Por Priscilla Mayrink, no Rio On Watch
Definir o que é favela é uma tarefa difícil. Muitos moradores e pesquisadores já mostraram aspectos tão diferentes entre favelas e intra favelas para nos fazer romper com as generalizações e com o senso comum, que a definição do que é ou não favela se torna uma tarefa de grande complexidade. No entanto, apesar de tantas desconstruções, não é incomum ouvir a síntese de que favela é um espaço ou um assentamento informal da cidade, que surgiu e que segue existindo na informalidade. Normalmente, esse discurso surge como forma de opor a favela à lógica do que é reconhecida a “cidade formal”, como se fossem duas realidades opostas, e não duas faces de uma mesma moeda. Esta matéria tem, portanto, o objetivo de questionar essa oposição, compreendendo tanto o espaço da favela quanto o da não-favela como espaços desiguais produzidos a partir de uma mesma lógica.
Comumente caracterizadas como espaços informais, as favelas são sempre pensadas a partir de uma realidade urbana que seria legítima por sua formalidade: a parte da cidade que não é favela. O discurso da “cidade formal” e da “cidade informal”, como dois contrapontos de uma realidade urbana, está difundido e é muitas vezes utilizado inclusive por aqueles que tentam combater a ideia de uma cidade partida. Mas, seria mesmo a favela um espaço informal? Teriam esses espaços surgido à margem da legislação?
A construção do imaginário do espaço informal parte da ideia da ocupação de um espaço de terra até então desocupado, onde famílias pobres decidem erguer os seus barracos a partir da autoconstrução. Portanto, parte-se do princípio de que são informais porque são também ilegais–a despeito da função social da terra–já que teriam sido construídas a partir de “invasões” de terrenos e não através da aquisição de terras ou de moradias via mercado imobiliário formalizado, evidenciando o constante elo do discurso da informalidade com o da ilegalidade.
Porém, muitos dos assentamentos designados como tal surgiram, na verdade, a partir de traçados regulares, de conjuntos habitacionais projetados e, inclusive, por meio de aluguel cobrado pelos proprietários do terreno. O trabalho de muitos pesquisadores–como o de Lílian Vaz, Maria Laís da Silva, Mike Davis e da coletânea de textos “O que é favela afinal?” do Observatório de Favelas–desconstrói a visão de uma favela que nasce sempre irregular e de forma ilegal. Lílian Vaz, por exemplo, mostra em sua pesquisa que algumas das ocupações nos morros cariocas ocorreram a partir da cobrança de aluguel, o que também foi verificado por Mike Davis e por Maria Laís da Silva em outras favelas. A autora mostra a presença da cobrança de aluguel nas moradias das primeiras favelas, fossem de barracos, cavas no chão ou apenas de terrenos, o que nos mostra a presença de um mercado imobiliário desde a sua concepção. Essa verificação é confirmada por Maria Laís da Silva, em seu livro Favelas Cariocas, onde indica o grande número de ocupações que surgiram dentro de determinada legalidade, muitas vezes estimuladas pelos proprietários da terra.
Apesar de essenciais para desconstruir o senso comum, essas informações ainda giram em torno da inserção dos processos de surgimento e consolidação de favelas em um determinado marco legal. Ou seja, dentro de uma determinada formalidade, seja ela por meio da construção de habitação social que esteja dentro dos parâmetros considerados legais, ou por meio da cobrança de aluguel pelo então proprietário que seria o detentor do título de posse da terra. Contudo, apesar desses casos romperem com as generalizações a respeito das favelas, eles não rompem com a ideia da oposição entre formalidade e informalidade em sua totalidade.
Se por um lado o discurso da informalidade permite qualificar e perceber as desigualdades socioespaciais, por outro coloca a favela enquanto um espaço à parte das dinâmicas da cidade, ou seja, uma “outra cidade” com as suas próprias dinâmicas. É claro que existem diferenças entre esses espaços. Eles de fato apresentam certas dinâmicas diferentes e suas próprias especificidades, como as formas nas quais seus moradores se relacionam entre si e com o espaço. No entanto, não podemos perder do horizonte o debate mais amplo sobre a lógica de produção do espaço urbano para compreender como essas duas realidades decorrem de um mesmo processo.
Todos esses espaços estão reunidos em um mesmo contexto urbano e fazem parte de uma mesma dinâmica de produção do espaço que gera espaços desiguais–e desigualdade não é a mesma coisa que diversidade. Os marcos legais que regem a considerada “cidade formal” foram os mesmos que geraram o surgimento das favelas. O interesse do poder público em realizar obras de infraestrutura em determinados locais e não em outros, de financiar habitação de qualidade para uma classe e não para outra ou dos agentes privados se interessarem por um determinado público e não em outro, fazem parte da mesma lógica. Como exemplo, podemos falar sobre o interesse de investimentos em obras de melhorias urbanas em locais privilegiados, já que estes tanto serão mais atraentes aos investidores quanto permitirão a ampliação da extração da renda da terra urbana. Portanto, apesar das especificidades, as ditas “cidade formal” e “cidade informal” fazem parte da mesma dinâmica urbana, política e econômica.
Enquanto o debate se pautar no contraponto entre formalidade e informalidade como algo dicotômico, onde a “cidade informal” deve ser incluída nos parâmetros do modelo da “cidade formal”, não problematizando seus marcos legais, estaremos apoiando as dinâmicas excludentes, segregadoras e negligenciadoras que sempre estiveram presentes na nossa sociedade. Uma boa exemplificação de como não basta incluir o que é considerado informal em uma lógica formal é a distribuição de títulos de propriedade por meio de regularização fundiária em favelas. Esse processo fornece os meios para que os agentes do mercado imobiliário tenham a segurança necessária para atuar nesses espaços de forma intensa, o que pode gerar um processo de gentrificação. Com isso, as estruturas não são transformadas, e os pobres urbanos seguirão sendo expulsos de seus locais de moradia quando essa terra for valorizada.
A favela não surgiu à margem da lei, do mercado imobiliário ou de todo o sistema que está posto. Ela surgiu como consequência desta combinação. A favela existe e resiste dentro da legalidade da negligência, das ausências, das políticas de remoções, dentro da legalidade e formalidade de um mercado espoliador. A presença e a ausência são escolhas políticas, faces de uma mesma moeda. Portanto, desde o seu surgimento, a favela foi formalizada pela negligência, pelas políticas elitistas, hegemônicas, de expulsão, de remoção e por um mercado que tem como essência a busca pelo lucro e a manutenção das relações de poder.
A quem serve esta “cidade formal”? A quem serve esta espécie de formalidade? Seria ela um modelo a ser seguido? Precisamos aprofundar esse debate, romper com a dicotomia e com o senso comum para criarmos saídas que garantam o direito à cidade. Desconstruir o título de informalidade para a favela não é relativizar o abismo que existe entre estes espaços com as áreas privilegiadas da cidade, mas sim reconhecer que a formalidade não é neutra, ela serve a determinados interesses, privilegiando determinada classe social enquanto nega direitos à outra. Deste modo, se nota a responsabilidade dos agentes “formais” (sejam eles da esfera pública ou privada) pela produção das desigualdades, da exclusão e da pobreza. Além disso, é notório que esses agentes realizam uma série de informalidades que ferem determinados parâmetros legais, mas que apenas as informalidades atribuídas à uma determinada parcela da população são criminalizadas.
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Favela da Rocinha em contraste com os edifícios de São Conrado no Rio de Janeiro. Foto: Alicia Nijdam /Flickr