Em 5 anos, grandes multinacionais como a Monsanto e a Bayer deixaram de pagar R$ 6,8 bilhões em impostos
Maurício Angelo, The Intercept
Pouco antes de assumir oficialmente como o todo poderoso Posto Ipiranga e ministro da Economia do presidente Jair Bolsonaro, o economista Paulo Guedes ordenou que a equipe de transição passasse um pente fino nas isenções fiscais em todos os setores da economia. Reduzir as isenções ao máximo é, segundo Guedes, uma forma de eliminar o rombo nas contas do governo federal. Pois eis uma sugestão para o ministro: acabar com a mamata das isenções no setor de agrotóxicos.
Em média, os chamados “defensivos agrícolas” deixam de pagar R$ 1 bilhão ao ano em impostos. Apenas entre 2011 e 2016, foram R$ 6,85 bilhões em isenções para o setor, segundo dados consultados pelo Intercept nas atas da Receita Federal. Apesar de bilionário, o número apenas arranha a superfície da extensão total desses privilégios, já que levam em conta somente a isenção fiscal da Cofins, a Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social, e do PIS/Pasep. Os dois incidem sobre a importação e a venda no mercado interno e são revertidos para o pagamento do seguro-desemprego, por exemplo. O setor de agrotóxicos está livre desse pagamento desde 2004, quando foi aprovada a lei Lei 10.925 proposta pelo deputado Mario Negromonte, do PP baiano, ex-ministro das Cidades e hoje alvo de uma denúncia da PGR por corrupção passiva e ocultação de bens.
O PIS/PASEP e Cofins não são os únicos. O governo facilita o acesso a agrotóxicos com isenções tributárias também na importação, produção e venda interestadual desse tipo de produto.
As vantagens para o setor são fruto de vários projetos de lei, aprovados em épocas e governos diferentes. A importação, por exemplo, é livre de impostos por causa de uma lei de 1990, regulamentada por decreto em 2009. Há ainda uma medida de 2016 que isenta a cobrança do IPI, o imposto sobre produtos industrializados, para agrotóxicos fabricados a partir de alguns ingredientes ativos. Por fim, um convênio do Conselho Nacional de Política Fazendária, o Confaz, reduziu em 60% o ICMS, o imposto sobre circulação de mercadorias, na venda de agrotóxicos entre estados brasileiros.
Mais próximo da realidade: R$ 1,2 bilhão por ano só em SP
O caso do estado de São Paulo é emblemático. O estado gasta mais em isenções para agrotóxicos que o governo federal – R$ 1,2 bilhão de SP contra R$ 1 bilhão da União, segundo um levantamento do procurador Marcelo Novaes, da Defensoria Pública de São Paulo em Santo André, de 2015.
O dinheiro equivale ao rombo orçamentário médio do governo estadual de SP nos últimos anos, também de R$ 1,2 bilhão, ou o orçamento anual da Secretaria de Agricultura do estado. O dado, confirmado pela Diretoria de Estudos Tributários e Econômicos da Secretaria Estadual da Fazenda, pode ser ainda maior, já que a secretaria dificulta o acesso completo às informações, apesar dos inúmeros pedidos de Novaes.
“Nós temos uma legislação tributária perversa, que transfere renda do trabalhador para os setores rentista e agroindustrial. E tudo isso vira dívida pública. Quando eu falo de subsídio para agrotóxicos, estou falando de dívida pública”, me disse o procurador.
O convênio do Confaz que permite reduzir em até 60% a base de cálculo do ICMS de produtos como os agrotóxicos é questionado por uma ação do PSOL. A procuradora-geral da República, Raquel Dodge, já se manifestou contra cortar impostos para a compra de agrotóxicos. “Ao estipularem benefícios fiscais aos agrotóxicos, [os impostos] intensificam o seu uso e, portanto, sujeitam o meio ambiente, a saúde e a coletividade dos trabalhadores aos perigos inerentes ao manuseio em larga escala [de agrotóxicos]”, escreveu Dodge em um parecer publicado em outubro.
O que se sabe ainda está longe de ser um raio-x completo do problema: agrotóxicos são considerados insumos agrícolas e, nessa condição, a despesa dos agricultores é abatida integralmente do imposto de renda de pessoa física e jurídica e da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido. Outro fator importante: 84% das renúncias fiscais no país têm prazo indeterminado e 44% não são fiscalizadas, de acordo com relatório do TCU. Ou seja, falta transparência e em boa parte dos casos um acompanhamento real sobre a efetividade desses subsídios. Em 2017, os benefícios tributários no geral alcançaram R$ 354,72 bilhões, correspondendo a 5,4% do PIB.
Orçamento público estrangulado, multinacionais satisfeitas
Somente em 2016, de acordo com o sindicato dos produtores de agrotóxicos, o Sindicato Nacional da Indústria de Produtos para Defesa Vegetal, o faturamento da indústria de agrotóxicos no Brasil foi de US$ 10 bilhões – cerca R$ 40 bilhões na cotação atual. Como o setor é isento de imposto de renda, são R$ 40 bilhões sem tributação, isso independente do risco que oferecem, sem distinção em relação a quanto é tóxico para a saúde e o meio ambiente.
Em países como Canadá, Bélgica, Dinamarca, França, Itália, Holanda, Noruega, Suécia e outros, a taxação dos agrotóxicos é definida de acordo com o potencial dano ambiental associado ao uso de cada produto. Essa taxação, inclusive, determina da sinalização de toxicidade na embalagem até seu preço de mercado.
Uma pesquisa apontou que dos 504 agrotóxicos liberados no Brasil, 30% são proibidos na União Europeia pelos riscos que oferecem à saúde e ao meio ambiente e que o agronegócio. Foto: Dirceu Portugal /Fotoarena/Folhapress
Campeões de agrotóxicos
O Brasil vendeu 551 mil toneladas de agrotóxicos em 2016, segundo dados do Ibama. Entre 1990 e 2012, o uso de pesticidas no país explodiu: incríveis 606% de aumento, contra 135% na China, 151% no Canadá e 166% na Colômbia, de acordo com dados da FAO, Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura. O aumento tem relação com a expansão do cultivo de soja nos estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia.
O uso de pesticidas no Brasil se concentra, em especial, nas regiões em que predomina a produção em larga escala de produtos como a soja, o milho e a cana de açúcar, sobretudo no centro oeste, avançando sobre a Amazônia no norte do Mato Grosso, a fronteira do Matopiba (Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia), e boa parte do sul e sudeste. E também está entre os maiores do mundo. São ao menos 7 kg por hectare, mais que o dobro do verificado em 2000 (3 kg/ha) e quase três vezes maior que o dos EUA (2,6 kg/ha), considerados um dos países que mais usa agrotóxicos no mundo.
O glifosato, por exemplo, veneno que causou recentemente a condenação da Monsanto nos EUA em US$ 289 milhões por comprovadamente causar câncer, é o mais utilizado no Brasil, com mais de 30% do mercado. Consumimos hoje cerca de 500 mil toneladas de glifosato, a mesma quantidade que usávamos de todos os agrotóxicos em 2000.
Agricultura familiar à mingua
Todo o cenário de facilidades para agrotóxicos, que inclui na classificação de “defensivos agropecuários” ou “fitossanitários”, de acordo com a suavização dominante do discurso, produtos como “herbicidas, inseticidas, rodenticidas, fungicidas, inibidores de germinação e reguladores de crescimento para plantas, desinfetantes e produtos semelhantes”, vale também para a indústria de fertilizantes e para a indústria química, que movimentam mais dezenas de bilhões de reais.
Esse mercado é concentrado em empresas multinacionais que passaram por processos de fusões recentes na casa das dezenas de bilhões de dólares. São conglomerados transnacionais como a Bayer-Monsanto (EUA/Alemanha), ChemChina/Syngenta (China/Suíça), DowDuPont (EUA) e Basf (Alemanha).
Na prática, são essas empresas, também, as responsáveis por oferecer assistência aos produtores rurais. No Brasil, o sistema público de assistência técnica rural é insuficiente, não alcançando nem 50% dos agricultores familiares, segundo a Associação Brasileira das Entidades de Assistência Técnica e Extensão Rural. Por isso, muitas vezes os pequenos produtores ficam “reféns” dessas grandes empresas produtoras de agrotóxicos que oferecem “ajuda” em troca do uso de seus produtos.
Sem acesso a orientação quanto ao uso correto dos agrotóxicos eles também não têm acesso a alternativas mais sustentáveis. Muitos agricultores também só têm acesso a determinados financiamentos se comprovarem o uso de agrotóxicos, relacionados a garantia de produtividade.
O modelo de produção já foi questionado pelo TCU. Em um relatório, o tribunal afirmou que é preciso impedir “a imposição aos trabalhadores agrícolas da adoção do modelo de produção convencional (obtenção de crédito rural condicionada ao uso de agrotóxicos), sem assistência técnica adequada e suficiente”.
Os produtores rurais também têm incentivos na forma de crédito para atuarem com agrotóxicos. Dados extraídos da Matriz do Crédito Rural do Banco Central mostram o favorecimento serial para o agronegócio em contrapartida à agricultura familiar. De janeiro de 2013 (primeiro ano disponível) a janeiro de 2018, o valor pago em diversas fontes de financiamento nas modalidades “aquisição de insumos para fornecimento aos cooperados” e “aquisição de insumos em geral” somam mais de R$ 21 bilhões. Foram R$ 14,6 bilhões para contratos de custeio (que cobrem despesas normais dos ciclos produtivos) e R$ 6,6 bilhões na modalidade “correção intensiva do solo”.
É nessa última modalidade que estão presentes os valores para compra de todo tipo de agrotóxicos, fertilizantes e demais “defensivos” agrícolas. A falta de transparência em agregar vários itens em termos genéricos mostra a pouca disposição em revelar quem recebe o quê.
E esse cenário não dá sinais de que será revertido, apesar de uma recomendação do TCU de que o imposto sobre agrotóxicos passe a levar em conta o risco à saúde humana e ao meio ambiente. Basta lembrar que, caso resolva seguir nossa sugestão, Guedes terá de encarar o peso da bancada ruralista liderada pela sua colega de ministério, a deputada Tereza Cristina, do DEM-MS, conhecida como a “Musa do Veneno”, agora a frente também da pasta da Agricultura.
Edição: The Intercept
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