Publicada, afinal, Resolução que disciplina a responsabilidade do Ministério Público em relação a povos indígenas e comunidades tradicionais, incluindo a prevenção do genocídio

Tania Pacheco

O Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) tornou pública a Resolução nº 230/2021, aprovada por unanimidade no dia 25 de maio para disciplinar a atuação do MP junto a povos indígenas e comunidades tradicionais.

A Resolução tem por base os artigos 215, 216, 231 e 232 das Constituição de 1988; o art. 68 do Ato de Disposições Constitucionais Transitórias; a Convenção 169 da OIT (sob ataque direto no Congresso); e outros tratados internacionais internalizados pelo Brasil para estabelecer as responsabilidades do Ministério Público para com essas populações.

Considera ela ainda a luta global contra o racismo, a discriminação racial, xenofobia e intolerância, assim como “o dever de prevenção do genocídio e de outras atrocidades massivas, que é responsabilidade do Estado brasileiro por força da Convenção para a Repressão do Crime de Genocídio”.

A partir dessas visões, cabe aos integrantes do Ministério Público, além de abrir suas dependências para receber representantes dos povos e comunidades, respeitando suas tradições e culturas, também visitá-los em seus territórios, sempre de forma respeitosa e, em qualquer alternativa, sempre garantindo pleno entendimento quanto a questões, direitos e propostas com eles eventualmente discutidos.

A Resolução estabelece igualmente que é dever do MP “garantir o respeito à autoatribuição por parte dos órgãos e instituições incumbidos da promoção de políticas públicas destinadas aos povos e comunidades tradicionais”. Parágrafo que talvez não deixe os atuais responsáveis pela Funai e pela Palmares muito tranquilos, mas que precisa ser cumprido à risca, nos dias que correm.

A questão do território merece tratamento especial: “o respeito aos territórios independe da sua regularização formal pelo Estado, cabendo ao Ministério Público adotar as medidas necessárias para viabilizar o seu reconhecimento e garantir que a análise de suas características não esteja limitada aos regimes civis de posse e propriedade, devendo prevalecer uma compreensão intercultural dos direitos fundamentais envolvidos, com ênfase em aspectos existenciais dos bens jurídicos em discussão.”

Abaixo, a íntegra da Resolução. Mais que necessária, não só considerando o momento atual mas, ainda, que é fundamental seu entendimento e cumprimento por todos os integrantes do Ministério Público, e não apenas pelos heroicos integrantes da 6a. Câmara de Coordenação e Revisão do MPF. Que nunca mais recebamos denúncias de procuradores da República coniventes com grilagens de terras indígenas!

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CONSELHO NACIONAL DO MINISTÉRIO PÚBLICO

RESOLUÇÃO N° 230, DE 8 DE JUNHO DE 2021.

Disciplina a atuação do Ministério Público brasileiro
junto aos povos e comunidades tradicionais.

O CONSELHO NACIONAL DO MINISTÉRIO PÚBLICO, no exercício da competência fixada no artigo 130-A, §2º, I, da Constituição Federal e com fundamento nos artigos 147 e seguintes, e 157 de seu Regimento Interno, em conformidade com a decisão plenária proferida na 8ª Sessão Ordinária, realizada em 25 de maio de 2021, nos autos da Proposição n.º 1.00128/2020-70;

Considerando que os povos e comunidades tradicionais são grupos culturalmente diferenciados e que se se reconhecem como tais, além de possuírem formas próprias de organização social;

Considerando que os povos e comunidades tradicionais ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição;

Considerando que tais grupos possuem na territorialidade um fator de identificação, defesa e força, calcado no uso comum da terra e no modo tradicional de ocupação, o qual não se constitui pelo fator temporal, mas sim por uma relação singular com a terra, em contraponto a formas hegemônicas de apropriação;

Considerando que a Constituição Federal destaca o pluralismo político (art. 1º, V) como fundamento da República e não hierarquiza os modos de vida dos grupos sociais que compõem a sociedade brasileira, o que enseja o cenário para a efetivação do diálogo intercultural;

Considerando que o diálogo intercultural pressupõe o respeito e o reconhecimento jurídico de cosmovisões, práticas e identidades, sem essencialismos ou predefinição, por terceiros ou pelo Estado, do projeto de vida a ser seguido por indivíduos ou grupos;

Considerando que a Constituição Federal estabelece um conjunto de medidas a serem observadas para assegurar a igualdade e o respeito à pluralidade dos povos e comunidades tradicionais, como se depreende dos arts. 215, 216, 231 e 232, além do art. 68 do Ato de Disposições Constitucionais Transitórias;

Considerando que tais artigos devem ser entendidos como um sistema de proteção constitucional dos povos e comunidades tradicionais, de modo a assegurar a efetivação dos direitos fundamentais desses grupos e irradiar efeitos para todo o ordenamento;

Considerando o dever do Ministério Público de defender os direitos dos povos e comunidades tradicionais, por conta da previsão contida no art. 129, V, da Constituição Federal e do sistema constitucional acima mencionado;

Considerando que a filtragem constitucional e intercultural deve permear a análise das relações sociais que envolvem povos e comunidades tradicionais, sobretudo quanto aos institutos clássicos do Direito Civil, como posse e propriedade;

Considerando que essa perspectiva está em consonância com a legislação internacional sobre a matéria, notadamente a Convenção nº 169, da Organização Internacional do Trabalho (OIT), internalizada por meio do Decreto nº 5.051/2004, e a Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais da UNESCO, internalizada pelo Decreto nº 6.177/2007 e consolidada pelo Decreto nº 10.088/2019;

Considerando que, nesse contexto, deve ser realçado o teor da Declaração Americana e da Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, que preveem o direito à autodeterminação e o direito de buscar livremente o seu desenvolvimento econômico, social e cultural;

Considerando a necessidade de leitura constitucional e intercultural da Lei nº 6.001/1973 (Estatuto do Índio) e o disposto na Lei nº 13.123/16, que trata da proteção do patrimônio genético e dos conhecimentos tradicionais, além do acesso e repartição de benefícios dos conhecimentos tradicionais;

Considerando o teor do Decreto nº 6.040/2007, que institui a política nacional de desenvolvimento sustentável dos povos e comunidades tradicionais;

Considerando que os povos e comunidades tradicionais são diversos, a serem identificados com base no conceito acima descrito, de modo que a enumeração de grupos possui caráter meramente exemplificativo, devendo as singularidades de cada povo ou comunidade ser reconhecida a partir de sua autoidentificação;

Considerando, nesse sentido, que já possuem assento no Conselho Nacional dos Povos e Comunidades Tradicionais diversos grupos, tais como povos indígenas, comunidades quilombolas, povos e comunidades de terreiro/povos e comunidades de matriz africana, povos ciganos, pescadores artesanais, extrativistas, extrativistas costeiros e marinhos, caiçaras, faxinalenses, benzedeiros, ilhéus, raizeiros, geraizeiros, caatingueiros, vazanteiros, veredeiros, apanhadores de flores sempre vivas, pantaneiros, morroquianos, povo pomerano, catadores de mangaba, quebradeiras de coco babaçu, retireiros do Araguaia, comunidades de fundos e fechos de pasto, ribeirinhos, cipozeiros, andirobeiros e caboclos (art. 4º, § 2º, do Decreto nº 8.750/2016);

Considerando a necessidade de respeito ao patrimônio cultural imaterial das comunidades, grupos e indivíduos previsto na Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial da UNESCO;

Considerando que a luta global contra o racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerância correlata e todas as suas abomináveis formas e manifestações é uma questão de prioridade para a comunidade internacional, nos termos da Declaração e Programa de Ação de Durban;

Considerando o dever de prevenção do genocídio e de outras atrocidades massivas, que é responsabilidade do Estado brasileiro por força da Convenção para a Repressão do Crime de Genocídio (art. VIII), internalizado pelo Decreto nº 30.822/1952, RESOLVE:

Art. 1º A presente resolução dispõe acerca da atuação do Ministério Público brasileiro junto aos povos e comunidades tradicionais.

Art. 2º Os órgãos do Ministério Público deverão orientar as suas unidades quanto ao atendimento dos povos e comunidades tradicionais e à recepção em suas instalações físicas com base nas seguintes diretrizes:

i. respeito à autoidentificação de pessoa ou grupo como representante de povo ou comunidade tradicional;
ii. atenção às especificidades socioculturais dos grupos e flexibilização de exigências quanto a trajes, de modo a respeitar suas formas de organização e vestimentas, bem como pinturas no corpo, adereços e símbolos;
iii. priorização do atendimento presencial e da recepção nas unidades, devendo o atendimento remoto ocorrer em circunstâncias excepcionais, devidamente motivadas, devendo ser oferecidas à pessoa atendida as condições necessárias para apresentar suas demandas;
iv. respeito à língua materna e garantia de mecanismos para a tradução ou interpretação das demandas.

Art. 3º A atuação do Ministério Público junto aos povos e comunidades tradicionais se pautará pela observância da autonomia desses grupos e pela construção de diálogo intercultural permanente, de caráter interseccional.

§ 1º A autoatribuição de identidade como povo e comunidade tradicional deve ser respeitada pelo Ministério Público, cabendo ao órgão atuar e zelar para que o Poder Público não exerça qualquer discriminação e promova a efetivação do regime jurídico que dela decorre.
§ 2º O Ministério Público deve garantir o respeito à autoatribuição por parte dos órgãos e instituições incumbidos da promoção de políticas públicas destinadas aos povos e comunidades tradicionais.

Art. 4º O diálogo intercultural deve abranger os princípios da informalidade, presença física e tradução intercultural.

§ 1º A informalidade consiste na aproximação e no estabelecimento de vínculos com os povos e comunidades tradicionais da área de atuação do órgão, por meio de uso de linguagem acessível e informação clara acerca de suas atribuições, bem como escuta permanente sobre as demandas dos grupos.
§ 2º A presença física corresponde à adoção de uma rotina periódica de visitas aos territórios para o acompanhamento de demandas e apresentação de informações, sem prejuízo da realização de reuniões na sede do órgão para a mesma finalidade ou casos urgentes.
§ 3º A tradução intercultural consiste na adoção dos meios necessários para facilitar o diálogo e permitir a compreensão da linguagem ou dos modos de vida dos grupos, valendo-se, quando necessário, de intérpretes, da antropologia e de outras áreas do conhecimento para a identificação de especificidades socioculturais dos grupos.

Art. 5º O Ministério Público deve viabilizar a observância do direito à participação dos povos e comunidades tradicionais e a necessidade de consideração efetiva dos seus pontos de vista em medidas que os afetem.

§ 1º A diretriz fundamental de participação consiste na garantia do direito à consulta prévia, livre e informada aos povos interessados nos casos específicos em que sejam previstas medidas legislativas ou administrativas suscetíveis de afetá-los diretamente;
§ 2º A ausência de consulta prévia enseja a nulidade de processos e procedimentos, cabendo ao Ministério Público zelar pela sua observância, por meio do respeito aos protocolos de consulta elaborados pelos grupos e pela cobrança de sua aplicação junto ao Poder Público.

Art. 6º O território é o eixo central em torno do qual gravitam os espaços necessários à reprodução cultural, social e econômica dos povos e comunidades tradicionais, sejam eles utilizados de forma permanente ou temporária.

§ 1º O respeito aos territórios independe da sua regularização formal pelo Estado, cabendo ao Ministério Público adotar as medidas necessárias para viabilizar o seu reconhecimento e garantir que a análise de suas características não esteja limitada aos regimes civis de posse e propriedade, devendo prevalecer uma compreensão intercultural dos direitos fundamentais envolvidos, com ênfase em aspectos existenciais dos bens jurídicos em discussão.
§ 2º O Ministério Público deve assegurar que qualquer tipo de discussão judicial em áreas situadas em territórios de povos e comunidades tradicionais acarrete a sua intervenção obrigatória.
§ 3º As remoções e os deslocamentos forçados de povos e comunidades tradicionais implicam violações de direitos humanos e devem ser evitados, devendo o Ministério Público atuar para buscar sempre soluções alternativas.

Art. 7º A elaboração, a implementação e o monitoramento de políticas públicas no território devem ser realizados junto aos Municípios, Estados e União, sem qualquer distinção, cabendo ao Ministério Público zelar pelo respeito à territorialidade, à autonomia dos grupos e às suas especificidades socioculturais.

§ 1º A instauração de expediente destinado a monitorar o acesso às políticas públicas pelas comunidades tradicionais, bem como a intervenção do membro do Ministério Público para a efetivação dos direitos fundamentais dessas coletividades independe da finalização do processo de regularização dos respectivos territórios.
§ 2º A atuação em prol de políticas públicas demanda prévio diálogo com o grupo, na forma do art. 4º, podendo abranger diversos temas, como saúde, educação, acesso a água, transporte escolar, trabalho, proteção social, energia elétrica, entre outros.

Art. 8º A intervenção obrigatória do Ministério Público em processos judiciais que tratam dos interesses dos povos e comunidades tradicionais não conduz à exclusividade na representação judicial dos grupos, devendo o órgão ministerial zelar para que eles sejam citados e intimados de todos os processos que os afetem, a fim de que possam apresentar suas manifestações de forma autônoma, sob pena de nulidade.

Art. 9º Os ramos do Ministério Público deverão, mediante prévia análise das condições estruturais de suas unidades e prévio diálogo intercultural, implementar coordenações, grupos de trabalho e núcleos destinados ao estudo, à atuação coordenada e ao aprimoramento do trabalho dos membros na atuação junto aos povos e comunidades tradicionais.

Parágrafo único. Os ramos do Ministério Público poderão organizar encontros anuais com os povos e comunidades tradicionais, nos moldes estabelecidos pela Recomendação CNMP nº 61, de 25 de julho de 2017, de forma a permitir a escuta dos grupos e estabelecer um planejamento institucional de atendimento a eles.

Art. 10. A Comissão de Defesa dos Direitos Fundamentais do CNMP criará e manterá banco de dados sobre a atuação do Ministério Público junto aos povos e comunidades tradicionais, além de divulgar periodicamente boas práticas na matéria.

Art. 11. Esta Resolução entra em vigor na data de sua publicação.

Brasília, 08 de junho de 2021.

ANTÔNIO AUGUSTO BRANDÃO DE ARAS
Presidente do Conselho Nacional do Ministério Público

Menina da etnia indígena Kaiapó . Foto de Ricardo Moraes, Reuters

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