A demarcação da terra indígena Piaçaguera e o voto equivocado de Celso de Mello

Não há a necessidade da participação de estados no processo demarcatório

Por Dalmo de Abreu Dallari, no Jota

Cumprindo as determinações constitucionais, o governo federal, pelos meios próprios, procedeu à demarcação da Terra Indígena Piaçaguera, situada no Estado de São Paulo. Concluídos regularmente todos os procedimentos da demarcação com a participação de uma comissão de antropólogos e a posterior apresentação de um relatório circunstanciado, sendo assim respeitadas todas as formalidades legais, o Presidente da República editou, em 29 de abril de 2016, decreto presidencial, publicado no Diário Oficial da União nº 82, edição de 2 de maio de 2016, homologando a demarcação administrativa da Terra Indígena Piaçaguera.

Tentando opor-se a esse decreto e aos seus efeitos jurídicos, um Espólio com interesse nas referidas terras ingressou em Juízo, propondo um Mandado de Segurança no Supremo Tribunal Federal, pretendendo questionar a validade jurídica do referido decreto presidencial, alegando, basicamente, que a demarcação foi feita sem que dela tivesse tido a possibilidade de participar o Estado de São Paulo, no qual está situada a área demarcada.

Tendo por base, unicamente, o argumento de que a não participação do Estado de São Paulo no procedimento demarcatório tira a validade jurídica da demarcação, o mencionado Espólio pede que seja judicialmente reconhecida a ocorrência daquele vício jurídico, declarando-se, por via do Mandado de Segurança, a ilegalidade do decreto presidencial que homologou a demarcação. E pediu a concessão de medida liminar para suspensão imediata dos efeitos jurídicos desse decreto presidencial.

Distribuído o feito ao ministro Celso de Mello, para atuar como relator, este proferiu despacho, concedendo Medida Cautelar. Em seu despacho assinala o relator que o Estado de São Paulo formulou pedido para ingressar no processo de demarcação da referida terra indígena, o que lhe foi negado. Feita essa observação, acrescentou estas ponderações: “tenho para mim, ao menos em juízo de sumária cognição, que essa omissão (a falta de participação do Estado de São Paulo) por configurar frontal desatendimento a uma das salvaguardas institucionais definidas por esta Corte (Pet 3388/RR) teria importado em ofensa ao princípio da Federação, do que deriva a nulidade do procedimento administrativo em referência”. E nessa linha de argumentação, concluiu mais adiante: “Por tal razão, e sem prejuízo de ulterior apreciação da pretensão mandamental em causa, defiro o pedido de medida liminar, em ordem a suspender, cautelarmente, a eficácia do decreto presidencial ora questionado, sustando, em consequência, todos os efeitos jurídicos dele resultantes…até final julgamento da presente ação de Mandado de Segurança”.

Um ponto importante, que deve ser ressaltado, é que tanto na petição inicial do Mandado de Segurança quanto na decisão liminar do ministro Celso de Mello, o único ponto indicado como falha jurídica fundamental, que tornaria inválido o decreto presidencial homologatório da demarcação, é a negativa de possibilidade de participação do Estado de São Paulo no procedimento demarcatório. Isso foi afirmado e reiterado, sem a menção de qualquer outra falha jurídica, como se essa impossibilidade de participar da demarcação configurasse a ofensa a um direito do Estado de São Paulo.

Antes de tudo e tendo em conta que a única alegação de vício jurídico, que tornaria inválido o decreto presidencial homologatório da demarcação, foi a não participação do Estado de São Paulo no processo demarcatório, é necessário assinalar que a participação dos Estados em processos demarcatórios de áreas indígenas não está prevista, direta ou indiretamente, em nenhum dos dispositivos constitucionais que estabelecem as competências dos Estados. Como também não está prevista na legislação que trata do procedimento demarcatório das áreas indígenas. Com efeito, diz a Constituição de 1988, no artigo 25, parágrafo primeiro: “São reservadas aos Estados as competências que não lhes sejam vedadas por esta Constituição”. Ora, quando a Constituição dá expressamente à União, e exclusivamente a ela, determinada competência, está excluída a competência estadual. Isso é o que acontece com relação à demarcação das terras indígenas. Com efeito, diz expressa e claramente o artigo 67 da Constituição que “a União concluirá a demarcação das terras indígenas no prazo de cinco anos a partir da promulgação da Constituição”, o que ocorreu em 5 de outubro de 1988. E não há qualquer referência à participação ou co-participação dos Estados nessa tarefa. Assim, pois, a demarcação das terras indígenas não se inclui entre as competências dos Estados, não tendo qualquer fundamento jurídico a alegação de que a não participação dos Estados torna nulo o procedimento demarcatório.

A par disso, é também oportuno observar que a demarcação das terras indígenas está expressamente prevista e especificada no Estatuto do Índio, aprovado pela Lei Federal 6001, de 19-12-1973, cujo artigo 19 assim dispõe: “As terras indígenas, por iniciativa e sob orientação do órgão federal de assistência ao índio (FUNAI) serão administrativamente demarcadas, de acordo com o processo estabelecido em decreto do Poder Executivo”. E não há, nessa e em qualquer outra lei, nenhuma referência à participação dos Estados no processo demarcatório. Assim, pois, como o único argumento para por em dúvida a validade jurídica da demarcação da Terra Indígena Piaçaguera foi a não participação do Estado de São Paulo no procedimento demarcatório pode-se concluir, sem qualquer dúvida, que não existe base jurídica para sustentar a pretensão de declaração de nulidade do decreto homologatório da demarcação.

Resta indagar agora qual o recurso cabível para tornar sem efeito a decisão monocrática de um ilustre membro do Supremo Tribunal Federal concedendo liminar suspendendo temporariamente a eficácia do decreto presidencial homologatório da demarcação. No novo Código de Processo Civil, aprovado pela Lei 13.105, de 16 de março de 2015, a matéria é disciplinada pelo artigo 1021, que assim dispõe: “Contra decisão proferida pelo relator caberá agravo interno para o respectivo órgão colegiado”. Por tudo isso, em vista a inexistência de real fundamento jurídico para a concessão monocrática da liminar cabe recurso de agravo, que dará ao Tribunal a oportunidade de preservar a plena eficácia do decreto presidencial homologatório da demarcação da Terra Indígena Piaçaguera.

Dalmo de Abreu Dallari – Jurista, professor aposentado da Faculdade de Direito da USP.

Foto: Ninja / Mobilização Nacional Indígena

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