Disseminação de facções tem impacto profundo na violência geral, diz pesquisadora

Fracasso de políticas prisional e de segurança pública – incluindo a guerra às drogas – superlota prisões e fortalece facções geradas nos presídios, atualmente em disputa, explica autora de livro sobre o PCC

Ciro Barros, da Agência Pública

Desde meados de 2016, as duas maiores facções criminosas do Brasil estão rompidas. A disputa entre a facção paulista Primeiro Comando da Capital (PCC) o Comando Vermelho (CV) está presente nos conflitos que extrapolaram as cadeias e atingem a população de Manaus, Boa Vista, Porto Velho, Natal e o Rio de Janeiro. Recentemente, o secretário de Segurança Pública e Administração Penitenciária do Goiás, Ricardo Balestreri, admitiu que a disputa entre as facções foi o principal motivo da rebelião que deixou nove mortos e 14 feridos no Complexo Prisional de Aparecida de Goiânia logo no primeiro dia do ano.

Semanas depois, no final de janeiro, o Ceará viveu a maior chacina de sua história, com o assassinato de 14 pessoas no bairro de Cajazeiras, periferia de Fortaleza. A imprensa noticiou que os atiradores pertenciam à facção GDE (Guardiões do Estado), aliados locais do PCC, e que as vítimas participavam de um forró promovido pelo CV. A disputa do PCC pelo Estado – em que o CV era predominante –  abertamente em áudios divulgados pelo UOL de um grupo de whatsapp que, segundo o portal, é de membros do PCC cearense.

Para Camila Nunes Dias, pesquisadora do Núcleo de Estudos da Violência da USP (NEV-USP), professora da Universidade Federal do ABC (UFABC) e autora do livro PCC: hegemonia nas prisões e monopólio da violência (Editora Saraiva), o mais preocupante é a incapacidade do Estado em se antecipar à violência gestada nas prisões. “Toda a redução ou o aumento da violência, nas ruas e nas prisões, vai depender da própria população carcerária e dos grupos criminosos”, analisa. Ela vê a disputa pelo domínio nas prisões como o principal motivo do rompimento entre os maiores grupos criminosos do país, diz não haver soluções de curto prazo para o conflito entre as facções e critica a política de guerra às drogas. “Já foi demonstrado que em nenhum lugar do mundo a guerra às drogas teve sucesso, nunca se conseguiu reduzir as demandas pelas substâncias proibidas e, portanto, ela é incapaz de impedir a comercialização”, afirma.

Quais são os principais reflexos do rompimento entre o PCC e o Comando Vermelho nas ruas e nas cadeias passados quase dois anos?

Acho que uma das questões mais centrais quando se trata a respeito dessa questão é a profunda incapacidade do Estado de garantir a segurança dos presos e das populações, sobretudo aquelas que vivem em territórios e regiões controladas por esses grupos. A gente percebe que a disseminação das facções, como esses grupos são chamados, traz um profundo impacto sobre a questão da violência de uma forma geral. Muitas vezes quando se anunciam programas que visam reduzir os homicídios e há uma queda na taxa de homicídios, por exemplo, como aconteceu no Ceará há alguns anos, essa queda muitas vezes está ligada à composição entre esses grupos, a alianças, acordos que eles fazem entre si. Como você teve o anúncio dos números do Ceará Pacífico [programa de redução da violência lançado em 2015 pelo governador Camilo Santana], por exemplo, você vê como essas políticas públicas são frágeis diante das dinâmicas das facções. Uma análise que para mim fica bastante evidente, não só diante desses acontecimentos atuais, mas pegando de uma perspectiva mais de longo prazo e cotejando isso tudo com a questão de política pública, você vê que na verdade não há política pública. Então quando a gente se vê numa situação em que os grupos deixam de conviver entre si e isso se rompe, o Estado, como não tem política pública, é incapaz de prevenir situações de extrema violência como as que estamos vendo agora no Ceará, no Rio Grande do Norte e em vários outros estados brasileiros.

Do início do ano para cá, já tivemos uma rebelião sangrenta no Goiás e, segundo a imprensa, a maior chacina da história do estado do Ceará. Ambos os episódios foram associados ao PCC e poderiam ser reflexos do rompimento com o CV. Isso sinaliza um aumento dos conflitos em nível regional por conta desse rompimento entre as facções?

Acho difícil avaliar se há uma escalada de crescimento nos conflitos. O PCC e o Comando Vermelho são dois grupos que têm uma maior presença nacional, principalmente o PCC, mas o CV também. Quando, há dois anos atrás, eles anunciaram uma ruptura, era claro que isso apontava para uma perspectiva de ter conflitos graves justamente por serem grupos de presença nacional e até então, desde a fundação do PCC – quando o Comando Vermelho já existia – eles conviviam entre si.  Os presos de ambos os grupos ficavam nas mesmas penitenciárias, nas localidades onde um ou outro grupo tinha maior presença, e essa convivência era muitas vezes de colaboração, de parcerias comerciais. Quando há essa ruptura anunciada lá em junho de 2016, houve essa perspectiva de uma grande desestabilização entre os grupos criminosos dentro e fora das prisões. Os dois – CV e PCC – têm presença em quase todos os estados. E a gente vê, de 2016 para cá, que foram muitos momentos, picos de extrema violência e desestabilização. Tivemos episódios em Roraima, no Amazonas, Rio Grande do Norte, Ceará, enfim, vários estados viveram picos e crises de segurança e depois estabilizaram. Essa estabilização eu entendo que é fruto de um lado da própria ação do Estado, no sentido de apagar incêndios, e de outro lado é fruto de uma certa acomodação dos próprios grupos, afinal ninguém aguenta ficar se matando o tempo todo. Depois, ou estoura uma outra crise no mesmo local ou, como tem ocorrido de 2016 para cá, a crise e o pico de violência migram para outra localidade. Infelizmente, no Brasil, a gente não tem uma política de segurança pública e nem uma política prisional, os estados só se mexem e anunciam alguma coisa em situações de crise como essas que estamos assistindo. No Ceará, com essa crise agora, monta-se uma força-tarefa, assim como aconteceu em Alcaçuz [penitenciária estadual no Rio Grande do Norte, palco de uma rebelião que deixou 26 mortes]. Aquilo momentaneamente estabiliza, mas na verdade você não está mudando de uma maneira estrutural. Você momentaneamente segura essa tensão. Quando essas coisas acontecem, os holofotes se viram para o estados e algumas medidas emergenciais são tomadas. Os outros estados vivem situações semelhantes, mas enquanto a crise não explode, nada é feito. O que fica de tudo isso, em uma análise mais global, é que os estados não têm nenhuma capacidade de prevenir essa situação de violência – toda a redução ou o aumento da violência, nas ruas e nas prisões, vai depender da própria população carcerária e dos grupos criminosos. Essa é a grande tragédia brasileira. O Estado não tem respostas para dar a esse cenário. As respostas dadas: policiamento militarizado e mais prisões – essas são a raiz dos problemas e o Estado tem mostrado que não tem respostas.

Quais políticas devem ser levadas a cabo para que o Estado consiga se antecipar a esses picos de violência?

Não existe solução no curto prazo. Chegamos a um estágio em que temos quase 750 mil pessoas presas no país. O sistema carcerário vem crescendo assustadoramente nas últimas décadas. Alguns estados vêm investindo muito em prisões, aumentando muito a sua rede carcerária; São Paulo é um exemplo disso. Mas a gente vê que as prisões são produtoras dessa violência. Se a gente olhar nos últimos dez anos as principais crises de segurança pública que ocorreram nos estados brasileiros, elas têm como origem as prisões: desde São Paulo em 2006, passando pelo Rio de Janeiro, Santa Catarina. Estamos num estágio em que não existem ações no curto prazo que tenham capacidade de serem soluções para esses problemas, elas só apagam incêndios. Para lidar com o problema, é necessário ações de médio e longo prazo.  Até parece chover no molhado, mas eu não consigo pensar em nada que não seja um investimento maciço em prevenção – no sentido de atuar nos bairros onde as populações estão mais sujeitas às ações dos grupos criminosos, especialmente com os adolescentes e crianças. É necessário evitar esse contágio, mas não de uma maneira repressiva, com a Polícia Militar, mas sim dando oportunidades: creches, escolas de qualidade, oportunidades para que eles vejam que há outras possibilidades de socialização, de valorização pessoal – o que, para um adolescente, é algo essencial -, além de investimentos em infraestrutura urbana. Isso de um lado, pensando numa perspectiva de prevenção a longo prazo. Por outro lado, numa perspectiva macro, eu não vejo como encontrar saídas para o problema da violência dos grupos organizados se não houver uma nova concepção política para lidar com a questão das drogas. É necessário uma mudança na política de drogas para acabar e interromper essa loucura, essa tragédia da guerra às drogas, que é feita com o uso intensivo de armas pesadas dos dois lados – o Estado e os grupos criminosos – para uma guerra que não tem perspectiva de ter nenhum vencedor, só há perdedores. Já foi demonstrado que em nenhum lugar do mundo a guerra às drogas teve sucesso, nunca se conseguiu reduzir as demandas pelas substâncias proibidas e, portanto, ela é incapaz de impedir a comercialização. É necessária uma política de drogas baseada, de um lado, na prevenção – da mesma maneira que foi feita com o cigarro. Nós temos um case de sucesso, que foi o cigarro, no que diz respeito às orientações e à educação para a redução do uso, as pessoas passaram a usar muito menos em relação a duas décadas atrás. As drogas precisam ser vistas como uma questão de saúde e, portanto, o comércio das drogas tem que ser regulado pelo Estado. Em nenhum lugar do mundo há uma política pública baseada na repressão que tenha gerado resultados positivos. A população carcerária presa por tráfico de drogas chega a 33% mais ou menos entre os homens; e entre as mulheres chega a 70%. Os estudos mostram que essas prisões de mulheres que, em regra são mães e têm família, leva a uma desestruturação grande dessas famílias – as prisões dos homens também, mas o impacto é maior com as mulheres. Veja: não há sentido nessa lógica, você deixa crianças sem qualquer amparo e acaba alimentando todo esse ciclo.

Outra questão relacionada ao rompimento entre o CV e o PCC seria quanto ao caráter de cada organização. Há quem diga que o PCC possui um caráter mais monopolista enquanto o CV permite uma maior autonomia das facções regionais.

O Comando Vermelho e o PCC têm formas de organização diferente. Se pensarmos em uma composição orgânica, o PCC é muito mais orgânico do que o Comando Vermelho. O PCC é de fato uma organização com estrutura própria: ele tem lideranças, chamadas de “sintonias”, tem mecanismos de controle social muito forte sobre os seus integrantes. Você olhando para a estrutura, para a forma como o PCC se ajusta e como essas dinâmicas acontecem, eles têm uma unidade.  O PCC é como se fosse uma empresa: tem uma matriz que fica em São Paulo e filiais no Brasil inteiro. O PCC do Paraná, de Roraima, de Rondônia tem uma ligação orgânica com São Paulo tanto do ponto de vista econômico como político, que são as orientações da conduta de como o criminoso que pertence ao grupo tem que se comportar. O Comando Vermelho, nessa mesma analogia, é como se fosse uma empresa com várias franquias. Você tem o Comando Vermelho original que é do Rio de Janeiro, mas o Comando Vermelho de Rondônia, do Ceará, não necessariamente têm uma relação orgânica com o Rio de Janeiro, no sentido de prestar contas sobre o poderio econômico, dos números de venda de drogas, do comportamento de seus membros – esses membros nos outros estados são independentes. O Comando Vermelho do Rio de Janeiro não vai agir, digamos, se um líder do Comando Vermelho do Ceará cometer um erro de acordo com as regras da organização, vai ser o próprio CV do Ceará que vai decidir como punir isso. No PCC não, você tem uma descentralização na gestão, até pelo tamanho da organização, mas você tem instâncias vinculadas com outras que, no fim das contas, estão relacionadas à cúpula em São Paulo. Ou seja, você tem uma organicidade. No Comando Vermelho, não. Você tem autonomia nos estados, não tem uma vinculação necessária com um comando central no Rio de Janeiro.

Há algum risco de vermos no Brasil um cenário semelhante ao que ocorreu no México, com múltiplas facções dominando parcelas do território nacional e em guerra umas com as outras?

Os grupos brasileiros são bem diferentes dos cartéis mexicanos. Por exemplo, no Brasil, esses grupos foram criados dentro das prisões. Ao contrário do México, onde os cartéis já se constituíram a partir da economia da droga, no Brasil todos os grupos têm uma relação umbilical e muito forte com a prisão. A prisão os produziu. A prisão ainda é um locus principal de poder desses grupos. Essa é uma diferença importante em relação ao México. Outra diferença fundamental é que os cartéis mexicanos atuam numa rede cujo destino final é o mercado estadunidense. Eles exportam para os Estados Unidos e para outros países europeus. As facções brasileiras, ao menos até este momento, atuam predominantemente no mercado nacional – elas ainda não adquiriram esse caráter transnacional. Por mais que se fale muito, por exemplo, na transnacionalidade do PCC. Ele de fato está presente no Paraguai e na Bolívia, mas o mercado dele é o Brasil. Ele está nesses países porque são países produtores de maconha e cocaína, mas o principal mercado é o Brasil. Isso também dá uma outra dimensão ao cenário daqui. O escopo de atuação e de valores envolvidos ainda é muito diferente do das organizações mexicanas. Outro fator é que o PCC, por exemplo, possui a chamada “ética do crime” ou “disciplina”. Eles evitam a violência o quanto possível. A violência não é a primeira opção do PCC, sobretudo de 2006 para cá. A violência é sempre um elemento do qual pode ser lançado mão, mas ela nunca é a primeira opção. Por exemplo, em São Paulo, a hegemonia do PCC por aqui acabou causando a redução dos homicídios nos últimos 15 anos. Nos outros estados, há essa violência por parte do PCC porque houve essa ruptura com o Comando Vermelho. E a guerra é a guerra. Se a gente analisar o momento em que houve a ruptura, em 2016, os salves do PCC antes de formalizar o rompimento eram no sentido de tentar evitar o conflito. O PCC tem essa lógica empresarial, mas também é pautado numa ética de que o crime tem que se unir e ir contra o Estado. Sempre que é possível, eles buscam essa união. É interessante observar que o próprio PCC, antes do rompimento, tentou evitar a guerra, tentaram se comunicar com o Marcinho VP [traficante apontado como uma das principais lideranças do Comando Vermelho]. Mas até pela estrutura do Comando Vermelho, de dar autonomia a cada região, mesmo o Marcinho VP querendo, ele não tinha a capacidade de interferir nas reações dos estados. Do ponto de vista, por exemplo, do PCC seria difícil pensar num cenário como o mexicano porque o PCC, dentro de sua lógica de atuação, evita ao máximo usar a violência. Mas é claro que eles têm sim um perfil monopolista e, portanto, eles têm essa prática de avançar para mercados onde não têm uma presença significativa. Claro que, por esse perfil, eles podem vir a causar cenários de violência e competição, como o que estamos vendo hoje.

Muita gente associa o conflito na favela da Rocinha, no Rio de Janeiro, como um desdobramento da ruptura entre o PCC e o CV. A área seria dominada há anos pela facção ADA (Amigos dos Amigos), mas, após a prisão do traficante Nem, membro da ADA, o novo comandante da área, Rogério 157, teria se aliado ao CV. Depois do rompimento, o PCC teria então se unido à ADA e fornecido armas para retomar o território. No início do ano, houve relatos de toques de recolher nas periferias de São Paulo que estariam sendo levados à cabo pelo Comando Vermelho e a Família do Norte em associação com facções rivais ao PCC em São Paulo, como o CRBC (Comando Revolucionário Brasileiro da Criminalidade). Há risco do conflito entre as facções assumir esse caráter de disputa territorial nas maiores cidades do país?

O cenário do Rio de Janeiro é muito complexo. Tanto que o Comando Vermelho nunca foi a única facção. Desde o surgimento do CV, no final da década de 1970, logo em seguida já surgiu uma dissidência que seria o Terceiro Comando. O Rio de Janeiro sempre viveu esse cenário de guerra entre as facções. O Terceiro Comando também teve uma dissidência, de onde surgiram os Amigos dos Amigos, depois o Terceiro Comando Puro. Então, a situação do Rio de Janeiro é muito particular, nunca houve uma facção só. A situação de São Paulo é igualmente particular. Porque desde que o PCC surgiu, não havia nenhum grupo organizado dentro das prisões, fora das prisões o tráfico era totalmente pulverizado, não tinha grupos organizados. Nesse cenário, o PCC conseguiu com sucesso eliminar os grupos que se insurgiram contra ele na década de 90 e eliminou praticamente todos esses grupos. Sobrou praticamente um grupo, que é o CRBC, que sempre teve uma atuação muito restrita. No caso dos presídios, eles sempre atuaram na penitenciária José Parada Neto, em Guarulhos, e em um ou dois outros presídios espalhados pelo estado. Se no Rio de Janeiro você tem historicamente uma situação de conflito, em São Paulo o PCC conseguiu construir uma hegemonia no estado. De fato, houve esses boatos recentemente – vídeos na internet com supostos membros do PCC sequestrando, amarrando e torturando membros supostamente ligadas a outras facções como o CV, o CRBC e a Família do Norte. Mas analisando isso, eu considero que pode ter sido mais algum caso pontual que tenha ocorrido que depois acabou gerando um boato via Whatsapp espalhando terror em algumas regiões. Mas acho muito difícil que algum desses grupos consiga se estabelecer em São Paulo porque veja, o PCC domina os presídios e são 170 unidades prisionais, 240 mil presos hoje no estado e está muito consolidado nas regiões periféricas. Além disso, o PCC é praticamente o único distribuidor de drogas aqui para São Paulo. Como é que numa situação dessas vai ser possível que outros grupos entrem em um estado em que está tudo mais ou menos equilibrado? Acho que a única possibilidade seria um racha dentro da facção, mas ainda não há nada que aponte para isso. Ou com a ajuda de forças de segurança. No caso do Rio de Janeiro, é possível. Como você tem várias facções lá, já é outro cenário. Quando o PCC rompeu com o Comando Vermelho, eles anunciaram a aproximação com a ADA. E no Rio há muita fragmentação: é como se você tivesse um sindicato de traficantes. Então o morro X é do fulano do Comando Vermelho, o morro Y é do beltrano. É muito fragmentado, é quase como se cada morro tivesse uma estrutura própria. Por exemplo, na Rocinha, o que foi noticiado é que houve um racha entre o Nem e o seu sucessor e homem de confiança, o Rogério 157. É uma ruptura entre o ex-chefe e seu subordinado que provocou aquela guerra. O fato dele ter sido ADA não teve a princípio nenhuma relação com a disputa. Agora, quando houve a ruptura os outros morros da ADA apoiaram o Nem e o Rogério, como tinha que se aliar com alguém, foi se aliar com o Comando Vermelho, um inimigo histórico da ADA. São alianças muito ocasionais. A situação do Rio é muito instável, dinâmica. As alianças são sempre muito pontuais. Agora, é possível que o PCC tenha emprestado armas para a ADA? É possível. Mas até onde eu sei, o Rio de Janeiro é um estado onde nunca houve um interesse por parte do PCC de entrar para controlar territórios, justamente por essa fragmentação. O mesmo acontece na Bahia, onde também há uma fragmentação enorme, com cinco ou seis grupos que disputam o território. O PCC não é inimigo de nenhum lá, ele fornece para todo mundo. É até estratégico. Há lugares onde não há interesse de entrar em conflito com os grupos locais. Há uma guerra tão grande que as perdas serão maiores do que os lucros, porque a situação é de muita instabilidade.

O marco da ruptura entre o PCC e o Comando Vermelho foi de fato o assassinato do traficante paraguaio Jorge Rafaat Toumani a tiros de metralhadora antiaérea por membros do PCC? Fala-se que após o assassinato de Rafaat, o PCC teria ficado com o monopólio da entrada da cocaína pela fronteira com o Paraguai, o que fez com que o CV reforçasse sua aliança com a Família do Norte para lucrar com a cocaína pela chamada rota do Rio Solimões, além das alianças com o PGC, em Santa Catarina, e o Sindicato do Crime, no Rio Grande do Norte, como uma espécie de reação. Como você avalia essa narrativa?

Na época, eu estava realizando uma pesquisa ali na região de Ponta Porã [cidade sul matogrossense vizinha  ao município de Pedro Juan Cabalero, no Paraguai, onde Rafaat foi morto] e posso dizer com toda a tranquilidade que foi uma coincidência o assassinato do Rafaat e a ruptura do Comando Vermelho com o PCC. Esses fenômenos não estão diretamente relacionados. Eu entendo que a ruptura acontece por uma competição entre as facções que se dá dentro das prisões. O PCC e o Comando Vermelho passam a disputar as prisões que eles controlavam pelo batismo de novos membros, principalmente nos estados onde até então não havia facções muito estabelecidas. Essa tensão começa mais ou menos em 2015. O Comando Vermelho proíbe o PCC de batizar no Mato Grosso, o PCC proíbe o Comando Vermelho de batizar no Mato Grosso do Sul. A tensão começa antes e muito relacionada ao sistema carcerário, à disputa pela expansão no sistema carcerário, não tinha nenhuma relação com a questão de rotas do tráfico de drogas. Quando essa ruptura é anunciada, em junho de 2016, ela está ligada à questão dos presídios. Mas simultaneamente a isso, por puro acaso, o PCC também tinha há mais de uma década uma presença muito significativa sobretudo na fronteira com o Mato Grosso do Sul e o Paraná – o PCC tinha mais gente ali, mas o Comando Vermelho também tinha, não havia propriamente um monopólio. O Rafaat era um traficante, empresário entre aspas, brasileiro-paraguaio daquelas famílias típicas de região de fronteira que estava incomodado com a presença mais intensa sobretudo do PCC e por esse traço monopolista do PCC. Eles não queriam ser mais um grupo a atuar no comércio de drogas, como tantos outros que existem, a tendência deles é de tentar exercer uma hegemonia e o Rafaat não aceitava isso. No ano que antecedeu a morte dele, o Rafaat vinha sistematicamente tentando identificar e matar integrantes do PCC – e foram muitas mortes. Além disso, ele atuava junto com a polícia denunciando membros do PCC. Os grupos ligados ao PCC já tinham tentado matar o Rafaat antes, em março, por exemplo, até conseguirem em junho. Eram dinâmicas que vinham caminhando juntas, mas não havia uma relação direta de uma com a outra. É claro que indiretamente tem: você tem a pretensão monopolista do PCC presente tanto na morte do Rafaat, quando na disputa com o Comando Vermelho, mas não é uma consequência uma da outra. Sempre me coloquei contra essa análise. As informações que a gente tem não corrobora a análise de que o PCC e o Comando Vermelho romperam por causa da morte do Rafaat. Eram processos ocorrendo concomitantemente, mas com lógicas diferentes: a disputa pela população carcerária de um lado e de outro uma disputa de um núcleo local do PCC na fronteira e no Paraguai que tinha um problema com o Rafaat. Só que acabou das coisas ocorrerem concomitantemente e isso acaba acirrando tudo. Depois do anúncio da ruptura, já houve várias mortes na fronteira, mas essas sim estão relacionadas ao conflito entre as facções, mas isso foi posterior à ruptura deles nos presídios.

Imagem: A pesquisadora Camila Nunes Dias escreveu o livro PCC: hegemonia nas prisões e monopólio da violência (Foto: Arquivo Pessoal)

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