Os povos indígenas, as eleições e a luta institucional político-partidária no Brasil

O caminho da luta institucional será proveitoso aos povos se articulado à luta das ruas e dos territórios

por Cleber César Buzatto, no Le Monde diplomatique

A luta institucional, por meio da disputa político-partidária e eleitoral, é um instrumento estratégico cada vez mais valorizado e utilizado pelos povos indígenas no Brasil. O processo eleitoral municipal de 2020 foi o de maior participação indígena na história de nosso país. De acordo com dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), foram 2.111 candidatos indígenas, o que representou 0,39% do total das candidaturas. Isso significou um aumento de 88,51% em relação às eleições de 2016, ocasião em que foram registradas 1.175 candidaturas indígenas.

Passo a passo, os povos indígenas estão ampliando os espaços de poder intra-estatais conquistados por meio desta modalidade de luta. De acordo com Bruno Lupion, nas eleições municipais de 2020, os candidatos indígenas foram 0,34% de todos os eleitos no país, contra 0,26% no pleito municipal de 2016. Segundo a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), dos 236 indígenas eleitos, 214 foram para câmaras de vereadores, dez para prefeituras e doze para vice-prefeituras. Nas eleições majoritárias de 2018, foi eleita a primeira mulher indígena como deputada federal, Joênia Wapichana (Rede/RR).

Neste contexto, mostra-se fundamental refletir sobre as potencialidades desta modalidade de luta, bem como sobre seus desafios e riscos. Uma primeira questão a ser considerada é a relação entre a luta institucional no âmbito da política partidária e das eleições, um caminho fundado no princípio da representatividade, e a luta de ações e incidências diretas, mobilizações massivas e enfrentamentos nos territórios e nas ruas que os povos fazem para a manutenção, ampliação e implementação de seus direitos.

Faz-se necessário manter plena a convicção de que é esta segunda forma de luta a responsável pelas conquistas dos povos indígenas nas últimas décadas, tanto no que diz respeito aos seus direitos territoriais – alcançado por meio das retomadas de terras, por exemplo –  às políticas públicas de saúde e educação escolar diferenciadas, quanto ao reconhecimento da legitimidade da sua “organização social, costumes, línguas, crenças e tradições”[1] e do direito às suas formas próprias de existência, dentre outros avanços.

Considerando a necessidade de uma aproximação cada vez maior entre estas duas formas de luta – a fim, inclusive, de enfraquecer perspectivas eleitorais das chamadas “carreiras solo”, ou seja, de indivíduos que não se vinculam às lutas de mobilização implementadas pelo conjunto do movimento indígena – é fundamental que se mantenha permanente o cuidado para superar o risco de instrumentalizações personalistas. Esse risco implica também, como consequência direta, no enfraquecimento e na substituição da luta de ações e mobilizações massivas pela luta institucional político-partidária voltada às eleições. Ao contrário, esta última deve se manter a serviço e fortalecer sempre mais a primeira, no intuito de amplificar o alcance das suas conquistas para o conjunto dos povos indígenas no Brasil.

Nicos Polantzas nos ensina que as forças do capital tendem a se reorganizar e a retomar a hegemonia política perdida em momentos de intensa mobilização e luta protagonizadas pelas classes e grupos sociais não capitalistas. Partindo da convicção de que o enorme desafio de se conseguir sucesso nas urnas continuará sendo superado pelo movimento indígena brasileiro, há de se ficar atento a esta premissa sugerida por Polantzas, a fim de evitar o risco da acomodação ao sistema por parte de lideranças que conquistam mandatos e daquelas que passam a atuar nas articulações e burocracias decorrentes dos mesmos no ambiente da luta intra-estatal.

Uma segunda questão fundamental neste contexto da luta institucional diz respeito à opção necessária pelo partido político que abrigue as candidaturas indígenas. Nesse campo, dois pressupostos são elementares: o primeiro é o de que não existe partido político ideal e o segundo é o da não equiparação entre os partidos políticos.

Sendo assim, a escolha do partido é, sim, fundamental. Deve ser tratada com grande atenção e precisa estar alinhada, o máximo possível, às reivindicações do movimento indígena e à sua luta de ações e incidências diretas, mobilizações massivas e enfrentamentos nos territórios e nas ruas. A complexidade da legislação sobre o sistema político eleitoral no Brasil e a ampla estratificação partidária favorecem um ainda relativo desconhecimento quanto ao espectro ideológico, ao campo de interesses econômicos e políticos e ao histórico de posicionamento dos diversos partidos em votações relativas a projetos que atacam direitos indígenas, especialmente no âmbito do Congresso Nacional. Esse contexto contribui para que lideranças indígenas se filiem e se candidatem em disputas eleitorais por meio de partidos políticos antagônicos aos direitos indígenas.

Neste mesmo campo, é fundamental enfrentar e superar o risco do pragmatismo político que, em muitos casos, faz com que lideranças indígenas, mesmo conhecendo a fundo tais questões, escolham um partido político em função de uma suposta melhor condição de disputa e melhores chances de vitória eleitoral local, independentemente do espectro ideológico e do histórico partidário em votações que tratam sobre direitos dos povos indígenas, especialmente territoriais, em âmbito nacional.

A tática do assédio divisionista no interior dos povos e comunidades indígenas, implementada por grupos econômicos que se contrapõem aos direitos indígenas através de partidos políticos que representam seus interesses, leva a uma dispersão das candidaturas indígenas. Essa tática precisa ser devidamente desvelada e debelada, para que as chances de vitórias eleitorais de lideranças indígenas com condições reais de representar, dentro da institucionalidade estatal, os projetos de vida e de futuro de seus respectivos povos sejam ampliadas e, principalmente, para se evitar que a participação dos povos na disputa eleitoral seja instrumentalizada pelo projeto dos donos do capital.

No seu conjunto, estas questões certamente contribuíram para que a maior parte dos indígenas eleitos no pleito municipal de 2020 fosse por partidos políticos da direita e centro-direita do espectro ideológico e contrários aos direitos fundamentais dos povos originários. Neste sentido, os dados apontam que o MDB foi o partido com mais indígenas eleitos em 2020, 27 vitórias. Além disso, 21 indígenas se elegeram pelo PSD, 20 pelo PP, 16 pelo DEM, atual União Brasil e outros 16 pelo Republicanos, todos partidos cujos representantes no Congresso Nacional atuam forte e organicamente contra os direitos indígenas.

Nestes casos concretos, por mais argumentos que possam ser apresentados na tentativa de justificar tais escolhas, o fato é que, pragmaticamente, tais lideranças estão gastando energia política para fortalecer agremiações partidárias antagônicas aos direitos coletivos, especialmente territoriais, de seu próprio povo e do conjunto dos povos indígenas do país. Há de se destacar que, paradoxalmente, em muitos destes casos, tal energia política foi gerada ao longo de anos de lutas travadas por meio de ações, mobilizações e enfrentamentos nos territórios e nas ruas a fim de defender e implementar direitos, inclusive territoriais, e canalizada para tais lideranças que, fazendo uso dessa energia acumulada, a utilizam na luta institucional político-partidária eleitoral em partidos antagônicos aos direitos indígenas.

Parece estar evidenciado que o caminho da luta institucional político-partidária realizada pelos povos indígenas será, de fato, verdadeiramente frutuoso para o conjunto dos povos, a curto, médio e longo prazos, caso confirmada a hipótese de que o mesmo ocorra estreitamente articulado e a serviço da luta de ações e incidências diretas, mobilizações massivas e enfrentamentos nos territórios e nas ruas que os povos fazem para a manutenção, ampliação e implementação de seus direitos. Neste sentido, dentre outros aspectos fundamentais, a escolha partidária é elemento central a ser devidamente observado pelos povos e suas lideranças.

Nesta caminhada, algumas tarefas estão postas à mesa para serem implementadas pelo movimento indígena e seus aliados. O aprofundamento e socialização dos estudos sobre o funcionamento do sistema eleitoral brasileiro, do espectro ideológico, do campo de interesses econômicos e sujeitos políticos defendidos e do histórico de votações de partidos políticos em questões relativas aos direitos indígenas em âmbito nacional mostra-se necessário e urgente. Com essas ações, os povos indígenas caminharão para superar paradoxos e contradições e ampliar a coerência e a efetividade da luta institucional político-partidária, aprofundando a sintonia dessa frente de luta com aquela travada nas ruas e territórios e aumentando, assim, as possibilidades de vitórias na manutenção, ampliação e efetivação de seus direitos e projetos de vida e futuro.

Cleber César Buzatto, licenciado em Filosofia pela Faculdade de Filosofia Nsra. da Imaculada Conceição (FAFINC), especialista em Direito Agrário pela Universidade Federal de Goiás (UFG), ex-secretário executivo e adjunto do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e membro da Equipe Florianópolis do Cimi Regional Sul.

Nota:

[1] Constituição Federal do Brasil, Caput do artigo 231.

Imagem: Mobilização indígena durante o acampamento Luta pela Vida, em 2021, em Brasília. Foto: Cícero Bezerra/@cicero.bezerra

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