“O que fica como resquício da relação com o ancestral parece ser sempre o que fazer com a herança e de que esses destinos, enquanto aquilo que terá sido feito com a herança, são determinados pela forma como cada descendente se constrói a partir de sua fantasia em relação à sua filiação (…) Na medida em que os antepassados cometeram um genocídio, os descendentes frente a esse ato narcisisticamente insuportável, paradoxalmente o repetem através da não-conexão entre as duas fundações e da repetição do traço dos discurso colonizador. Nessa região, os imigrantes italianos e alemães não se encontram, subjetivamente, na posição de colonos, mas sim de colonizadores, reeditando em outras partes do país a conquista de terras e a luta contra índios e posseiros” (Mario Fleig e Conceição Beltrão, “Herança e Mecanismos Psíquicos”, in “Imigração e Fundações” (Artes e Ofícios, Porto Alegre, 2000)
A vida do irmão Antônio Cechin, falecido aos 89 anos em novembro de 2016, era movida, entre outras coisas, por algumas indignações. Uma delas era com o papel subalterno, na história oficial do Rio Grande do Sul, da experiência do povo guarani nas missões jesuíticas dos Sete Povos das Missões. Dessa inconformidade, nasceu a proposta de canonização de José Tiaraju, também conhecido como Sepé Tiraju, uma das principais lideranças da experiência que se estendeu entre os anos de 1609 e 1768 e que chegou a ocupar cerca de dois terços do atual território do Estado do Rio Grande do Sul. Os Sete Povos das Missões foram dizimados por Portugal e Espanha após a assinatura do Tratado de Madri. Milhares de guaranis foram mortos em combate. Entre eles, Sepé Tiaraju. As narrativas de construção da “identidade gaúcha”, porém, dão a esses personagens um papel secundário, quando dão.
A reportagem é de Marco Weissheimer, publicada por Sul21, 30-07-2017.
Cechin era um crítico do “gauchismo” construído ignorando a trajetória e o legado do povo guarani que criou, por exemplo, o chimarrão, símbolo apropriado por esse “gauchismo” repleto de lacunas e omissões em sua construção. A proposta de canonização de Sepé Tiaraju abre espaço para preencher essas lacunas e denunciar as omissões que ainda se manifestam no presente no modo pela qual são tratados os descendentes dos guaranis e de outros povos indígenas no Rio Grande do Sul.
No dia 10 de novembro de 2015, foi entregue ao bispo da Diocese de Santo Ângelo um documento-base (postulação) oficializando o pedido de canonização. Intitulado “Santo ainda que tarde!” Por uma postulação de reconhecimento de santidade de José Tiaraju (São Sepe, o Tiaraju), o documento assinala que ele já é um santo canonizado popularmente pelos índios e pelos pobres do Rio Grande do Sul. O irmão Cechin disse na época que a importância da canonização cresce quando olhamos para a realidade em que vivem hoje os povos indígenas no Rio Grande do Sul e no Brasil”.
Mais de 260 anos depois da morte do líder guarani, há registros documentais importantes que permitem tirar das sombras essa história. “Hoje, temos uma documentação bem importante sobre a presença de Sepé Tiaraju”, diz o historiador Tau Golin, professor da Universidade de Passo Fundo (UPF). Além da documentação jesuítica, existem também diários de militares e relatos dos cartógrafos das expedições portuguesas e espanholas. Há uma imensa cartografia sobre esse período com registros sobre a geografia, os combates, as cidades missioneiras, sua arquitetura e vários personagens do conflito.
Nessa cartografia, Sepé é citado, assim como o dia e lugar de sua morte. “Miguel Ângelo de Blasco, um cartógrafo genovês que estava na expedição portuguesa e ficou praticamente nove anos no Rio Grande do Sul, fez um mapa com o itinerário das tropas e a localização das estâncias missioneiras”, exemplifica o historiador.
Uma das lacunas que existiam, até um tempo atrás, sobre a vida de Sepé Tiaraju era sobre as funções que ele desempenhou. Em seu livro “A Guerra Guaranítica. O levante indígena que desafiou Portugal e Espanha” (Editora Terceiro Nome), Tau Golin explora essa documentação para contar como tropas indígenas da região dos Sete Povos das Missões, apoiadas por padres jesuítas, barraram o avanço de missões portuguesas e espanholas que tinham a função de redesenhar as fronteiras entre os domínios dos dois países após a assinatura do Tratado de Madri. Os indígenas rebeldes resistiram de 1754 a 1756, quando foram derrotados pelas tropas de Portugal e Espanha.
Entre esses documentos, há o relato do diário do então governador de Montevidéu, Manoel Viana, que deu o tiro de misericórdia em Sepé Tiaraju após ele ter sido torturado. “Após ter sido lanceado por um peão a serviço de Portugal, Sepé foi pego por um piquete da cavalaria castelhana que era liderado pelo governador de Montevidéu. Aí tentaram tirar informações dele. Um padre, que era uma espécie de capelão, registrou em seu diário que Sepé foi queimado com pólvora antes de ser morto. Depois, cortaram a cabeça dele e deixaram o corpo no campo. Eles carregavam a cabeça dos líderes em barricas de sal para depois comprovar que tinham realmente os matado. À noite, os guaranis da milícia de São Miguel recolheram o corpo dele e o enterraram ao lado de uma sanga cercada de mato. Toda essa documentação permite afirmar que as referências sobre Sepé Tiaraju são bastante sustentáveis. Há também relatos sobre combates que ele travou em Rio Pardo, operações de campo, a estância em que ele era administrador na região de Dom Pedrito. Tudo indica que Sepé tinha também participação nas liturgias. Ele levava na cintura, em uma pequena bolsa, um livrinho de orações e cartas”, registra Tau Golin.
Além da documentação histórica, há também os registros literários sobre a vida de Sepé Tiaraju, como, por exemplo, os de Simões Lopes Neto e Basílio da Gama. Muito antes de Simões Lopes Neto, o poema “O Uraguai”, de Basílio da Gama, observa ainda o historiador, é o primeiro grande texto elevando Sepé a figura de um grande comandante. O texto exalta a figura do general Gomes Freire de Andrade, governador do Rio de Janeiro, que modo que ele estivesse à estatura de seu inimigo.
Tau Golin cita uma intensa polêmica travada na década de 50 no Rio Grande do Sul, envolvendo o Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul, motivada pela proposta de construção de um monumento em homenagem a Sepé. Essa polêmica, observa, foi objeto de uma tese de doutorado de Eliane Inge Pritsch, no Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). A proposta de homenagem foi feita por um major do Exército, João Carlos Nobre da Veiga, que sugeriu a construção de um monumento em São Gabriel, no local da morte de Sepé. O governador do Estado na época, Ildo Meneghetti, solicitou ao Instituto Histórico e Geográfico que se manifestasse sobre o pedido. O instituto emitiu um parecer contrario à proposta argumentando que o sentido de pátria representado por Sepé não era o mesmo da pátria portuguesa e não poderia, portanto, ser associado ao que, mais tarde, viria a ser o “patriotismo gaúcho brasileiro”.
Na segunda década do século XXI, essa resistência segue forte no Rio Grande do Sul, diz o historiador. “Há representantes de entidades de classe do agronegócio que têm uma ação criminosa na destruição de documentos como mapas, cartas de família, peças de cerâmicas e tudo o que demonstra e comprova a presença indígena nos territórios do Estado. Há uma clara tentativa de destruição desses registros. Temos muitos alunos que são contratados para fazer levantamentos de acervos. No início, eles acham que é para uma boa causa e depois descobrem que eles querem saber onde está a documentação para poder destruí-la. Temos relatos de proprietários de terras em regiões próximas de Passo Fundo que, quando acham cerâmicas ou outros vestígios materiais da presença indígena em suas propriedades, eles tratam de destruir tudo”.
Tau Golin relata ainda um caso em que foi descoberta tanta cerâmica que o proprietário encheu um ônibus com moradores de um bairro de periferia para fazer uma varredura no campo e recolher todo o pedaço de cerâmica que achassem. “Ele moeu toda a cerâmica encontrada e fez tijolos com esse material para não ficar nenhum vestígio. Existe, sim, até hoje uma clara intenção de destruir esses vestígios”.