Para o climatologista Carlos Nobre, recém-eleito membro da Royal Society, Brasil regrediu décadas em termos de política para Amazônia sob Bolsonaro, e a floresta tem muito mais potencial econômico de pé do que desmatada.
Por Nádia Pontes, na DW
Em mais de quatro décadas de pesquisas guiadas por perguntas intrigantes, a Amazônia quase sempre esteve no centro dos estudos feitos por Carlos Nobre. Algumas das respostas que encontrou ajudaram a desvendar o papel vital que a floresta desempenha para o clima local e global.
É a esse conjunto de conhecimento que ajudou a produzir que Nobre atribui o reconhecimento da Royal Society, a academia científica mais antiga do mundo, que acaba de elegê-lo como membro internacional. Antes dele, o único brasileiro a figurar na Royal Society havia sido o imperador Dom Pedro 2º, que integrou a lista não como cientista, mas como membro da realeza.
Pesquisador aposentado do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), Nobre é copresidente do Painel Científico da Amazônia (SPA, na sigla em inglês) e atualmente ligado ao Instituto de Estudos Avançados (IEA) da Universidade de São Paulo (USP).
Em 1990, quando deu os primeiros alertas ao mundo sobre a possibilidade de a exuberante Floresta Amazônica perder sua capacidade de se regenerar devido ao avanço do desmatamento, Nobre jamais imaginou assistir à floresta se arpoximar desse ponto.
Em 2007, com base em modelos matemáticos rodados em computador, Nobre apontou que, caso 40% da Floresta Amazônica desaparecessem, a densa mata alcançaria um ponto crítico de desequilíbrio ou inflexão (tipping point), e perderia a capacidade de se manter como vegetação densa. Em 2017, essa projeção foi corrigida: em vez de 40%, 20% de destruição seriam suficientes para a morte da floresta.
Um estudo publicado em março deste ano pelo jornal Nature Climate Change revelou que, nas últimas duas décadas, a Floresta Amazônica vem demorando cada vez mais para conseguir se recuperar de longos períodos de estiagem, o que resulta em danos aos ecossistemas e deixa o bioma mais próximo de seu ponto de inflexão, após o qual a floresta não terá mais capacidade de se regenerar.
Em entrevista à DW Brasil, Nobre retoma as descobertas que ajudou a fazer sobre a Amazônia e ressalta: “Se a gente quer se salvar do risco de ecocídio climático do planeta, temos que manter o carbono na floresta.”
“Nos últimos 3 anos e meio, com o atual governo federal do Brasil, vimos um descontrole proposital, uma política de expandir a agropecuária, de levar a mineração a tomar tudo ali – áreas indígenas, protegidas, tudo. Nós voltamos, por incrível que pareça, para as décadas de 1970 e 1980”, lamenta.
DW Brasil: O que o reconhecimento da Royal Society representa para o senhor e para a ciência brasileira?
Carlos Nobre: Acho que é um reconhecimento da preocupação não só da ciência, mas de toda a população mundial, a brasileira inclusive, com o futuro da Amazônia.
A Amazônia está correndo um enorme risco de desaparecer, de perder a maior biodiversidade do planeta. E como eu tenho me dedicado há mais de quatro décadas à pesquisa da Amazônia e sou muito preocupado em demonstrar cientificamente estes riscos que estão acontecendo – o impacto das mudanças climáticas, da degradação e do fogo – acho que esse foi um reconhecimento da contribuição da ciência para mostrar quão perto estamos desse ponto de não retorno.
Sou um pesquisador que trabalhou muito, muito envolvido com experimentos científicos na Amazônia ao longo da minha carreira. Esses experimentos foram lá estudar como a floresta interage com o clima, como a biodiversidade interage com a manutenção dessa belíssima floresta.
Eu julgo que esse foi um reconhecimento não só individual, foi muito muito mais um reconhecimento da coleção de pesquisas de que participei ao longo dos últimos 40 anos, pelo fato de eu sempre ter chamado muito a atenção sobre a importância da Amazônia para a biodiversidade do planeta, para a estabilidade climática, para combater as mudanças climáticas e o risco que ela corre.
O momento atual do Brasil é delicado, em especial devido ao aumento do desmatamento na Amazônia nos últimos quatro anos. Como o senhor avalia essas ameaças que a floresta e seus habitantes têm sofrido?
Avalio que estamos num momento muito crítico – e não só no Brasil. Se pegarmos os índices de desmatamento de 2021, veremos que todos os países que têm Floresta Amazônica mostraram aumento do nível de desmatamento nos últimos anos.
Na Colômbia, houve uma pequena redução em 2019 e 2020, e depois aumento em 2021. Os únicos países que têm parte dessa floresta tropical que não tiveram aumento de desmatamento são países que ainda têm uma grande área com a floresta protegida: Suriname, Guiana e Guiana Francesa – mas é uma porção menor.
Grande parte da Amazônia, 85% dela, é motivo de grande preocupação porque os desmatamentos cresceram nos últimos anos. Além disso, está crescendo a degradação florestal. Quando se retira a madeira – e no Brasil isso é quase que totalmente ilegal, é uma indústria criminosa –, se começa a abrir a floresta. Para chegar à árvore valiosa, um pequeno caminho é feito para a passagem do trator, que depois serve de entrada para outras pessoas que vão lá cortar e colocar fogo nas árvores – para eventualmente aquilo se tornar um área sem floresta e dar lugar à pecuária ou agricultura.
Nos últimos 15 anos, a área degradada foi o dobro da desmatada. Na Amazônia como um todo – 6,5 milhões de quilômetros quadrados originalmente de floresta – já tivemos 18% desmatados e 17% degradados.
Quando a degradação aumenta muito, você expõe o solo. E temos o aquecimento global aumentando a temperatura, que já subiu 1,5 ºC em toda a Amazônia, e nas área desmatadas é ainda mais quente. Você começa a fazer a floresta que levou milhões de anos para ser muito resiliente ao fogo ficar mais inflamável.
Só 4% da radiação solar que atinge a copa das árvores chega à superfície do solo. Quando você entra dentro da floresta, você vê que tem pouca luz e é muito úmido. Se cai uma descarga elétrica ali, o fogo não se propaga, porque toda a vegetação está muito úmida. Quando se começa a desmatar, o sol entra mais e seca o solo. Então o fogo passa.
Cerca de 95% – ou mais – do fogo na Amazônia têm causa humana, não é causado por descargas elétricas (raios). E hoje esse índice aumenta exponencialmente. O incêndio em áreas degradadas se propaga às vezes até por quilômetros.
Quando o fogo queima os troncos, aquelas árvores vão morrer nos próximos dois anos. Ou seja, elas perdem toda a vegetação, o sol entra e começa a secar mais ainda tudo.
Muito do fogo é criminoso. Ele é colocado nessa floresta degradada para ir queimando, acabando com a floresta. Outra parte são incêndios que partem do uso do fogo na agropecuária na Amazônia. Nas pastagens, é comum o pecuarista usar o fogo, e o fogo pula da pastagem para a floresta degradada que está ali do lado.
Nós temos que mudar, nos policiar, ter uma atitude muito diferente, senão iremos de fato passar do ponto de não retorno, estamos na iminência desse ponto.
Quando o senhor, há mais de 30 anos, publicou esse artigo científico que apresentou o chamado tipping point, o ponto em que a Floresta Amazônia já está tão desmatada que perde a capacidade de manter sua cobertura vegetal, usando modelagem computacional e cálculos matemáticos, o senhor imaginava que veria isso acontecer de fato na Amazônia?
Em 1990, 1991, quando publicamos os dois trabalhos iniciais desse estudo de modelos matemáticos, os modelos eram muito mais simplificados que os de hoje em dia. Os modelos hoje permitem projetar o que as mudanças climáticas vão fazer, o impacto do desmatamento, mas, mesmo assim, lá atrás já deu para ver que se a gente tirasse a floresta, ela não voltaria em todo o sul da Amazônia.
Esse resultado lá da década de 1990 mostrou que o clima dessa região indicava que, sem a floresta, a estação seca ficaria muito longa. E uma estação seca de seis meses seria o clima do Cerrado. Por isso que eu criei o termo risco de “savanização” da floresta.
Em 1990, a gente tinha saído da ditadura militar, que era quem patrocinava a substituição da floresta por esse modelo de uso extrativista dos recursos, de tirar, de queimar árvores para gerar fertilizantes para pastagem, que foi muito forte. A Constituição de 1988 criou uma proteção para todos os biomas brasileiros, povos indígenas, populações tradicionais.
A Constituição começou a sinalizar um caminho de redução, mas não necessariamente isso aconteceu. Tivemos um super recorde de desmatamento em 1994, o maior do registro histórico, com 29 mil quilômetros quadrados, e depois 27 mil quilômetros quadrados desmatados em 2004.
De qualquer modo, lá trás, em 1990, aquilo parecia ser um risco muito distante, que talvez, um dia, pudesse acontecer de desmatarmos muito. Em 1990, não tínhamos tido a Rio-92 [ou Eco-92], não se falava tanto de mudanças climáticas. Então, a minha expectativa era positiva, principalmente quando o Brasil fez o seu plano de controle de desmatamento e queimada, o chamado PPCDAm [Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia], em 2004, e depois tivemos um enorme sucesso de redução. De 2004 a 2013, foi a maior redução de desmatamento de florestas em todo o mundo.
Aquilo nos deu um grande otimismo, porque parecia que o Brasil iria zerar suas emissões de CO2 rapidamente a partir de 2012. Mas, infelizmente, o que vimos a partir da forte recessão em 2015: uma diminuição muito grande na efetividade das políticas públicas do PPCDAm porque diminuiu muito a eficácia dos órgãos de fiscalização, parou o processo de demarcação de reservas indígenas.
Nos últimos 3 anos e meio, com o atual governo federal do Brasil, vimos um descontrole proposital, uma política de expandir a agropecuária, de levar a mineração a tomar tudo ali – áreas indígenas, protegidas, tudo. Nós voltamos, por incrível que pareça, para as décadas de 1970 e 1980. Quando havia mais de 20 mil garimpeiros na Terra Indígena Yanomami, por exemplo.
Quando publiquei o trabalho lá trás, jamais poderia imaginar que 30 anos depois teríamos voltado para aquele modelo de acabar a Floresta Amazônica. Esse é o maior risco que temos que atacar, como talvez a mais importante prioridade de política ambiental.
A ciência tem apontado caminhos possíveis para a conservação da Floresta Amazônica. Como tem sido a participação efetiva da política e da economia nesse sentido?
Ha inúmeros elementos que mostram que o potencial econômico da floresta em pé é muito maior que o de derrubar floresta. Muito dessa política expansionista agropecuária, da mineração, tem muito mais a ver com um valor cultural do agronegócio, bastante atrasado do Brasil, que valoriza mais o tamanho da propriedade agrícola que o valor econômico da produção daquela área.
A produtividade da agropecuária na Amazônia é baixíssima. Um hectare no estado do Pará, por exemplo, que é motivo de reclamação do governador Helder Barbalho em público, gera cerca de 70 a 80 quilos de carne por ano. Há algumas poucas fazendas no Pará que são muito mais produtivas com o sistema integrado chamado lavoura-pecuária-floresta, que tem uma rotação de pastagem, gerando até mais de 500 quilos de carne por ano por hectare. Ou seja, sete vezes mais produtivas que a média da Amazônia.
A justificativa é uma cultura de posse de terra, que é histórica no Brasil. Quando a gente olha para o total dos quase 3 milhões de quilômetros quadrados já alterados dos biomas naturais brasileiros – 20% na Amazônia, 50% no Cerrado, mais de 80% na Mata Atlântica – nós vemos que ainda a maioria das propriedade agrícolas, principalmente na Amazônia, têm baixíssima produtividade agrícola. Então não se explica que essa expansão seja necessária para gerar mais alimentos, mais produtos agropecuários. Na época em que houve a redução dos desmatamentos, de 2004 a 2013, a produção de soja e carne na Amazônia dobrou.
A pecuária ocupa 64% de toda a área desmatada, com pastagens; 14% deram lugar a várias culturas agrícolas, e 20% foram abandonados e a floresta está se regenerando.
E o potencial econômico da floresta? Inúmeros estudos hoje mostram o potencial de sistemas agroflorestais, que são culturas agrícolas de floresta. Há o exemplo de uma cooperativa em Tomé-Açu, no Pará, que produz mais 120 produtos de 64 diferentes espécies da floresta. E o bem-estar social dos cooperados melhorou, é uma cooperativa bem estruturada.
Vários estudos mostram que um hectare de agropecuária, da mais produtiva, rende 100 dólares por ano. Um hectare com sistema agroflorestal como esse do Pará rende entre 500 e mil dólares por ano. A soja mais produtiva na Amazônia rende 200 dólares.
O potencial econômico dos produtos florestais e sistemas agroflorestais é muito superior ao da agricultura. E nem se compara com madeira, até porque 80% da madeira é roubada, não entra no sistema econômico. O mesmo vale para o garimpo, que é ilegal, com roubo de ouro, que está na mão de poucas pessoas, na maior parte, associadas ao crime organizado.
O grande desafio é transformamos a economia da Amazônia na chamada bioeconomia de floresta em pé. Temos defendido que esse é o caminho para salvarmos a Amazônia.
O relatório do Painel Científico da Amazônia (SPA, na sigla em inglês), do qual sou copresidente, um documento de 1.300 páginas de muito rigor científico, traz algumas conclusões muito fortes. Uma delas é a moratória do desmatamento e da degradação do uso do fogo de imediato pra salvar a Amazônia. No sul da Amazônia, estamos à beira do precipício deste ponto de não retorno, a floresta já dá todas os sinais que ela está se “savanizando”.
Eu gosto de falar esse termo entre aspas para explicar que o Cerrado brasileiro é uma savana tropical, se desenvolveu em 50 milhões de anos, tem a maior biodiversidade do mundo entre as savanas, uma enorme armazenamento de carbono. E o Cerrado evolui totalmente em sintonia com o fogo, as árvores têm resistência ao fogo. Ele também tem uma enorme quantidade de raízes que armazenam muito carbono.
Essa savanização da Amazônia não vai fazer a floresta virar um Cerrado: ela vira um ecossistema com o clima do Cerrado, com estação seca de seis meses, mais quente, com descargas elétricas gerando fogo, mas com uma biodiversidade muito reduzida e quantidade de carbono muito menor.
A outra conclusão do painel foi um amplo projeto de restauração, que eu estou chamando de Arco do Reflorestamento, com um milhão de quilômetros quadrados, para ser a contrapartida do Arco do Desmatamento, essa enorme área que vai desde o Atlântico até quase os Andes.
O projeto ajudaria a floresta a talvez se salvar do ponto de não retorno. A estação seca já cresceu em todo sul da Amazônia cinco semanas em relação à década de 1980. Se aumentar mais cinco semanas, já será o clima do Cerrado, e a estação seca muito longa não mantém a floresta.
O grande potencial socioambiental da Amazônia está na riqueza de sua biodiversidade e também temos que aprender muito com o conhecimento dos povos tradicionais, indígenas, quilombolas, ribeirinhos, que vivem ali há milhares de anos e sempre viveram com a floresta em pé. Temos que combinar ciência com inovação tecnológica e conhecimentos tradicionais para essa bioeconomia de floresta em pé.
Por que a Floresta Amazônica é importante não apenas para o Brasil, mas para o mundo, como este reconhecimento da Royal Society demonstra?
Primeiro lugar, se a gente quer se salvar do risco de ecocídio climático do planeta, temos que manter o carbono na floresta. Se for para esse outro estado de “savanização”, ela perde no mínimo 300 bilhões de toneladas carbono. O máximo que nós podemos emitir para ficar no limite de aquecimento de 1,5 ºC são 400 bilhões de toneladas – isso contando tudo, queima de combustíveis fósseis, agricultura, etc. Então, só a Amazônia pega três quartos desse limite.
Nós temos a maior biodiversidade do planeta. É um valor humano manter a biodiversidade, mas tem benefícios ecológicos, de manter todos esses microrganismos na Amazônia. Se a gente começar a desconfigurar essa complexa relação entre as especies na Amazônia, corremos um risco também de gerar inúmeras pandemias.
–
Foto: Tiziana Fabi /AFP /Getty Images / DW