Marco temporal: o tempo do genocídio indígena

Cada indígena que cair, que tombar morto pela motosserra, pelas munições letais, pelos vírus do colonizador do século XXI, assim como seus ancestrais há milênios, levará consigo a sabedoria de um povo inteiro, levará consigo, para o esquecimento, todo o conhecimento que possa haver numa biblioteca inteira.

Por Vinício Carrilho Martinez, Marcia Camargo e Erilza Braz dos Santos, no Blog da Boitempo

No início, eles foram obrigados a falar em português, foram obrigados a escrever em português e foram obrigados a compreender e se comportarem com a imposição de costumes, crenças e significados de palavras com uma visão cosmológica que não lhes pertencia.

Os colonizadores chegaram e ignoraram sua organização social, cultural e política dos nativos da região, pois não correspondia ao que definiram como civilização. O Brasil assim foi moldado, estruturado e “organizado”, foram oferecidas terras a estrangeiros para que viessem e introduzissem seus modelos de sociedades já “civilizadas”, e assim foi construído o país que foi dado o nome de Brasil.

Com sua arrogância, chegaram rapidamente à conclusão de que não haviam instituições neste nosso país – nos chamaram de autóctones, incapacitados à civilização colonizadora, dissolvente. E é essa mesma presunção que nos arrastou até o fatídico marco temporal, no dia 30 de maio de 2023, dia da morte decretada dos povos tradicionais, dos grupos isolados (ainda mais rapidamente), dos povos da floresta – que a habitam há milênios.

A mesma desfaçatez de quem votou contra o Brasil, impondo a nossos parentes a prova de sua existência, foi-nos imposta desde a formação da primeira institucionalidade brasileira: da Igreja catequista ao Estado senhorial, violador, matador.

Senhoras e senhores, vejam que título fabuloso, mais revelador do que esse exemplo não deve haver: O Estado do Direito entre os autóctones do Brasil, de Carl Von Martius.

Ao contrário da imposição de se sofrer o genocídio, desde nossa “descoberta”, é o sentido de comunidade pataxó vivida no Território Indígena Barra Velha, Aldeia mãe dos Pataxós. A pesquisa de campo etnográfica, decolonial, construída coletivamente permite viver esses saberes; aprende-se o sentido do coletivo, a coletividade, o sentido da união, da reunião, do “muka mukau” (unir para reunir) para resistir, insistir e principalmente existir.

A experiência da “vida coletiva” vai muito além da barreira do concordar ou do discordar, pois coletividade transborda respeito, coletividade visa o bem de todos, é uma luta pelo mundo, uma luta pela sobrevivência, uma luta pela natureza, pelos animais, pelos seres humanos; na verdade, é uma luta e um conceito que deveria abranger a todos, sem preconceito, racismo ou segregações.

Coletividade, na cosmologia indígena, significa a união, a reunião, em prol de TODOS, incluindo, natureza, seres humanos e tudo mais que envolve o planeta Terra. Talvez possamos então encontrar uma nova palavra para ressignificar a palavra coletividade dentro da cosmologia indígena, porque a coletividade da maneira que conhecemos é segregadora, racista, preconceituosa e vai contra o sentido de união.

Não teria como escrever um texto sobre o marco temporal, sem o Nós. O Nós aqui representa diferentes campos de conhecimento, acadêmicos, da educação, do direito, da antropologia, das diversas experiências de vida. Mas, o marco temporal marca o nó górdio, o limite extremo, a última fronteira, entre a vida e a morte dos nossos parentes indígenas e, obviamente, da nossa.

Não há Brasil sem os povos indígenas, não há Brasil sem a miscigenação – estupro coletivo, na verdade, das mulheres negras e indígenas pelo homem branco. Sem segurança efetiva aos povos indígenas, não haverá futuro, como não há segurança de que se mantenha vivo o presente.

É inadmissível o mundo, o Brasil, não dar a oportunidade a nossas crianças de entenderem e compreenderem o mundo, o Universo como um todo; é absurdamente inconstitucional não dar o direito às nossas crianças de compreenderem a cosmologia indígena.

O marco temporal não diz somente respeito às populações indígenas do nosso então chamado Brasil, o marco temporal não prejudica somente indígenas. A luta dos indígenas é por todos nós, a luta diária pela preservação da natureza, a luta diária pelo respeito e “muka mukau” (a união para reunião).

Hoje precisamos de muitos Nós para curarmos a nós mesmos, herdeiros dos colonizadores incivilizados, precisamos da reunião e da união, da coletividade com o sentido mais profundo da palavra, para curarmos as dificuldades, para estabelecermos outros entrelaçamentos dos fios, das cordas, dos cordões que, neste momento, nos enforcam coletivamente. Devemos nos unir e não nos distanciar, precisamos desfazer os nós de desunião, de preconceito, de racismo.

Hoje, após a aprovação do marco temporal, deságua sobre Nós a perda de significados, vivemos o luto, olhamos incrédulos a legalização do genocídio indígena. Até quando o país ficará entregue, feliz, em ver a morte de crianças indígenas por fome, sem casa, mortos a tiros ou gravemente adoentados (até morrerem) em razão da violência do colonizador embrutecido que não nos deixa apenas viver?

O marco temporal facilita que terras que pertenciam aos indígenas, que protegiam física e culturalmente povos originários, possam ser privatizadas e comercializadas e, claro que, esta comercialização é uma resposta aos interesses do setor ruralista, dos madeireiros, do agronegócio que polui rios, mata a fauna e a flora, que traz mercúrio e veneno para nossa comida.

O quanto você lutaria para deixar ao seu filho sua herança? Casa, carro, dinheiro, bens materiais, isto é herança para maior parte das sociedades. Sabe o que os povos estão tentando deixar de herança para SEUS filhos e também para seus próprios? A vida!

Os rios, os mares, a mata, a biodiversidade, o planeta que hoje luta para sobreviver. Nossos1 filhos, nossos netos, nosso planeta não se nutrirão de bens materiais, de casas, de prédios, de dinheiro. Está na hora de lutarmos para desatarmos os nós através de Nós mesmos.

Não há como não citar o “O chamado pela Terra” apresentado pela articulação nacional das mulheres indígenas guerreiras da ancestralidade (ANMIGA), que é uma articulação de mulheres indígenas de todos os biomas do Brasil, com saberes, tradições, lutas que se somam e convergem, e une mulheres mobilizadas pela garantia do direito à vida dos povos indígenas:

“Vivemos tempos duros, tempos de extremismo conservador, de ataques brutais aos direitos, de desmonte da educação, da saúde, da ciência e da proteção ambiental; em que fome, desemprego, violência e carestia avançam. Tempos em que querem silenciar os tambores dos terreiros e o som dos maracás para que os únicos sons audíveis sejam os das motosserras, das balas e do desalento”. 

“Tempos em que cada pedaço de floresta desmatado e queimado, cada termelétrica ligada e cada poço de petróleo perfurado se traduzem – na linguagem do aquecimento global – em secas mais severas, furacões mais intensos e ondas de calor mortíferas. Tempos em que a ganância envenena o ar que respiramos, a comida que comemos, a água que bebemos e o solo onde plantamos”.

Fiquem certos, todos que nos leem, cada indígena que cair, que tombar morto pela motosserra, pelas munições letais, pelos vírus do colonizador do século XXI, assim como seus ancestrais há milênios, levará consigo a sabedoria de um povo inteiro, levará consigo, para o esquecimento, todo o conhecimento que possa haver numa biblioteca inteira.

Fiquemos certos que, depois do banimento da vida da forma mais violenta possível, que só o ato genocida pode comportar, a floresta em chamas será o último grito de humanidade que ouviremos no Brasil.

Dia 30 de maio de 2023, dia do marco temporal, dia do genocídio legalizado, dia da morte decretada, institucionalizada, dia da tragédia constitucional.

O Brasil foi declarado morto no dia 30 de maio de 2023.

Porque não haverá sentido para nós, se perdemos o Nós-com-Eles.

Que ninguém duvide, no dia 30 de maio de 2023, o Brasil foi declarado oficialmente morto.

 

1 Nosso, aqui com significado de toda humanidade, seres humanos e animais.

Vinício Carrilho Martinez é doutor em Ciências Sociais, professor Associado da UFSCar/DEd-PPGCTS.
Marcia Camargo é doutoranda pelo PPGCTS/UFSCar.
Erilza Braz dos Santos é vice cacica Uruba.

Foto: Ueslei Marcelino /Reuters /Boitempo

 

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