‘É crime, uma pá de lama no rio Doce’, diz índio [Ailton Krenak] sobre desastre em Mariana

Ailton Krenak, 63, nasceu na bacia do rio Doce e desde os anos 1980 se tornou um intelectual e líder na luta pelos direitos dos povos indígenas no Brasil. Jornalista e escritor, recebeu das mãos do ministro da Cultura, Juca Ferreira, o título de professor honoris causa, concedido pela Universidade Federal de Juiz de Fora, na quinta-feira (18)

Olívia Freitas – Folha de S. Paulo / IHU On-Line

Pertencente à etnia Krenak, que leva no sobrenome, viu durante décadas a região onde nasceu sofrer perdas profundas.

Primeiro, o desmatamento e os empreendimentos obrigaram seu povo a migrar.

Depois, viu suas terras serem soterradas por um mar de lama com rompimento da barragem de Mariana (MG), em novembro passado.

Na tragédia, cerca de 40 bilhões de litros de lama foram derramados com rejeitos da mineradora Samarco, controlada por duas gigantes do setor: a brasileira Vale e anglo-australiana BHP Billiton.

“Eles acabaram com o território e com a vida das pessoas. Agora, jogam a pá de lama”, afirma ele, que mora na Reserva da Biosfera da Serra do Espinhaço, onde se encontram as nascentes dos rio São Francisco, Doce e Jequitinhonha.

Eis o depoimento.

O que a Vale e a Samarco fizeram, em conluio com os órgãos de fiscalização, é um crime. Não foi um acidente o derrame de lama em Mariana.

No Rio Doce, a minha vida de menino foi cheia de aventuras com os meus irmãos e uns 40 ou 50 primos.

O sobrenome Krenak veio da minha família indígena, o povo Krenak, que vive no Vale do Rio Doce, divisa do Espírito Santo com Minas Gerais.

Eu nasci num córrego chamado Itabirinha. Lá tem uma reserva indígena onde vivem umas 100 famílias Krenak.

Elas estão bem no rumo desse derrame que a mineração fez a 400 km da cabeceira do rio, mas que desceu até o mar e chegou ao Espírito Santo.

No rio Doce, tenho mais de 50 anos de lembranças. Nossa família, juntando netos, bisnetos, tataranetos e todos os outros, dá umas 70 pessoas. Todos viveram e nasceram ali.

Meus filhos cresceram indo para a beira do rio e conversando com ele, assim como fazia a minha mãe, a avó deles também.

Há 15 dias antes de acontecer esse derrame, minha mãe sonhou que tinha ido à beira do rio. O Doce pediu a ela para que não entrasse na água porque estava envenenada.

Depois do que aconteceu, ela fica lá olhando para o céu com o olho estatelado com um ar de ‘meu mundo acabou’.

Minha mãe é a matriarca dessa aldeia. Nasceu ali e criou uma grande quantidade de filhos, netos e tataranetos na beira do rio.

Agora, pergunta a eles: ‘Vocês não vão fazer nada, não? Eles mataram o rio. Vão ficar olhando?’.

Para os Krenaks, o rio Doce tem vida, é uma pessoa. Falar dele é como se referir a um antepassado. Ele tem o dom de curar as pessoas, de alimentar a imaginação e os sonhos. É onde batizamos as crianças.

É lógico que não é só um corpo d’água. São paisagens, montanhas. É uma região inteira onde o povo Krenak construíram suas aldeias no começo do século 20, quando ali só tinha mata.

Essa vertiginosa tomada pelos empreendimentos, que chegaram devorando a paisagem, culminou com esse envenenamento do rio.

Agora, todos os moradores estão com a mesma sensação de impotência e frustração diante da omissão do sistema de controle e gestão que deveria estar articulado em situações como essa, de crime ambiental.

O pessoal nas aldeias está até hoje com o rebanho parado. É a atividade que dá sustentabilidade à reserva, uma área pobre, apesar de ser berço da mineração.

A totalidade dessas famílias vivia da pesca e da criação de gado.

Há 10 anos, produzem leite e vendem para uma companhia de laticínios. A produção foi gravemente afetada. Estão tentando se recuperar, mas parte do rebanho morreu.

Acabaram com o território e com a vida dessas pessoas. Agora, jogam a pá de lama.

O sentimento que impera entre as famílias é um pouco de prostração e revolta.

As pessoas mais atingidas são vulneráveis e não têm como reagir à altura, porque estão diante de agressores que são muito mais fortes e poderosos.

É como se eles fossem grandes demais para levar uma multa e ir para a cadeia. É um adversário desproporcional, Que tamanho de multa vai afetar a Vale e a Samarco?

No caso de responsabilidade criminal, vai prender quem? É uma corporação, prende todos os diretores, todos os fiscais?

Os mais jovens têm dito que sentem que roubaram o futuro deles, acusam essas corporações de serem ladras de futuro.

Isso vai expulsar muita gente daquela região. Outra consequência será a desvalorização de tudo que construíram ao longo da vida. Quem vai querer comprar uma propriedade onde os animais não podem beber água do rio?

A sensação é que estamos em um país sem governo. Isso cria uma sensação de injustiça grande. É uma indignidade o que fizeram com o rio.

[Como líder da causa indígena], eu já fui ao Japão, à Europa, aos Estados Unidos, já andei pela América Latina, entrei em lugares que só doidão, guerrilha mesmo, anda. Fui a reunião do Banco Mundial, na ONU, na CIA, na KGB.

Para mim, esses lugares todos não têm importância nenhuma, porque o lugar mais bacana do mundo é o rio Doce.

Migração forçada

Não há mais vida no rio, está estéril, cheio de minério.

Nossa vida sempre foi marcada pelo ritmo da natureza. Lembro da minha infância, quando tinha enchente, a água trazia árvores.

Nessa época, não tinha percepção sobre coisas de meio ambiente, mas sabia que estavam roubando alguma coisa impagável e tirando da gente algo de valor inestimável.

Hoje, sei que eles estavam acabando com as nossas nascentes, com as nossas águas, com os pássaros, com os bichos que amo.

Reabilitação

Se não tivessem tirado a mata das terras altas do Vale do rio Doce, as nascentes iam continuar produzindo muita água boa e limpa, que iam cair na calha do rio e com o tempo ‘água mole em pedra dura, tanto bate até que fura’. Acontece que tiraram as matas.

Meu desejo é cheio de esperança de que a natureza nos surpreenda [e reabilite o rio].

Duas vezes por semana, o caminhão-pipa passa nas casas e nos núcleos de produção de leite e enche grandes caixas d’água. É o suficiente para cozinhar, beber, lavar as coisas e dar água aos animais.

Mas é uma situação de acampado. Ninguém vive assim, a não ser nos campos de refugiados da ONU, nos acampamentos dos sem-terra ou em lugar flagelado. É situação de emergência.

Os responsáveis por isso estão fazendo mitigação. Foi feito um resgate de algumas espécies que vivem nas margens e nos rios.

Para as famílias que vivem da pesca, foi criada uma ajuda financeira. Aos que tiveram seus rebanhos envenenados ao tomar água do rio, vão avaliar o prejuízo para indenizar depois.

Tem uma cerca isolando o limite inteiro da reserva com o rio para que o gado não chegue na água, porque se chegar vai morrer lá dentro.

Parece que as mineradoras querem ficar só nisso, vão enrolar, enrolar, até que todo mundo esqueça, que tenhamos uma tragédia ainda maior. Isso é revoltante.

Estamos articulados para reagir a essa ação e não vamos ficar na beira do rio prostrados. Os Krenaks estão o tempo todo berrando para mostrar que estão descontentes. Estão resistindo, porque amam o lugar em que vivem e têm histórias.

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