Associação Nacional dos Servidores da Funai: “Carta Indigenista”

Nós, servidores da Funai, por meio da Associação Nacional dos Servidores da Funai – Ansef, vimos nos posicionar diante da forma como a política indigenista tem sido tratada pelo Estado Brasileiro, a qual vai de encontro com a missão institucional do Órgão Indigenista, conforme a Constituição Federal e legislação complementar vigente. Neste sentido, enquanto corpo técnico dessa Instituição, pretendemos oferecer considerações que explicitem equívocos e impasses no entendimento das políticas indigenistas. Trata-se de um parecer técnico, coletivo, sobre as atribuições, deveres e missão do indigenismo oficial, cuja existência completa 107 anos em 2017, sendo a Funai uma das Instituições nacionais mais antigas.

I – Princípio: fortalecimento da Constituição e fundamento de ordenamentos jurídicos

Partimos do princípio de que a Constituição Federal de 1988 é um marco para os povos indígenas, na medida em que direitos fundamentais, tais quais identidades, terras tradicionalmente ocupadas, costumes e línguas, foram reconhecidos. Assim, enquanto indigenistas cuja missão é promover e proteger os direitos dos povos indígenas, é certo que devemos agir em conformidade com a lei. Não consideramos estratégico falar no cumprimento da lei enquanto ela existe, principalmente em se tratando de demarcação de terra. Nesse tipo de fala subjaz a ideia de que a lei é frágil e que estamos considerando a sua substituição como aceitável, plausível. A promoção e a defesa dos direitos dos povos indígenas passam, também, por aproveitar esse espaço de fala para sublinhar a luta envolvida nos pequenos avanços do Estado em reconhecer direitos, no quão importante esses direitos são para a manutenção do bem estar, dignidade e justiça social e, portanto, no inadmissível retrocesso implicado na perda ou flexibilização desses direitos. Assim, em uma única atitude, fortalecemos a confiança na estabilidade e cumprimento do disposto em nossa Carta Magna, eixo central de qualquer ação do Estado.

II – Missionários, Empreendimentos e Povos Indígenas

A defesa de ação proselitista de grupos religiosos em Terras Indígenas contraria a legislação brasileira que protege a diversidade cultural daquelas populações, sendo uma das obrigações do Órgão Indigenista e do Ministério Público Federal fazer valer aqueles preceitos, conforme abaixo:

Constituição Federal 1988

Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais.

§1º O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional.

Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.

Estatuto do Índio – Lei 6.001/1973

Art. 58. Constituem crimes contra os índios e a cultura indígena:

I – escarnecer de cerimônia, rito, uso, costume ou tradição culturais indígenas, vilipendiá-los ou perturbar, de qualquer modo, a sua prática. Pena – detenção de um a três meses;

Certamente os indígenas têm o direito de conhecer e aderir a outras religiões, de forma autônoma e espontânea. Porém, a ação insidiosa de missionários nas aldeias, inoculando padrões moralistas e questionando crenças e cosmologias indígenas, deve ser alvo de questionamento por parte da Funai e, no limite, de atitude rigorosa que vise impedir a continuidade de tais práticas, quando respaldada por demanda dos próprios indígenas. Neste contexto, lembramos ainda que uma das atribuições da Instituição, prevista em regimento interno e no Plano Plurianual – PPA é proteger e promover o patrimônio cultural dos povos indígenas.

Ademais, cabe lembrar situações graves de violação dos direitos de povos indígenas, inclusive alguns de recente contato, promovidas por missões religiosas como a Missão Jocum, (cuja expulsão do território Suruwahá, por exemplo, foi determinada pelo Ministério Público Federal do Amazonas em 2003, com pronunciamentos de Procuradores da República, ex-presidentes da Funai e até da Agência Brasileira de Inteligência – Abin), e a Missão Novas Tribos do Brasil – AMTB.1 Em nosso entendimento, não existe argumento técnico capaz de justificar o apoio ao trabalho dessas instituições em Terras Indígenas. Os espaços de ausência do Estado junto aos povos indígenas devem ser preenchidos com o fortalecimento do Órgão Indigenista, da Sesai e de outras instituições implicadas na implementação da política indigenista oficial.

O argumento de que “a Funai não pode se dar ao luxo” de negar parcerias enfraquece o papel da Funai na construção de políticas públicas sólidas e fortalece a ideia de que recursos financeiros e humanos devem ser usados para ações filantrópicas de caráter assistencialista. A ausência do Estado nas Terras Indígenas abre espaço para as mais variadas iniciativas, vinculadas a interesses nem sempre favoráveis aos povos indígenas. Não há justificativa para a omissão do Estado frente às suas responsabilidades. Deve-se compreender que o princípio do Estado deve ser o de oferecer condições para a autonomia dos povos indígenas, respeitados os preceitos do Artigo 231 da Constituição. As instituições religiosas, na hipótese mais otimista, trabalham pelos princípios da filantropia e da caridade. O Estado não deve considera-las como estratégias de ação, pois estas só existem onde há vulnerabilidade. O papel do Estado é o de trabalhar para que não sejam necessárias, cabendo para tal a ação do Órgão Indigenista e do Ministério Público.

Em diversos casos, o fato de indígenas não terem acesso a serviços básicos do Estado, como um subsistema de saúde indígena realmente diferenciado, ou escolas indígenas com projetos políticos pedagógicos que efetivamente reflitam as suas demandas e especificidades, faz com que estes “não possam se dar ao luxo” de recusar um grande empreendimento, como uma usina hidrelétrica ou a exploração mineral em seus territórios. Os recursos financeiros de compensação ambiental que chegam por meio dos estudos de componente indígena vinculados a Projetos Básicos Ambientais (PBAs), na maioria dos casos, e por tempo limitado, são direcionados a cobrir demandas que constituem responsabilidades de Estado.

Para algumas comunidades indígenas, aceitar os termos para a exploração de determinado recurso em suas terras não significa, necessariamente, que concordem com o esbulho de seus recursos – tampouco que tenham sido adequadamente consultadas a respeito desses empreendimentos, conforme os princípios da Convenção 169/OIT –, mas tão somente significa que o Estado permitiu que a situação de vulnerabilidade fosse tamanha que “não puderam se dar ao luxo” de fazer frente aos empreendimentos.

III – Produção e desenvolvimento. O que é desenvolvimento?

A visão produtivista/desenvolvimentista que percebe os povos indígenas como “parados no passado” é manifestação de desconhecimento da história da política indigenista brasileira em seus erros e acertos. Na época do regime militar, a política da Funai foi justamente promover a “integração do índio à comunhão nacional”, implementando projetos de “desenvolvimento comunitário”, cujas consequências são bastante conhecidas, sobretudo a desorganização dos sistemas produtivos tradicionais e a mudança drástica nos hábitos alimentares, trazendo problemas de saúde e o aumento da dependência econômica, justamente o oposto do que se pretendia.

Não defendemos que os povos indígenas sejam mantidos numa redoma, mesmo porque muitos já participam efetivamente das economias regionais, nacional e global, comercializando produtos agrícolas, extrativistas, artesanatos, entre outros. O papel da Funai, em articulação com outras instituições, deve ser o de promover o bem viver, a qualidade de vida e a autossustentação das comunidades, de acordo com seus interesses e especificidades, considerando as características ambientais de seus territórios, as formas tradicionais de geri-los e respeitando os princípios cosmológicos com os quais os povos indígenas regem sua própria existência. Ou seja, nem um modelo assistencialista/paternalista/missionário, nem tampouco, no outro extremo, um padrão capitalista-neoliberal , financista e desumanizador de produção, que desconsidera o fato de serem povos culturalmente diferenciados. O direito à existência dos povos indígenas no Brasil, absolutamente condicionado aos seus territórios, não pode ser vinculado ao atendimento das necessidades de produtos e serviços oferecidos para os não indígenas. Os serviços ambientais prestados pelos povos indígenas brasileiros ao País, à biodiversidade e à humanidade precisam ser amplamente reconhecidos pela sociedade. O que esperar, por outro lado, de uma política de desenvolvimento agrícola nacional que ignora as mudanças climáticas globais em curso, o valor da Amazônia (e de seus povos) na regulação do clima, ou o valor do Cerrado (e de seus povos) na saúde e existência dos rios?

Acreditamos que declarações de que os indígenas devem participar da conjuntura desenvolvimentista do país – e como devem – além de equivocadas e inverídicas, são incompletas. O Órgão Indigenista tem tido dificuldades em promover ações que permitam à nação brasileira conhecer a peculiaridade, riqueza, conhecimentos e contribuições dos povos indígenas. Será que as pessoas já ouviram falar nas redes de trocas de sementes tradicionais no Xingu (tão impactado por Belo Monte); nos modelos de manejo sustentável de recursos florestais não madeireiros; nos agentes agroflorestais indígenas; nas tecnologias e saberes indígenas milenares de se relacionar com o espaço natural sem destruí-lo? Será que já viram um xamã Yanomami dançar? Já sentiram a força de um canto Guarani? Já provaram o abacaxi produzido pelos Tukano no Alto Rio Negro? A pimenta Baniwa? Já degustaram açaí recém tirado com peixe moqueado na beira do Solimões? O que é desenvolvimento? O que é viver bem?

Será que as pessoas conhecem os estudos que relacionam a preservação das florestas na Amazônia com a presença dos povos indígenas? Será que o Brasil toma parte da necessidade de respeitar a autonomia desses povos? Será que o Brasil participa da conjuntura em que terras indígenas estão cercadas e/ou invadidas por madeireiros, garimpeiros, mineradores e que pouco tem sido feito, restando aos povos o conselho de aceitar tal exploração porque assim fica-se ao menos com parte dos ganhos? O País não indígena participa da conjuntura que proporciona aos seus povos originários?

IV – Ideologia/ideologias

O conceito de ideologia tem sido mal interpretado por determinado segmento político. Se entendido como o ideário ou visão de mundo que rege a ação de um indivíduo ou um grupo, não há ação política sem base ideológica. O que se questiona aqui é a falsa ideia de neutralidade na ação de indivíduos ou grupos. O ser humano, essencialmente político, age a partir de um fundamento, uma base ideológica. Lançar o véu invisibilizador da neutralidade, naturalidade e necessidade, acusando quem pensa de modo contrário de ser o único a ter ações motivadas por ideologia é um clássico mecanismo de grupos dominantes silenciarem qualquer debate político, desqualificando o adversário. Mulheres morreram queimadas por questionarem o que era normal, natural e necessário. Pessoas foram escravizadas com o mesmo argumento. Com os povos indígenas não é diferente: considerar que a assimilação é a única possibilidade e desqualificar visões e anseios distintos como ações fundamentadas por ideologia impossibilita um debate plural em que as ideias e motivações são expostas em pesos iguais.

Estão evidentes, para nós, os interesses e a forte influência das bancadas ruralista e evangélica sobre os rumos da política indigenista, os quais se expressam através de projetos de lei e de emendas à Constituição Federal que ferem de forma contundente os povos indígenas e seus direitos originários sobre seus territórios. A Funai e sua assessoria parlamentar não podem desconsiderar as ofensivas aos direitos indígenas em andamento no Congresso Nacional, as quais têm, inclusive, a própria Instituição como alvo de desmonte.

V – Gestão (DESMONTE) da Instituição

A Funai segue sucateada (situação que se arrasta desde governos anteriores), sem a capacidade de cumprir suas obrigações. O orçamento disponível vem sendo retraído de forma alarmante – em 2016, a Funai contou com o menor orçamento dos últimos 10 anos – e tal situação vem sendo reiteradamente denunciada junto aos órgãos responsáveis2. Após anos de seguidos contingenciamentos, chegamos à situação extrema de não dispormos de recurso suficiente sequer para manter a máquina pública, tendo como justificativa a crise pela qual passa o País.

Lembramos que, mesmo sem ter o monopólio sobre o tema, a Funai continua sendo a única instituição federal executiva-finalística com atuação direta e exclusiva para os povos indígenas.

Ministérios e Secretarias são instâncias de formulação e financiamento, mas não de execução. A SESAI, por exemplo, terceiriza as ações, sendo um setor subordinado ao Ministério da Saúde, sendo que a Funai é vinculada ao Ministério da Justiça, logo uma instituição com personalidade jurídica própria e, como já dito, de caráter executivo. Tanto é verdade que alguns ministérios, com frequência, repassam recursos à Funai para apoiar a implementação de ações. MEC, MinC e MDSA já recorreram ao Órgão Indigenista para tal finalidade.

Não se questiona o papel da Funai como Órgão central na articulação de políticas indigenistas, visando inclusive otimizar recursos públicos; porém, na situação em que se encontra, fragilizada em termos políticos, orçamentários e estruturais, às voltas com o Decreto 9.010/17 (mais um, pois os editados por governo anterior também ajudaram no seu processo de desmonte) que impõe graves dificuldades sobretudo ao funcionamento das unidades regionais e locais, o resultado final será a desorganização ainda maior daquelas políticas, o abandono a que os povos indígenas serão relegados, ficando ainda mais vulneráveis ao assédio e manipulação dos interesses econômicos, políticos e religiosos, que se aproveitam do vácuo deixado pela ausência da Funai para fortalecerem sua presença nas aldeias. Está em curso, portanto, um crescente processo de privatização da questão indígena, a partir do qual a Funai é mantida como um órgão virtual, sem capacidade efetiva de exercer as obrigações fundamentais de Estado para com aquelas populações.

Consideramos a revisão do Decreto 9.010/17 imprescindível. Qualquer reformulação que venha a alterar a estrutura de funcionamento da Funai em suas Coordenações Regionais, Coordenações Técnicas Locais e Frentes de Proteção Etnoambiental deve passar por um processo de ampla consulta, com a participação dos povos indígenas afetados e também dos servidores da Instituição, haja visto o alto grau de especificidade do trabalho indigenista e portanto, a capacidade do nosso corpo de servidores de apresentar argumentos técnicos que subsidiem e impeçam esse tipo de deliberação sem estudos adequados, previstos na legislação. Nós temos, no presente, servidores indígenas e não indígenas que dedicaram uma vida inteira ao indigenismo, que conhecem cada caminho, cada pessoa, cada igarapé da região onde trabalham. Não se brinca com a vida das pessoas dessa maneira, e cargos de chefia de unidades descentralizadas da Funai não podem ser moeda de troca por favorecimentos e arranjos políticos locais que desconsiderem a missão do Órgão indigenista oficial.

Ao longo de sua existência, o Indigenismo oficial acumulou expertise na questão indígena, a partir de equívocos, acertos, ajustes e muito aprendizado junto aos povos indígenas. Ainda há muito a ser melhorado, mas, definitivamente, ignorar a história do indigenismo e o conhecimento institucional construído a partir das diversas ações da Funai não representa avanços, apenas retrocessos.

Associação Nacional dos Servidores da Funai – Ansef

Brasília, 24 de abril de 2017.

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Notas:

1 – Conferir    mais     sobre    os    objetivos    e    formas    de    atuação    dessas    organizações    religiosas    em

  • <https://pib.socioambiental.org/en/noticias?id=58496&id_pov=64>,
  • <http://rollingstone.uol.com.br/edicao/edicao-63/o-mercado-de-almas-selvagens#imagem0>,
  • <https://www.cartacapital.com.br/blogs/blog-do-milanez/em-defesa-das-almas-indigenas-9424.html>,
  • <http://www1.folha.uol.com.br/poder/2015/04/1614712-evangelico-e-acusado-de-proselitismo-por-pregar-para-indios.shtml>, https://pt.scribd.com/document/129468563/Resposta-ao-missionario-antropologo-Edward-Luz-Marco-de-2013.

2 – Documentos da ANSEF.

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