Em assembleia, 8 mil famílias se despedem do acampamento Povo Sem Medo. Nova fase de luta é por recursos para construção das moradias. E resistência pela liberdade de Lula
por Sarah Fernandes, especial para a RBA
“A gente se acostumou, não é?! Vamos ter saudades”, comenta uma senhora na mega ocupação Povo Sem Medo, no ABC paulista, enquanto espera o início da última assembleia, com as mochilas já arrumadas. Ela faz parte das 8 mil famílias que se abraçam e se despedem com sorriso largo no rosto: foram sete meses e seis dias de resistência, acampados em barracos de lona, nesta que se consagrou como a maior ocupação do país.
Após superar pressão do poder público e da Justiça, hostilidades de vizinhos e barreiras policiais, as famílias deixam a área com a conquista de quatro terrenos e iniciam nova fase da luta: mobilização para conquista de recursos para construção das moradias e militância pela liberdade do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, preso político desde sábado (7) em Curitiba.
“Estou aqui desde o começo, todos os dias. Hoje desmontei meu barraco”, conta emocionada a dona de casa Marinalva, de 63 anos, que vivia de favor com o filho em uma casa de um cômodo da favela do DER, em São Bernardo do Campo. A sigla é uma alusão ao Departamento de Estradas de Rodagem do estado de São Paulo, já que os primeiros barracos foram de operários que trabalhavam na abertura da Via Anchieta. “Fiquei aqui nem por mim, mas pelo meu sobrinho, que é cadeirante e tem 29 anos. Quando ele volta do tratamento é preciso carregá-lo nas costas ladeira acima, já que carro nenhum chega. Eu quero que ele tenha mais dignidade.”
A poucas quadras dali, o jovem desempregado Luiz Henrique Silva do Nascimento, de 23 anos, leva mais tempo para derrubar o barraco. “Me dá um negócio no coração. Foram sete meses vivendo aqui”, diz. Da luta, além da conquista do terreno para realizar o sonho da casa própria, ele leva também a namorada, que mora em um casa vizinha à área, construída em mutirão após uma ocupação bem sucedida em um terreno da Igreja Católica. “Aprendemos a lutar juntos e passamos por muita coisa aqui”, afirma o rapaz, que vive de bicos e nunca teve a carteira assinada. Agora ele irá para a casa da mãe, em Diadema, enquanto aguarda as próximas etapas das obras.
Luiz Henrique leva também a amizade com o barbeiro e tatuador Willian Patrício dos Reis. Ele aguarda uma definição do movimento sobre para onde irá até que as casas fiquem prontas, já que não tem família para abrigá-lo. “Aqui eu conheci muita gente boa e aprendi demais sobre ajuda e união. Nunca tinha sido acolhido assim em nenhum local”, disse. O movimento tenta acomodar quem não tem para onde ir em outras ocupações.
Minha Casa Minha Vida
“O aluguel consome quase toda nossa renda. Vamos continuar na luta e conseguir nossa casa, que vai mudar nossa vida”, afirma a aposentada Alaíde Roda, de 62 anos, que vive com o marido também aposentado Renato de Oliveira, de 67 anos. “Muitas vezes nós temos que catar latinhas para comprar mistura. A coisa está muito difícil e piorou muito. Eu lembro que na época do Lula eu conseguia encher um carrinho no supermercado.”
Em clima emocionado, as famílias receberam neste domingo (8) uma cópia do acordo firmado entre o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) e o governo do estado de São Paulo garantindo a cessão dos quatro terrenos, um em São Bernardo do Campo, dois em Mauá e outro em Diadema. O próprio movimento será o responsável pelo projeto das moradias. Agora, uma das principais reivindicações é que as obras sejam financiadas pelo programa Minha Casa Minha Vida Entidades, na chamada Faixa 1, para famílias com renda mensal de até R$ 1.800.
“Hoje muda a fase da luta. Vencemos a primeira etapa, que foi a mais dura. Agora vamos para a segunda, e vamos aprovar o projeto para esse papel virar obra”, disse o coordenador nacional do MTST, Guilherme Boulos, pré-candidato à Presidência da República pelo Psol. “Muita gente disse que vocês sairiam daqui com bombas de polícia e que não daria nada. Outros nos criticaram muito. Nossa luta não é para tirar nada de ninguém, mas para garantir que tenhamos o mesmo direito que eles. Se o Brasil fosse um país justo, não precisaríamos ocupar para ter moradia. Hoje nós saímos daqui de cabeça erguida.”
Lula livre
Além da construção das moradias, os ocupantes de São Bernardo também se nortearão por outra reivindicação central: a liberdade de Lula, entendida pelo movimento como um ataque à democracia e aos direitos individuais. “Contra Michel Temer existem gravações dele fazendo acordo para manter o silêncio de Eduardo Cunha e ele está no Palácio do Planalto. Contra (o senador) Aécio Neves (PSDB-MG) existem gravações pedindo dinheiro (ao empresário) Joesley Batista e ele está em Brasília. Contra Lula não existem gravações, malas, documentos. Não existe nada. E ele está preso. Isso é justo?”, questionou Boulos em assembleia.
Com gritos de “Lula Livre” milhares de manifestantes marcharam da ocupação até a sede da prefeitura de São Bernardo do Campo no primeiro ato em apoio a liberdade de Lula. “Só a unidade do povo é capaz de dar uma resposta e tirar Lula da cadeia”, disse o deputado federal Ivan Valente (Psol-SP).
Uma história de luta
A ocupação teve início em 2 de setembro do último ano, com um grupo de 500 famílias. Em poucos dias, o número de ocupantes havia saltado para 8 mil. Nas centenas de barracos de lonas pretas que tomaram a área estavam crianças, idosos e trabalhadores, na maioria desempregados, que por sete meses compartilharam banheiros, cozinhas comunitárias e o sonho a casa própria.
O terreno, localizado entre a fábrica de caminhões Scania e um condomínio de prédios residenciais, pertence à construtora MZM, estava desocupado há pelo menos 30 anos. Em 2014 a administração municipal de São Bernardo, sob a gestão do prefeito Luiz Marinho (PT), notificou a proprietária pelo não cumprimento de função social e exigiu um plano de parcelamento da área, que nunca ocorreu.
Após a ocupação, a reação da construtora foi rápida: ingressou com pedido de reintegração de posse no mesmo dia e em um episódio de celeridade da Justiça conseguiu liminar do juiz Fernando de Oliveira Ladeira autorizando a Polícia Militar a executar a ordem de despejo.
Mesmo após uma série de negociações no Grupo de Apoio às Ordens Judiciais de Reintegração de Posse (Gaorp) – uma iniciativa do Tribunal de Justiça de São Paulo formada por representantes do Judiciário e dos governos federal, estadual e municipal, do Ministério Público e da Defensoria Pública para tratar de reintegração de alta complexidade – o juiz ordenou, em setembro, que as famílias desocupassem a área em 72h. O movimento recorreu e conseguiu suspender temporariamente a decisão.
Um mês depois, porém, os três desembargadores da 20ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo decidiram manter a reintegração de posse, por unanimidade. Ela ficou condicionada a uma reunião do Grupo de Apoio às Ordens Judiciais de Reintegração de Posse (Gaorp) marcada para 11 de dezembro, com representantes do governo federal e estadual, da prefeitura de São Bernardo e com a construtora.
Para garantir a permanência na área, as famílias marcharam por 23 quilômetros, da ocupação até o Palácio dos Bandeirantes, no Morumbi, em um trajeto cumprido em 10 horas, em novembro. Representantes foram recebidos por deputados estaduais e pelos secretários do governo Alckmin Samuel Moreira (Casa Civil) e Rodrigo Garcia (Habitação), que iniciaram uma série de negociações com o movimento.
Em dezembro, pelo menos 900 integrantes do MTST ocuparam a sede da Secretaria estadual de Habitação de São Paulo, no centro da capital paulista, para pressionar o governo. Após diversas negociação, ficaram garantidos, no último mês, os quatro terrenos para construção de moradias populares para o movimento. Todas as famílias que participaram da ocupação foram cadastradas e serão priorizadas na entrega dos apartamentos. Os integrantes continuarão participando de assembleias mensais para definir os rumos do projeto.
“Essa vitória é um motivo de grande alegria, apesar da conjuntura do país. Lutar vale a pena e temos que continuar resistindo. Estamos no início de um processo. Estamos só começando”, disse a coordenadora da ocupação, Andréia Barbosa da Silva. “Essa é uma vitória histórica para a luta por moradia, mas ela não termina aqui. A luta segue porque eu também quero ter escola boa para o filho, acesso à universidade, saúde. Quero ser cidadão. Sempre me perguntam: ‘qual o seu projeto?’. O projeto é ser feliz”, disse o diretor administrativo do Sindicato dos Metalurgicos do ABC, Moisés Selerges. “Essa foi uma das maiores vitórias do povo nos últimos tempos”, defendeu o deputado Ivan Valente, em assembleia.
Durante todo período que estiveram ocupados, o prefeito de São Bernardo, Orlando Morando (PSDB), se negou a receber os ocupantes. Uma comissão chegou a ser recebida pelo secretário de Assuntos Jurídicos, José Carlos Pagliuca, que apenas reiterou que o município já possui uma política de habitação. Em 12 de setembro, o prefeito postou vídeo em seu perfil no Facebook se posicionando contra a ocupação e afirmado que a “área é particular, razão pela qual a prefeitura não pode fazer nenhuma intervenção direta. Nem por isso estamos fugindo desse problema. Estamos enfrentando e apoiando”, disse. “A prefeitura irá dar todo o suporte necessário para que a ordem judicial seja cumprida e o terreno seja devolvido aos seus proprietários.”
Na mesma época, síndicos e subsíndicos de 14 condomínios na avenida paralela à ocupação criaram o Movimento Contra Invasão em São Bernardo do Campo (MCI) para cobrar que a Justiça retirasse os ocupantes do terreno, alegando que a ocupação trazia insegurança ao bairro e que a área pudesse se transformar em uma favela.
Quatorze dias após o início do acampamento, o morador de um condomínio vizinho ao terreno disparou com uma arma da janela de seu apartamento contra a ocupação. Audinei Serapião da Silva foi atingido com no braço e socorrido no pronto socorro central da cidade. Ele foi operado para que houvesse a retirada do projétil.
Em 30 de oututbro, a ocupação foi foco de mais uma polêmica: a juíza Ida Inês Del Cid, da 2ª Vara da Fazenda Pública de São Bernardo do Campo, proibiu os cantores Caetano Veloso, Emicida e Criolo de realizar um show de apoio ao movimento, sob pena de multa, alegando falta de segurança e estrutura. “É a primeira vez que sou impedido de cantar no período democrático”, disse Caetano na ocasião.
Na mesma noite, o vereador de São Paulo Eduardo Suplicy (PT) dormiu em um dos barracos em apoio ao movimento. Durante a tarde daquele dia, estiveram na ocupação as atrizes Letícia Sabatella, Alinne Moraes, Sônia Braga e a cineasta Marina Person. “Uma coisa fundamental na vida é comida e moradia, mas também ter o direito de se divertir, de sair com suas criança. Tem muitas coisas erradas e a única certa que estou vendo é essa ocupação e suas propostas. Eu não posso ser 100% feliz se o outro também não for,” disse Sônia Braga.
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Imagem: DANILO RAMOS/RBA