeram, deram e sustentaram o golpe estão divididas, com uma parte sustentando o atual governo ilegítimo e outra parte tentando buscar outra solução que, ao mesmo tempo, reproduza e sustente o golpe que foi dado no país. É uma conjuntura de incertezas. Por outro lado, há um desafio muito grande para as forças progressistas, que é juntar os cacos de uma fragmentação e de uma divisão, também provocada por esse processo político de golpe das elites, e tentar construir ou reconstituir uma alternativa democrática popular para o país – o que não é fácil na conjuntura que se apresenta hoje.

IHU On-Line — O senhor disse que o setor financeiro, a mídia e o Poder Judiciário não estão sendo investigados. É possível nomear alguns atores específicos desses setores que não estão sendo investigados? Por que existe essa seletividade nas investigações?

Orlando Alves dos Santos Junior – É muito difícil analisar esse processo sem avaliar os próprios interesses daqueles que estão à frente da investigação. Não teríamos o governo Sérgio Cabral, no Rio de Janeiro, fazendo o que fez em aliança com as empreiteiras, sem uma fortíssima conexão com o Poder Judiciário, com o poder da mídia e mesmo com o poder financeiro. Há um conjunto de instituições financeiras que vão dar suporte às atividades desenvolvidas no país, nos estados e nos municípios envolvidos nessas obras e nesses escândalos. Logo, existem conexões que precisam ser desveladas. Na realidade, se denuncia essa promiscuidade há muito tempo.

Basta pegar os relatórios do Comitê Popular da Copa e das Olimpíadas e tantos outros relatórios que já mostravam indícios de corrupção em várias das obras que agora estão sendo denunciadas, e pode-se perceber que não foi uma novidade ou uma denúncia inesperada para quem estava acompanhando o que acontecia no caso do Rio de Janeiro e de várias outras cidades que sediaram a Copa do Mundo no Brasil.

Essa investigação é seletiva porque, efetivamente, deixa de fora coisas que deveriam estar sendo investigadas e, ao mesmo tempo, utiliza procedimentos que são questionáveis para revelar ou desvelar aquilo que é do seu interesse. A meu ver, esse é um limite e é um mecanismo que deve ser questionado no caso da operação Lava Jato.

É muito bem-vinda a investigação dessa relação promíscua, mas tenho muitas dúvidas de se os procedimentos e os mecanismos utilizados são, efetivamente, os mais democráticos, corretos e isentos, na medida em que eles também expressam interesses das elites que controlam esses mecanismos e procedimentos de investigação.

IHU On-Line — Apesar de todas as denúncias dos últimos meses, envolvendo inclusive o ex-governador do Rio de Janeiro, que continua preso, esse modelo de parceria público-privada ainda se mantém no Rio de Janeiro?

Orlando Alves dos Santos Junior – Mantém-se, e esse é um aspecto. Vou voltar ao assunto anterior para entrar nesse tema que você pergunta. Mantém-se porque não se questionam, efetivamente, os mecanismos de aprisionamento e de subordinação do Estado ao setor privado. Quem, nesse processo, propõe a revisão da Lei de Licitações Nº 8.666/1993 de forma a tornar o Estado mais eficiente? Ninguém. Ou seja, temos um processo de denúncias que não questiona, nem na superfície, os mecanismos pelos quais o Estado é subordinado ao setor privado, muito pelo contrário, ele reafirma a inoperância, reafirma que o Estado é ineficaz, corrupto e fraco. Diante disso, é preciso fazer o quê? Reforçar a parceria com o setor privado. Então, toda a mensagem subliminar desse processo de investigação é essa, e o atual governo, ilegítimo e golpista, reafirma e fortalece as parcerias público-privadas, a parceria com o setor privado. Logo, não vejo uma mudança de perspectiva, ao contrário, vejo um fortalecimento das parcerias público-privadas – PPPs nesse contexto.

Pouco se reflete sobre os mecanismos de subordinação do Estado ao setor privado. Veja o caso do Rio de Janeiro, com o escândalo da PPP do Porto Maravilha, no qual se tem uma renovação urbana fundada na lógica do mercado, na venda de certificados de potencial construtivo, justificada pela incapacidade do Estado em investir na renovação urbana daquela área e pelo fato de que a renovação urbana seria financiada totalmente por recursos privados – o que todo mundo sabia desde o início que não era verdade. E o que temos agora é a completa explicitação da falência desse modelo, quando a prefeitura recompra os Certificados do Potencial Adicional de Construção – Cepacs que ela mesmo emitiu através da Companhia de Desenvolvimento Urbano da Região do Porto – Cdurp.

Isto é, além de ter vários problemas relacionados a esta PPP, tem ainda a compra de todas as Cepacs pelo FGTS, que é gerido pela Caixa – fundo paraestatal –, a privatização de terrenos que eram públicos e que por exigência do contrato de compras das Cepacs são privatizados, e agora se tem a recompra dos Cepacs. Ou seja, temos um modelo de parceria público-privada, no Brasil em geral, que reparte de forma desigual o ônus e os benefícios das PPPs, nas quais o poder público assume os riscos, enquanto o setor privado fica com os lucros e se beneficia da subordinação do setor público aos seus próprios interesses. Sendo assim, é preciso repensar isso.

O que estamos vendo hoje nas denúncias que investigam a relação entre o setor privado e os partidos políticos no Brasil deveria nos levar a refletir que as empresas privadas, que o setor privado, diferentemente do que se anuncia, é também pautado por interesses e pela competição. Portanto, está longe de ser o lugar da pureza e da ética, pelo contrário, é o lugar da improbidade, do jogo sujo. Assim, precisamos de um Estado, de um poder público que, ao contrário do que se anuncia, seja protegido, seja regulador, fiscalizador e que seja, efetivamente, público na sua maneira de ser e de agir. É o contrário do que se tem acompanhado, do que existe no Brasil, pois precisamos negar as PPPs como um mecanismo eficiente de gestão de serviços públicos na cidade.

IHU On-Line — Qual é a atual situação fiscal do Rio de Janeiro? Ela está gerando algum impacto nessa parceria público-privada de construção de megaobras ou gentrificação das cidades?

Orlando Alves dos Santos Junior – O poder público, em todas suas esferas – governos federal, estadual e municipal – vive uma crise econômica. Realizou-se uma Olimpíada, e obviamente é uma ingenuidade concluirmos que a crise não estava anunciada. Pode-se dizer que era uma tragédia anunciada, pois se sabia que impactaria o orçamento municipal e a dívida pública municipal. Isso, de fato, já começou a ocorrer no ano passado, no caso do Rio de Janeiro, quando tivemos a descontinuidade do projeto Morar Carioca, quando se deixou de investir no programa de urbanização e regularização de favelas – e esse, originalmente, era um projeto que estava no legado.

Nós assistimos à descontinuidade do projeto de despoluição da Baía de Guanabara quando o governo anunciou que não conseguiria cumprir a meta original disposta no plano de legados. Ou seja, já havia um impacto no orçamento público e na capacidade de investimento público em 2016, e diria que até em 2015, pois, quando a crise começa, já há esse impacto na capacidade de investimento, no orçamento da própria Olimpíada – no caso do Rio de Janeiro – e na capacidade de investimento do poder público municipal. E isso se agravou.

O atual governo municipal tem, efetivamente, mostrado incapacidade de retomada dos investimentos em todas as áreas sociais: não há projetos de urbanização de favelas, não há projetos sociais relevantes sendo desenvolvidos, não há projetos de habitação de interesse social, e o plano de habitação de interesse social da área portuária está totalmente paralisado. Portanto, tem-se um agravamento desse quadro, um grave impacto nas ruas, um brutal crescimento da população de rua e da pobreza urbana – isso é visível para qualquer morador do Rio de Janeiro. Isso, a meu ver, é reflexo de uma crise urbana que já estava anunciada no percurso da preparação da cidade para receber a Olimpíada.

É incrível que uma cidade que sedia uma Olimpíada deixa como legado – ou melhor, não-legado – dois estádios como Júlio de Lamare e Célio de Barros destruídos; entrega à sociedade equipamentos esportivos que estão abandonados no Parque Olímpico; entrega o Complexo do Maracanã fechado, porque a empresa responsável pela parceria público-privada faliu e já se retirou da parceria. Isso mostra que o Rio de Janeiro é um caso de escândalo, é a ilustração do que não deve ser feito, mas muitos fecham os olhos para não mostrar ao mundo quais foram os impactos negativos de sediar uma olimpíada, como aconteceu no Rio de Janeiro.

Ao Comitê Olímpico Internacional – COI não interessa visibilizar essas contradições e esses impactos negativos, porque isso fere a sua imagem, mas ele é corresponsável pelo que aconteceu na cidade do Rio de Janeiro. Essas conexões é que são reveladas seletivamente pela mídia, pelo Poder Judiciário, pelo sistema financeiro.

IHU On-Line – Quais foram os principais impactos sociais, seja na área da saúde, da educação ou da habitação, para a cidade e o estado do Rio de Janeiro, diante dessa aposta na realização da Olimpíada e na realização de megaobras em geral? Já é possível mensurar os impactos?

Orlando Alves dos Santos Junior – Ainda vamos poder avaliar esses impactos, porque recém se passou um ano da realização da Olimpíada, mas alguns desses impactos já são visíveis e outros serão visíveis ao longo do tempo. De todo modo, já é possível observar que a cidade está mais desigual e que houve um crescimento da pobreza urbana, e esses são dois impactos graves na configuração social do Rio de Janeiro. Há ainda impactos na mobilidade urbana, porque foram investidos milhões em sistemas de mobilidade que ignoram a integração da cidade como polo metropolitano com a Baixada Fluminense, o Leste Metropolitano e Niterói. Há impactos em todas as dimensões da vida urbana da cidade do Rio de Janeiro.

Neste momento, posso dizer que os impactos mais visíveis são nestas duas dimensões. O primeiro é uma maior desigualdade socioespacial, com áreas que se elitizaram e outras que não receberam os mesmos investimentos e que, no curto espaço de tempo, não irão recebê-los, dada a crise fiscal do município. Isso gera uma desigualdade de investimento nas diferentes áreas da cidade e um processo de remoção em algumas localidades, o qual tornou áreas como a Barra da Tijuca, o Porto Maravilha e a Zona Sul mais proibidas para as classes populares. Essas são áreas que se elitizaram no curso de preparação da cidade para as Olimpíadas.

O segundo impacto é o assustador crescimento da pobreza urbana, que está em todas as áreas da cidade. Estou falando isso sem indicadores estatísticos, mas é visível na cidade o crescimento de moradores de rua e o crescimento da pobreza urbana. Isso está sendo sentido pelo morador do Rio de Janeiro em muitos espaços da cidade, embora outros espaços estejam protegidos por segurança privada e impeçam a entrada desses segmentos sociais.

IHU On-Line – Na última entrevista que nos concedeu, o senhor mencionou e explicou o processo de gentrificação (transformação de áreas da cidade em mercadorias) que está acontecendo no Rio de Janeiro. Esse modelo está sendo proposto e desenvolvido em outras partes do país também?

Orlando Alves dos Santos Junior – A gentrificação no Brasil tem algumas especificidades e, portanto, não podemos tomar esse conceito que foi formulado em uma realidade anglo-saxônica e transpô-lo para o Brasil sem algumas mediações. Percebo nos nossos estudos essa estratégia empreendedora e de parceria público-privada que está sendo difundida no Brasil, inclusive nas operações urbanas, envolvendo a revitalização e a reestruturação ou renovação de certas áreas da cidade. Mas esse processo aciona como estratégia a elitização desses territórios e aciona políticas gentrificadoras.

Isso é efetivamente uma característica que se evidencia no Rio de Janeiro, em São Paulo, em Recife, em Porto Alegre e em outras cidades brasileiras que estão adotando esse processo baseado em parcerias público-privadas. No entanto, esse processo gentrificador pode ser compreendido somente no contexto da ordem urbana brasileira, em que presenciamos cidades já marcadas por forte desigualdade social, segregação urbana, onde se percebe o que podemos chamar de um híbrido desigual e combinado, ou seja, a lógica do mercado e a lógica do informal, a qual se expressa exatamente nas favelas, nos locais informais próximos das áreas ocupadas pelas classes de mais alta renda. Ou seja, a ordem urbana que expressa as cidades brasileiras permite uma proximidade física junto com a distância social.

O processo de gentrificação no Brasil reproduz essa ordem urbana híbrida, desigual e combinada. Ou seja, no Rio de Janeiro, por exemplo, não haverá uma expulsão de todas as classes populares da zona portuária do Rio de Janeiro. Ao contrário, ocorrerá a gentrificação de certos espaços da zona portuária, que vão conviver e reproduzir um padrão urbano que combina essa proximidade física com a distância social e que, portanto, deve reproduzir essa ordem híbrida desigual e combinada. Então, esse é o desafio para nós pesquisadores entendermos como essa ordem desigual e combinada se reproduz no contexto das cidades brasileiras e, evidentemente, conseguir articular forças para se opor e desconstruir esse processo e pôr em marcha a construção de cidades mais justas e democráticas, isto é, cidades que não sejam marcadas pela exclusão social e pela desigualdade socioespacial.

IHU On-Line – O que seria uma alternativa a esse modelo, de forma a garantir a construção de cidades mais justas?

Orlando Alves dos Santos Junior – Há várias alternativas. Não estamos diante de uma opção de escolha bipolar, e as experiências de gestão de cidades no mundo mostram isso. Evidentemente, acho que em primeiro lugar essa alternativa tem que ser fruto de um processo de debate democrático, o que não se verifica nas cidades brasileiras. Não cabe a mim dar uma receita de como as cidades devem ser geridas e qual é o modelo de cidade que devemos ter, porque, ao contrário, temos que nos opor a qualquer modelo que venha de cima para baixo. Devemos nos opor inclusive aos setores intelectuais e técnicos bem-intencionados, que formulam bonitas ideias que são elaboradas desde os gabinetes. Ao contrário, temos que ter capacidade de pôr em marcha um processo de mobilização e discussão coletiva da sociedade, porque todo mundo tem algo a dizer sobre a cidade onde mora, sobre que cidade e futuro deseja. Afinal, ao mudar a cidade, estamos mudando o modo de vida e das relações sociais nas cidades.

O que podemos sugerir são princípios para nortear esse processo: evidentemente a cidade não pode estar subordinada à lógica privada, às parcerias público-privadas. Temos ainda que considerar o princípio da equidade e da justiça socioespacial, o princípio de uma cidade que seja de todos e de todas, isto é, que seja pensada para todos os grupos sociais, porque a cidade tem gênero, tem cor, mas exclui certos grupos de cor e orientações sexuais distintas de determinados locais da cidade. Ou seja, temos uma cidade que discrimina, segrega, separa, mas precisamos construir uma cidade que faça o contrário, que seja marcada pelo reconhecimento de todos e todas, e que seja radicalmente democrática.

Esses princípios podem orientar um outro projeto de cidade, e isso significa enfrentar certos interesses. Então, tentando simplificar o que estou dizendo, a cidade é atravessada por um conflito: a cidade como mercadoria e um valor de troca e a cidade como um valor de uso, como um bem comum. Portanto, a construção de uma alternativa passa por tomar partido, por apostar em processo de promoção da cidade para todos como bem comum, de forma que ela não sirva ao capital, mas às pessoas.

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