Pessoas foram proibidas de entrar no local para velar seus parentes; terreno apropriado hoje é ocupado por monocultura
Por Catarina Barbosa, no Brasil de Fato | Belém (PA)
“A minha avó foi enterrada mais ou menos no meio do cemitério. Agora eu não sei mais onde era a sepultura dela, porque plantaram dendê em cima”, diz Raimundo Serrão, quilombola da Comunidade da Balsa, no nordeste do estado do Pará.
A família do homem viveu por muitas e muitas gerações às margens do rio Acará, tanto que seus tataravós e avós estão enterrados em dois dos quatro cemitérios que foram tomados pelo agronegócio do dendê.
O local onde a avó do quilombola foi enterrada é o mais antigo dos cemitérios, mas boa parte foi tomado pelas plantações de dendezeiros. De acordo com o relatório elaborado por pesquisadores do Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia e do Núcleo de Altos Estudos Amazônicos, da Universidade Federal do Pará NAEA/UFPA, há indícios de que o local seja do início do século XX.
Nos cemitérios, além dos parentes de Raimundo, há outros quilombolas e até indígenas, mas a entrada dos descendentes é proibida pela Agropalma, maior produtora de dendê da América Latina, cujo empreendimento está em cima do território dos quilombolas.
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Cemitérios quilombolas e indígena
Em parte da área, ocupada pela empresa privada, há quatro cemitérios, três são quilombolas e um é indígena, da etnia Tembé. Os nomes dos locais – que para muitas religiões é um lugar sagrado – são: cemitério Nossa Senhora da Batalha; cemitério do Livramento; cemitério Santo Antônio; e cemitério Indígena Tembé.
A relação de escravidão ou de aviamento, sistema de trabalho análogo à escravidão, pode ser comprovada pelos restos mortais e lápides de portugueses, quilombolas e indígenas que estão até hoje no local.
No cemitério do Livramento, por exemplo, há uma lápide com a seguinte inscrição, gravada em mármore: “Jaz aqui os restos mortais do inocente José Gonçalves Maia. Nascido em 21 de setembro de 1922. A 20 de abril de 1928, foi chamado deste mundo para juntar-se à legião de arcanjos na mansão Rosêa da grande eternidade deixando nos corações de seus querido ‘pae’ e irmãos uma saudade eterna. Rogai a Deus por nós”.
A poucos metros da lápide do filho de fazendeiro, em igualdade, ainda que ao fim da vida, estão os restos mortais de quilombolas que trabalhavam para a família Maia. As cruzes têm menos pompas, são de madeira, mas não menos importantes para quem viveu resistindo às desigualdades por séculos e séculos.
Benonias Nonato, que tem parentes enterrados no cemitério do Livramento, e seu filho Raimundo Nonato eram carpinteiros especializados na construção de caixões de madeira. Quando uma pessoa morria na vila, os dois eram imediatamente acionados para ir até a residência do falecido.
Em um artigo escrito pelos professores Rosa Acevedo e Elielson Pereira, ambos da UFPA, é narrada a forma como as pessoas eram sepultadas:
“O Sr.Benonias e Raimundo, mais conhecido como Amoroso, permaneciam por horas a fio talhando a urna. Depois, a revestiam com um pano branco chamado murim. Depois que o corpo da pessoa morta era lavado e vestido com roupa para o sepultamento, iniciava-se o trasladado até o cemitério. Nesse momento, choros, orações e falas emocionadas relembravam a memória do morto. Como na época não existia a técnica de embalsamamento, os corpos precisavam ser sepultados rapidamente, e os óbitos, sequer, constavam nos registros legais”.
Benonias, inclusive, lembra que, na época, o único meio de locomoção eram as canoas, e as distâncias eram muito longas: “Quando a gente ia enterrar um, a uma hora dessas a gente vinha suado. Vinha até bronzeado”.
A destruição
Os quilombolas contam que, em meados dos anos 2000, maquinários pesados da Agropalma entraram no cemitério do Livramento, onde a avó de Raimundo Serrão está enterrada, e removeram parte dos túmulos, assim como das cruzes e dos artefatos que marcavam o local.
No cemitério do Livramento, é possível ver que a plantação de dendê está próxima das sepulturas. Raimundo Serrão conta que a Agroplama plantou dendê em 120 metros de área que eram do cemitério, e que a empresa só parou quando foi confrontada pelos quilombolas. “Eles tiraram (o máquinário que violava o local), mas o que foi destruído, foi destruído. Como é que eles não têm respeito por um lugar sagrado, porque para a gente é um lugar sagrado, onde estão os nossos parentes”, questiona.
Clemente Souza, mais conhecido como Quelé, lembra que, em 2019, os quilombolas foram limpar outro cemitério, o da Nossa Senhora da Batalha, localizado da extinta vila Nossa Senhora da Batalha, quando foram surpreendidos por seguranças da Agropalma, que tentaram prendê-los.
“Eles não querem que a gente corte um mato lá, para limpar a área, o cemitério. Nós fomos fazer uma vistoria lá e limpamos somente um lugar lá, e eles souberam e botaram polícia para circular, para ninguém entrar mais lá”, relata Clemente.
O cemitério indígena
Além dos três cemitérios quilombolas, há um cemitério indígena constatado tanto pelo estudo da Universidade Federal do Pará (UFPA), quanto pelas próprias histórias das pessoas. Raimundo Serrão conta que, em 1965, houve um surto de sarampo na aldeia Tembé. “Dava febre, dava frio, e eles (moradores enfermos da aldeia) iam pra beira do fogo pra se aquecer. Quando esquentava que dava o calor, que a febre chegava que dava o calor, aí, eles caiam n’agua. Eles não sabiam o que era sarampo, não eram acostumados a adoecer assim, e eles caiam n’agua, e eles morriam”, conta o quilombola.
Outra pessoa que tem memória dos indígenas é Benonias, o carpinteiro de caixão. “Quando eles morriam, iam para o cemitério de Turiaçu (um dos furos que dá acesso ao rio Acará), só que o cemitério ficava distante, muito longe da aldeia. E quando eles chegavam de volta dos enterros, já tinha outros dois, três mortos”, conta.
Benoninas descreve a doença como manchas no corpo e, logo depois, a morte. Da aldeia, restaram cerca de 18 Tembé.
O local hoje é cercado por plantação de dendê e só não foi destruído pela Agropalma porque é um terreno que é alagado com a cheia do rio Acará.
Sucessão de violação de direitos
A Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) determina que qualquer obra que impacte comunidades tradicionais precisa, obrigatoriamente, não apenas consultar, mas contar com o consentimento dos membros da comunidade.
Esses quilombolas têm histórias diversas sobre a forma violenta como foram expulsos do seu território por pistoleiros em um sistema que era ou aceitar ou morrer. Contudo, para além disso, os cemitérios constam ainda como sítios arqueológicos a serem protegidos pela lei 3.924, de 26 de julho de 1961, em presente vigor no país.
O artigo 1º da norma diz: “Os monumentos arqueológicos ou pré-históricos de qualquer natureza existentes no território nacional e todos os elementos que neles se encontram ficam sob guarda e proteção do poder público, de acordo com o que estabelece o artigo 180 da Constituição Federal”.
No entanto, a Agropalma, que se instalou na região em 1982 – ou seja, posteriormente à lei 3.924, de 1961, e à existência das comunidades -, é quem hoje faz uso do território, com a monocultura do dendê.
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“De sustentável, ela não tem nada”
Em seu site na internet, a Agropalma se autodenomina como a “maior produtora de óleo sustentável da América Latina”, mas para o quilombola Raimundo Nonato, que também tem parentes enterrados no Cemitério do Livramento, a propaganda não condiz com a verdade.
“Ela diz que preserva o meio ambiente, mas não preserva o meio ambiente coisa nenhuma. Eu já cheguei no rio Acará, meti a mão no óleo, e ele vazava pelas minhas mãos. Nós já encontramos óleo de dendê várias vezes nesse rio”, conta.
A empresa tem contra si o registro de uma série de vazamentos de óleo de dendê no rio Acará (março, agosto e outubro de 2019). Esses fatos foram denunciados tanto para as Secretarias Municipais de Meio Ambiente do Acará e Tailândia, quanto para a Secretaria de Estado de Meio Ambiente do Pará (Semas). As denúncias dão conta de poluição por tibórnia, rejeito da produção de dendê, que é reutilizado pela empresa privada em forma de fertilizante, além de vazamentos de óleo no rio.
No Relatório de Sustentabilidade 2019, produzido pela própria empresa, a Agropalma admite, apenas, o vazamento de óleo de dendê, ocorrido em 3 agosto de 2019, e diz que a contaminação foi controlada no dia seguinte. No entanto, a reportagem teve acesso a fotografias e vídeos feitos em 14 de outubro de 2019, que indicam a permanência do poluente, pelo menos, até aquela data.
Além disso, muitos quilombolas afirmam que a poluição é recorrente. Um deles é Joaquim Pimenta, que mora atualmente na Vila Palmares, distrito de Tailândia, onde residem também diversos quilombolas expulsos das margens do rio Acará.
O que divide o dendezal da comunidade é, apenas, uma rua de piçara (chão de terra batida). Assim, o homem lembra da última vez em que jogaram tibórnia na plantação de dendê. “Foi um desespero. Faço parte de dois grupos de WhatsApp, e foi a noite inteira as pessoas dizendo que estavam passando mal, que o cheiro sufocava, algumas chegaram a ir para o hospital”.
Joaquim afirma que as violações são muitas, mas que nem o governo do estado nem a empresa atuam com responsabilidade com relação às vidas das pessoas. “A gente luta, não é por que a gente quer nada de ninguém, não. Nós só queremos o que é nosso por direito. A partir do momento em que tanto a Agropalma quanto o estado respeitarem os nossos direitos, para mim, é o que importa”, diz.
Além de proibir as pessoas de visitar seus entes queridos, a Agropalma proíbe os quilombolas de pescar no rio Acará e, segundo denúncias, conta com a ajuda de policias militares que atuam em Tailândia para manter um seviço irregular de segurança privada para a empresa.
“A pesca é proibida. Na época em que eu fui preso, eles alegaram que eu estava pescando dentro da área da Agropalma. Eu digo: o rio é propriedade da Agropalma ou da União? Então, uma vez que pertence à União, a Agropalma não tem poder sobre o rio”, conta Adilson Pimenta, que foi levado até a delegacia, porque estava pescando.
Contudo, o quilombola diz que o real motivo de a empresa proibir a entrada das pessoas ao rio Acará é porque o despejo de óleo no rio é constante. “Esses vazamentos, de que temos provas com fotos e vídeos, nós só temos porque, mesmo com a restrição da empresa, estávamos no rio. Se ninguém pode entrar, eles poluem o rio direto”, afirma.
Para Adilson, a Agropalma se reveste de autoridade para se autointitular como empresa com “sustentabilidade ambiental” e por preservar 64 mil hectares de florestas primárias com alto valor para conservação. “Que conservação é essa que polui o rio? Que conservação é essa que planta dendê em cima dos antepassados das pessoas, não acho que ela seja o que diz na propaganda”.
O que diz a Agropalma e o governo do Estado do Pará?
Procurada pelo Brasil de Fato, a Agropalma disse que “tem uma relação bastante profissional e transparente com a comunidade do entorno”. Sobre a existência de cemitérios no local, a Agropalma pontuou o seguinte: “a empresa apenas tomou conhecimento, após a Defensoria Pública levar à Justiça tal pedido, o qual foi indeferido pelo juízo, sem qualquer manifestação da empresa, por inexistir, na opinião do magistrado, documentação e/ou informações suficientes à identificação da localização do cemitério. Os próprios autores, posteriormente, requereram a extinção do feito”.
Sobre a poluição ambiental, ela respondeu que “todos os resíduos de produção gerados pela Agropalma são utilizados na própria empresa, como fertilizantes orgânicos (que são utilizados na área certificada orgânica) e como biomassa, utilizada como combustível nas caldeiras das indústrias extratoras para geração de vapor e energia elétrica. Não descartamos qualquer resíduo na natureza”.
Acerca das questões que envolvem o governo do Estado do Pará e a Polícia Militar, o Brasil de Fato entrou em contato com os órgãos, por e-mail e telefone, mas até a publicação desta reportagem não houve resposta.
Edição: Vinícius Segalla
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Clemente Souza, mais conhecido como Quelé, ao lado de dois mausoléus que ficam às margens do rio Acará; empresa Agropalma ocupa a área e diz que no local não há cemitérios – Catarina Barbosa/Brasil de Fato