Aedes: ‘estamos dando milho aos bodes’, por Altair Sales Barbosa

Diz um velho ditado: ‘quando o homem matou tamanduá, formiga tomou conta do lugar’. A natureza cobra caro quando entra em estado de desequilíbrio

No Carta Maior

Diz um velho adágio popular: “quando o homem matou tamanduá, formiga tomou conta do lugar”. Quase nada sabemos sobre o criador deste ditado, mas sem sombra de dúvidas, este deveria se pautar por um grande senso de observação da natureza. Esta pessoa tinha também pleno conhecimento de como a natureza funciona, sabia que não é boazinha, como muitos pensam. Cobra caro e se vinga com fúria, quando entra em estado de desequilíbrio.

Ainda paira na lembrança de muitos o último grande surto de febre amarela que atingiu a região Centro-Oeste do Brasil. Se vasculharmos as anotações iremos constatar que o fenômeno coincide com as obras para a construção e fechamento da barragem do rio Corumbá. Estas obras exigiram desmatamentos, que por sua vez desalojaram populações de animais, incluindo primatas, que são potenciais portadores do vírus da febre, obrigando-os a migrarem para áreas habitadas por humanos. A retirada da cobertura vegetal natural acabou com vários habitats de insetos, incluindo os pertencentes ao gênero Aedes e vários de seus predadores naturais.

O ambiente até então lótico, de águas correntes, aos poucos foi se transformando num ambiente bêntico, com águas calmas, às vezes paradas, originando a formação de poças laterais, fruto da oscilação dos níveis do reservatório.

Os insetos hematófagos acompanharam a migração dos mamíferos. Estes insetos, além de ficarem livres de alguns predadores, ainda foram brindados com ambientes propícios para seu desenvolvimento. Os resultados, todos sabemos.

No início de 2010, a cidade de Goiânia e regiões adjacentes, experimentaram um momento crítico de epidemia de “dengue”. O elevado índice desta doença coincide com as obras preparatórias e com o fechamento da represa do ribeirão João Leite. As obras preparatórias incluíram retirada da vegetação, muitas nativas, algumas exóticas e limpeza do terreno a ser ocupado pelo reservatório. Estes serviços desalojaram aracnídeos e suas eficazes armadilhas, desalojaram insetos, incluindo os representantes do gênero Aedes e tantos outros grupos de animais, abrangendo colônias inteiras de primatas, cuja população é significativa na micro-bacia do ribeirão João Leite.

A oferta de empregos originou oportunidades de absorção, desde mão de obra não especializada, até serviços mais sofisticados, criando um fluxo migratório de humanos, que deixaram seus ambientes urbanos para trabalharem nas obras da represa. Nestas idas e vindas, muitos foram picados por vetores contaminados da dengue, vetores estes, desalojados de seus habitats e sem a ameaça de predadores naturais.

O resultado dessa situação foi espelhado à época, nos espaços ocupados dos centros de saúde, que revelaram índices preocupantes de pessoas infectadas pelo vírus da dengue. O problema se tornou ainda mais alarmante porque a cidade de Goiânia, pela sua posição geográfica e econômica, sempre foi uma fronteira cultural, um centro receptor e dispersor em larga escala de transeuntes e elementos patogênicos.

As campanhas até então utilizadas para combater tais situações, além da ineficácia, já se tornaram repetitivas, enjoativas e beiram os limites do ridículo, porque não esclarecem as verdadeiras causas do problema, tampouco vislumbram a possibilidade de soluções.

As soluções para um problema que tende a se agravar a cada ano devem levar em consideração dois pontos básicos:

    • Políticas públicas bem planejadas e sedimentadas no conhecimento;
    • Pesquisa científica para produzir conhecimento capaz de embasar tais planejamentos.

Neste sentido, torna-se necessário esclarecer, que ações individualizadas, de evitar água parada em recipientes caseiros, são importantes e não devem ser abandonadas, mas representam muito pouco diante da avalanche avassaladora de causas maiores.

Desde 1906, quando se determinou a origem da transmissão do vírus da “dengue” pelo mosquito pertencente ao gênero Aedes e espécie aegypti, sabemos hoje, que pelo menos seis outras espécies de mosquitos do gênero Aedes, existentes na África, Ásia e Américas, estão relacionadas com a transmissão do vírus. Ainda não temos conhecimento suficiente para afirmar se estas seis espécies sempre existiram, ou se trata de mutações ocorridas na espécie Aedes aegypti. O certo é que estes animais constituem espécies concretas e definidas taxonomicamente, cosmopolitas e certamente com comportamentos individualizados, diferenciados.  Portanto, torna-se necessário o estudo de seus hábitos etológicos, ou seja comportamentais para a elaboração de planos eficazes de combate.

Associadas aos estudos de Etologia, tornam-se necessárias pesquisas minuciosas sobre os efeitos e consequências de inseticidas químicos e estudos detalhados sobre predadores e patógenos dos potenciais vetores.

Desde o aparecimento do DDT, lá pelos idos da década de 1940, os componentes químicos vêm, de forma crescente, sendo utilizados no combate a insetos transmissores de doenças e a animais nocivos a determinado tipo de agricultura.

No início houve uma grande euforia, pois se acreditava que a utilização isolada destes componentes químicos seria suficiente para solucionar os problemas. Com o passar de apenas duas décadas, verificou-se que o uso indiscriminado de inseticidas químicos provocava desequilíbrios, eliminando os vetores, transmissores de doenças, mas também seus inimigos naturais. E tem mais, neste processo, não foram levados em conta princípios básicos de evolução, tais como a adaptação e mutação. Logo, foi possível perceber que os insetos vetores desenvolveram capacidades de resistência a vários compostos, contribuindo para a diminuição da eficácia destes.

Torna-se, portanto, cada vez mais urgente incentivar a pesquisa sobre predadores e patógenos, para controlar o crescimento desordenado de vetores epidemiológicos. Caso específico dos mosquitos do gênero Aedes.

Há vários relatos sobre a utilização pelo homem de predadores naturais, para controle de crescimento populacional de agentes nocivos. Alguns desses relatos remontam a pelo menos três mil anos antes do presente. Um dos exemplos mais clássicos vem da China. Os antigos chineses construíam pontes de bambu entre uma árvore e outra, unindo-as para facilitar o trânsito de formigas predadoras de lagartas. Estas últimas nocivas às plantas, largamente utilizadas por aquelas populações.

A pesquisa sobre o uso de patógenos para controle de vetores, se reveste também de grande importância. Os patógenos são elementos, que podem se apropriar de mosquitos vetores, levando-os a morte por simbiose, ou transmitindo doenças que podem levá-los também a óbito. Os patógenos podem variar desde bactérias cristalíferas até nematoides. Todavia, para estes procedimentos tem que se considerar todas as cautelas, incluindo conhecimento profundo das leis da evolução, pois essa sempre se nos apresenta como uma caixinha de surpresas cujos resultados as vezes são imprevisíveis

Alguns pesquisadores abnegados, espalhados por diversos cantos do planeta, estão pesquisando a eficácia de predadores e patógenos no controle do aumento populacional do mosquito Aedes. No Brasil existem algumas iniciativas na Unicamp e em Viçosa. Estas pesquisas já trouxeram como consequência a sugestão para implantação pelo Ministério da Saúde de “Programas de Manejo Integrado”.

O conhecimento bioecológico surgido destas iniciativas demonstra que há muitos predadores do mosquito Aedes, tanto na fase larval como adulta, representados por animais de vários grupos zoológicos, como Celenterados onde se destacam as medusas sendo que a maior parte ocorre em ambiente marinho, mas há também espécies de água doce, Anelídeos, animais cujo corpo é formado por anéis, destacando neste grupo minhocas e sanguessugas, como eficazes predadores do mosquito. Há entre os insetos também vários predadores, os mais comuns são libélulas, besouros e formigas. Os Aracnídeos representados por várias espécies de aranhas se situam também como eficazes predadores, instalando milhares de teias, que servem como armadilhas mortais para o mosquito adulto. Entre os Crustáceos de água doce, os micro-camarões, tem sido predador eficiente na fase de larva e de pupa. A lista é aumentada por várias espécies de moluscos, peixes, anfíbios e répteis entre estes, as pequenas lagartixas. No grupo de predadores de maior porte se situam algumas aves, que são eficazes no combate de insetos na fase adulta, porque compartilha com estes, os mesmos tipos de ambientes.

Nos dias atuais descobriu-se que provavelmente por mutação o mosquito do gênero Aedes, carrega também o vírus “zika” que talvez esteja relacionado aos casos de microcefalia, patologia que explodiu como uma bomba nas Agencias de Saúde. O mesmo mosquito ainda transmite também um outro vírus relacionado com a febre “chikungunia” e segundo alguns especialistas somente em áreas urbanas o mesmo mosquito transmite o vírus da “febre amarela” que em áreas rurais é segundo os mesmos especialistas transmitida pelo mosquito do gênero “Haemagogus”. Muitos dos especialistas em saúde, afirmam que o Aedes é um mosquito de hábitos urbanos e diurnos.

Aqui cabe um pequeno comentário: Certamente falta a estes especialistas a convivência científica com pessoas de outras especialidades, desde a geografia, ecologia até a biologia etológica ou comportamental, como já foi mencionado.

Somente para atentar a dois exemplos, não há elementos seguros para afirmar que as milhares de pessoas francesas e depois norte americanas, assoladas pelas epidemias durante a construção do Canal do Panamá foram acometidas somente por febre amarela, uma estudo minucioso dos relatórios revela que havia outras patologias estranhas não identificadas provavelmente “dengue”, que também provocaram inúmeros casos de óbitos.

Também não se tinha certeza qual vetor transmissor, tal a profusão de patologias. Foi necessário trabalho abnegado de um pesquisador, para convencer os grandes doutores contratados para tal, que o transmissor de tais patologias, poderia ser “mosquito”. O que mais tarde foi comprovado.

No caso do Canal do Panamá, mesmo depois que americanos assumiram a obra tendo em mãos uma vacina contra a febre amarela, outras moléstias estranhas continuaram levando a óbito vários trabalhadores.

O mesmo pode ser dito com relação à construção da Ferrovia Madeira-Mamoré. É sabido que muitos trabalhadores foram dizimados pela malária, doença transmitida pelo mosquito do gênero Anopheles, mas outros tantos vieram a óbito sem a clarividência da malária. O que nos alerta para a possibilidade de outras hipóteses.

É importante também criar mecanismos para frear esse processo monstruoso e desumano de urbanização, provocado pela desterritorialização. O aglomerado urbano, com suas demandas cada vez mais crescentes, é um prato cheio para a disseminação dos vetores que assolam a saúde dos brasileiros. Entretanto, o fator mais importante a ser levado em consideração na implantação de um eficaz programa de saúde, é o desequilíbrio ecológico, provocado principalmente pela multiplicação dos grandes reservatórios de água. Como já mencionado a oscilação dos espelho d’água desses reservatórios, provocados pela alternância de cheias e estiagens, faz aparecer em suas margens, milhares, talvez milhões de poças d’águas, algumas muito convidativas para a reprodução dos mosquitos.

Não bastassem os grandes reservatórios, Na última década virou moda no interior do Brasil, principalmente no Centro-Oeste, (local predestinado para dispersão) o represamento ou desvio de pequenos cursos de água corrente, para construção de pequenos lagos ou espelhos d’água com finalidades paisagísticas. Este fatos nos permitem que utilizemos o mesmo ditado oriundos da sabedoria desses locais.  Ou seja, a construção dessas pequenas lagoas para o mosquito Aedes e outros “é como dar milho aos bodes”

Portanto, toda obra seja grandiosa ou não, exige cada vez de forma mais urgente, a necessidade de se observar e atentar para as possíveis situações de desequilíbrio que possam ser desencadeadas. Levando a extinção, a nível local, determinadas espécies ou favorecendo a explosão demográfica de outras, só para citar um exemplo.

Estas situações somente podem ser evitadas através de relatórios técnicos altamente qualificados e multidisciplinares e fundamentado no conhecimento de pesquisadores das áreas de saúde, geografia, ecologia, biologia, genética, evolução etc.

Por fim, uma palavra aos órgãos de fomento à pesquisa tanto Federal quanto Estadual e outros e também uma palavra as Universidades.

Atualmente é comum estabelecer uma grande confusão de visões sobre doutores e pesquisadores. Todos sabemos que para a obtenção do título de doutor, é necessário cursar e ser aprovado num conjunto de disciplinas. E, no final apresentar uma tese, na maioria das vezes nunca refutada, diga-se de passagem, perante uma banca examinadora. Geralmente este processo tem prazo. Se tudo der certo, ao fim de no máximo quatro anos uma pessoa recebe o título de doutor, na área que escolheu, ou pior ainda naquela área de conhecimento oferecida pela Instituição. Portanto o curso de doutorado é uma questão de legalidade.

Já o pesquisador é diferente, seus pré-requisitos são vocação e sacerdócio. O verdadeiro pesquisador se embrenha na busca e na produção de conhecimentos. Não se prende a horários regulativos e fazem da sua missão um verdadeiro sacerdócio de dedicação, honestidade e despreendimento, seu projeto é a sua vida. Portanto, doutor não é sinônimo de pesquisador. Isto não invalida que doutores não posam ser pesquisadores e vice-versa, desde que tenham os requisitos que caracterizam os verdadeiros pesquisadores.

Esta confusão, que privilegia a quantidade dos títulos tem prejudicado em muito o desenvolvimento das verdadeiras pesquisas nas Universidades. Estas por sua vez preferem andar por caminhos ombrófilos sem uma candeia para os iluminar. Deixam a luz debaixo da mesa e muitas vezes, sem rumo, esquecem por alguns momentos, as funções primordiais que motivaram as suas criações, que são: produzir e buscar o conhecimento, tarefa que só é possível através da pesquisa científica.

Se as instituições de fomento à pesquisa e as universidades não encontrarem o seu norte verdadeiro e continuarem distorcidas pelo emaranhado da burocracia, sempre dirigida por pessoas que não são do meio, os problemas que demandam respostas imediatas ficarão sem estas.

São sete estrelas,
Sete sábios,
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Quais as respostas?

Altair Sales Barbosa é Doutor em Antropologia e Pesquisador do CNPq.

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