Resistência do Laboriaux na Rocinha em Face ao Legado Olímpico de Remoções #QueLegado

Simone Rodrigues – RioOnWatch

A reconfiguração recente da cidade do Rio de Janeiro em uma cidade Olímpica comprometeu diretamente o direito à moradia de seus habitantes, por meio da remoção compulsória de pessoas empobrecidas que viviam em áreas sujeitas à especulação imobiliária, como a Região Portuária, a Zona Sul e Barra da Tijuca. Essas remoções feitas por decreto durante a gestão do então Prefeito Eduardo Paes representaram flagrantes violações dos direitos humanos, visto que agentes da prefeitura agiram com truculência, ameaçaram derrubar as casas com as pessoas e seus pertences dentro e forçaram pessoas a assinar o auto de interdição das casas sob pena de não recebimento de indenização, sem diálogo e sem transparência.

Reestruturação Urbana Nos Anos Pré-Olímpicos

A reestruturação urbana feita foi pautada em um projeto no qual prevaleceu a racionalidade empresarial na condução de políticas públicas (o chamado empreendedorismo urbano neoliberal), o qual aplica as remoções como um mecanismo político para a valorização imobiliária. Isto é, a elitização dos centros urbanos, de modo a promover a mercantilização da cidade e da vida urbana para construir uma cidade-negócio, em detrimento do bem estar e dos direitos da população empobrecida.

O discurso oficial justificou as remoções de moradias em vista da realização de obras de infraestrutura, tais como a construção do BRT e do VLT e de estacionamentos, bem como sob o emprego indiscriminado da noção de risco ambiental e desmoronamento. Essas transformações são legitimadas ainda pelo discurso dos megaeventos e do suposto legado de benefícios aos moradores da cidade. No entanto, é possível inferir que independentemente dos Jogos tais transformações urbanas aconteceriam porque estão atreladas a um projeto internacional de desenvolvimento de cidades capitalistas que fazem uso da transferência de renda pública para beneficiar grandes empresas, mantendo os privilégios dos enriquecidos e negando direitos aos empobrecidos. Em suma, a cidade Olímpica passou por um processo de camuflagem para ocultar suas faces empobrecidas, pois mais de 77 mil pessoas foram removidas compulsoriamente para áreas mais distantes dos centros urbanos. A prefeitura usou as remoções para atender os interesses empresarias, bem como promover um marketing elitizado para os turistas.

De fato, as intervenções urbanas no Rio de Janeiro aumentaram a exclusão do espaço e o agravamento da desigualdade social por meio de instrumentos de espoliação urbana e realocações da população empobrecida para áreas mais periféricas, muito distantes dos locais de origem, desassistidas de serviços e equipamentos públicos. É importante analisar a segregação não somente pela ótica socioeconômica, mas também com atenção para a raça e gênero das pessoas removidas, tendo em vista que as favelas removidas total ou parcialmente são ocupadas em sua maioria por pessoas pardas e negras, com elevado número de mulheres chefes de família, sendo que mulheres negras são as mais atingidas pela expropriação de direitos e pelos impactos sociais das remoções, uma vez que historicamente a sociedade foi baseada na escravidão, na propriedade privada e no patriarcado.

Emergência e Resistência do Laboriaux

Nesse contexto, emergiram movimentos populares de enfrentamento à política de remoções, com mobilização em prol da efetividade do direito à moradia adequada e do direito à cidade, como o movimento dos moradores do Laboriaux. Localizada no topo da Rocinha, a comunidade sofreu ameaça de remoção total sob o discurso indiscriminado de “área de risco” ambiental e desmoronamento no contexto dos megaeventos.

A seguir será demonstrada uma contextualização histórica sobre a ocupação no Laboriaux e como os moradores se organizaram e desenvolveram práticas para a permanência das famílias no território.

No início da década de 1980, os moradores da Rocinha estavam mobilizados reivindicando obras de saneamento básico, a não remoção compulsória de moradias e intervenções urbanísticas em prol de moradia digna, sobretudo para as famílias que sofriam com enchentes. Por essa razão, a prefeitura à época incentivou a ocupação no Laboriaux através do reassentamento de 73 famílias em unidades habitacionais, emitiu concessão de títulos de cessão de posse, e construiu uma creche e uma escola no local.

Passados os anos, com o crescimento da ocupação e reivindicação dos moradores pela segurança da posse, a Fundação Bento Rubião iniciou um processo de regularização fundiária em toda a área do Laboriaux, no âmbito do Programa Papel Passado, do Governo Federal. Com isso, em 2010 cerca de 500 famílias de um total de 800 estavam com o processo de regularização finalizado aguardando a prefeitura emitir os títulos de cessão de posse. Porém, em abril desse mesmo ano, chuvas torrenciais causaram desmoronamentos e vitimaram fatalmente duas mulheres no Laboriaux, deixando os moradores consternados.

Essa tragédia foi usada pela prefeitura como desculpa para interromper o processo de regularização fundiária em vigência e interditar o território, com ameaça de sua remoção total imediata, sob o discurso indiscriminado da noção de “área de risco” iminente. Ademais, a Prefeitura interditou toda área do Laboriaux e marcou as casas com a sigla SMH, sem apresentar laudo técnico de comprovação de área de risco, revelando total desrespeito e descaso com as famílias. Após reclamações dos moradores, a Secretaria Municipal de Habitação apresentou um laudo técnico antigo elaborado pela GEO-Rio, órgão de avaliação geológica do município do Rio de Janeiro, o qual foi questionado pelos moradores por ser genérico e não ter correspondido com a realidade do local.

É importante ressaltar que a prefeitura não envolveu os moradores nas decisões políticas, no sentido de buscar alternativas para evitar a remoção, bem como negou informações, agiu com autoritarismo, truculência e abuso de poder, uma vez que utilizou-se de pressão psicológicapara forçar os moradores a assinar o auto de interdição, o que configuram graves violações de direitos humanos. Em consequência disso, os moradores ficaram apreensivos, sem saber para onde iriam e como ficariam suas vidas em lugares distantes do emprego e do lazer, e algumas adoeceram–dois moradores idosos, inclusive, infartaram poucos dias depois da abordagem violenta dos agentes da prefeitura.

Para fazer frente a isso, os moradores se organizaram em uma comissão e buscaram apoio da Pastoral das Favelas, do Conselho Popular e do Núcleo de Terras e Habitação (NUTH) da Defensoria Pública. Dentre as ações de resistência às remoções, destacam-se a ocupação da Escola Municipal Abelardo Chacrinha Barbosa pelas famílias, a ação de mulheres e mães que impediram uma demolição parando um trator conduzido por um agente da prefeitura, e a elaboração de um contra laudo técnico–feito por Maurício Campos, engenheiro civil e então membro da base de apoio do coletivo técnico do NUTH–com a participação dos moradores. Esse contra laudo identificou um número menor de remoções necessárias para viabilizar intervenções urbanísticas que garantissem as condições seguras para a permanência dos moradores no território, como estabilização de encostas e reforma estrutural em algumas casas. Dessa forma, os moradores puderam contestar com prova técnica a validade do laudo apresentado pela prefeitura que tentou justificar as remoções com discurso despolitizado e genericamente técnico.

Segundo José Ricardo, presidente da Associação de Moradores do Laboriaux e ativista que teve participação significativa no movimento de resistência, a prefeitura removeu cerca de 130 famílias do local sob o discurso generalizado de risco ambiental e de desabamento. Algumas famílias receberam em contrapartida aluguel social de apenas R$400,00 mensais, enquanto outras foram reassentadas nos conjuntos habitacionais do programa Minha Casa Minha Vidaem Triagem, Estácio e Cosmos. Isso gerou um danoso impacto social nas vidas das pessoas, com aumento de despesas, perda do trabalho, mudanças de escolas e creches, dificuldade de mobilidade, quebra dos laços sociais devido à distância em relação ao território onde construíram pertencimento, além de depressão em razão da angústia e do sofrimento causados pelas remoções forçadas. Vale frisar que  as remoções foram feitas por decretos, sem reconhecimento da posse qualificada pela sua função social, de forma arbitrária e truculenta.

Os moradores do Laboriaux, juntamente a outros moradores de favelas ameaçadas de remoção–tais como Prazeres e Pavão-Pavãozinho–uniram-se e articularam-se ainda mais, realizando diversos debates dentro das favelas e participando de manifestações populares e audiências públicas. Os moradores do Laboriaux também se engajaram no Movimento Preserva Laboriaux que organizou mutirões de limpeza de lixos nas áreas verdes em volta do Laboriaux.

Vale lembrar ainda que há quatro anos, no contexto das manifestações de junho de 2013, cerca de 4.000 moradores da Rocinha fizeram uma manifestação reivindicando a aplicação de políticas públicas na comunidade. Como desdobramento desse momento histórico, uma comissão de moradores conseguiu apresentar pautas de reivindicações aos governos estadual e municipal, levando o então Prefeito Eduardo Paes a assegurar, em visita ao Laboriaux, que não removeria mais ninguém e que realizaria intervenções de melhorias no local.

Após as ações coletivas dos moradores do Laboriaux na luta pela permanência no local, a comunidade obteve alguns êxitos. Pois a prefeitura reativou a escola e fez uma contenção no lado fronteiriço a Gávea (bairro de alto valor imobiliário) e asfaltou a rua principal, Maria do Carmo. Todavia, a contenção fronteiriça com outras subáreas da Rocinha, em pequena área apontada como ponto crítico pelo contra laudo técnico, não foi feita até o momento. Segundo a prefeitura, entre 2012 e 2013, esse projeto de contenção estaria em licitação, porém já passaram cinco anos e os moradores não receberam nenhum retorno.

Embora o legado Olímpico direto tenha sido de remoções e de agravamento das desigualdades e violências, surgiram de forma inesperada o empoderamento e a articulação de moradores em movimentos de resistência. Esses buscaram formação política e informações sobre seus direitos e quais caminhos que devem percorrer para conseguir pautar o planejamento e a execução de políticas públicas na favela. As ações dos moradores demonstraram o compromisso com a permanência no local, bem como reivindicaram a realização de projetos urbanísticos, tais como contenções, pavimentação das ruas e melhorias habitacionais, sempre com participação popular em todos os processos decisórios durante o planejamento e execução das intervenções.

Simone Rodrigues é advogada, nascida e criada no Laboriaux, na Rocinha.

Para saber mais:

CASTRO, Demian Garcia et al. O projeto olímpico da cidade do Rio de Janeiro: reflexões sobre os impactos dos megaeventos esportivos na perspectiva do direito à cidade. Brasil: os impactos da Copa do Mundo 2014 e das Olímpiadas 2016/organização Orlando Santos Junior, Christopher Gaffney, Luiz Cezar de Queiroz Ribeiro. 1 ed., RJ: E-papers, 2015.

DOSSIÊ DO COMITE POPULAR DA COPA E OLIMPIADAS DO RIO DE JANEIRO. Relatório olímpiadas 2016: os jogos da exclusão. 2015.

SANTOS JUNIOR, Orlando. A produção capitalista do espaço urbano, os conflitos urbanos e o direito à cidade. Caderno Didático Políticas Públicas, RJ, OM-IPPUR, 2015.

RODRIGUES, Simone Alves dos Santos. Direito à Moradia: Remoções Forçadas Ilegais de Moradias em Razão dos Megaeventos no Rio de Janeiro. Monografia apresentada à Faculdade de Direito Cândido Mendes – Centro como requisito parcial para a obtenção do título de Bacharel em Direito, 2014.

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