Diogo Sousa* – População Negra e Saúde
Em novembro de 2015, fui convidado para dialogar, junto a psicólogas e psicólogos, estudantes de psicologia e comunidade, sobre psicologia e práticas antirracistas, a partir dos estudos que tenho feito sobre saúde do homem. O evento foi organizado pelo GT Psicologia e Relações Raciais do Conselho Regional de Psicologia, regional Bahia.
Diálogo acalorado, Conselho cheio e o compromisso era importante para todas (os): uma Psicologia que paute seus fazeres ética e politicamente reconhecendo os modos como ela se conforma em práxis diante da colonialidade e do racismo que impregna as relações e produz sofrimento; uma Psicologia que não cesse de se transformar até ampliar sua potência transformadora junto à sociedade, colocando-se contra o racismo e as formas como as violências e o genocídio do povo negro tem acontecido; uma Psicologia que, diante das suas epistemes, seja mudança ativa.
“Raça vem na frente!”, disse uma das participantes. Diante das violências de gênero, sexualidades, identidades de gênero e do capacitismo – assuntos dimensionados ao longo das discussões – o que ela sinalizava era a marca como o racismo intensificava a(s) violência(s) sofrida(s). Em seguida, inquietado pela afirmação, outro participante lançou a afirmação enquanto pergunta: “Raça vem na frente?”.
Frente aos modos de subjetivação e singularização de cada sujeito, é possível dizer que apenas a experiência vivida e significada poderá ser capaz de dizer o que vem na frente. Isso quer dizer que uma pessoa negra pode ser mais impactada por violências relacionadas ao gênero, à sexualidade, à identidade de gênero, a uma deficiência, do que pelo racismo, a depender das experiências que são vivenciadas. Assim, raça pode não vir na frente.
Entretanto, significa também que, à luz de Neusa Sousa[1] e Frantz Fanon[2], a pessoa interprete suas vivências a partir de uma caricatura ou máscara branca, e tais experiências estão diretamente relacionadas ao racismo e ao modo como ele estrutura as relações. Estamos falando de uma estrutura racista e seu impacto nas micro e macro relações.
A pessoa negra não possui um destino negro, já nos disse Fanon, mas, antes, e, desde sempre, a obrigação de um destino branco impossível de ser vivenciado plenamente e incapaz de dar conta de suas demandas – postas as conjunturas sociais e marcadores raciais de diferenciação que não cessam de se manifestar. Assim, qualquer experiência que fuja às normas, sofreria maior impacto em função do racismo.
Que soluções poderíamos produzir frente a tais situações?
- Reconhecer a vida negra, o destino negro, os caminhos possíveis e também legítimos de ser e estar no mundo, fora da autorização de um sistema racista em selecionar o que da negritude está legitimado para se manifestar;
- A reconstrução radical do modelo de sociedade, de modo a destituir a lograda supremacia racial e seus dispositivos[3] de controle e subalternização dos corpos dimensionados a partir da heterossexualidade, cisgeneridade, monogamia, reprodução [4], entre outros;
Tanto a primeira quanto a segunda estratégia exigem revisitar e implodir matrizes de dominação humana: a colonização capitalista dos corpos e das singularidades barradas através dela. Se corpos elegidos foram transformados em objetos subalternos, destinados à dor, sofrimento e exploração através de uma matriz que, além de material é simbólica, seus impactos são vividos com intensidade no corpo físico-subjetivo face ao sofrimento que se faz presente sem nunca se revelar: é um quarto branco, solitário, silencioso, com cortinas brancas e homogêneas que aterrorizam sem produzir medo.
É preciso ver a cor, é preciso ver a raça. Ela vem na frente.
[1] Neusa Santos Sousa, Tornar-se Negro: as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1983. v. 4, 88 p.
[2] Frantz Fanon, Pele negra, máscara branca.Tradução: Renato da Silveira. Salvador, EDUFBA, 2008. 194 p.
[3] Dispositivo, tal qual apresentado por Foucault em “Microfísica do Poder” (2012): conjunto de elementos concretos e simbólicos, leis, instituições, modelo de educação etc, que atuam com função estratégia dominante de modo a produzir controle e normatizar a vida dos sujeitos.
[4] Não há oposição quanto à vivência da heterossexualidade, da cisgeneridade, da monogamia ou da reprodução, mas à estruturação da sociedade com base nesses modelos como únicos e universais.
*Diogo Sousa é psicólogo, mestrando pelo PPG/ISC/UFBA. Membro-coordenador do GT Psicologia, Sexualidades e Identidades de Gênero. Integra o GT Relações de Gênero e Psicologia, o GT Psicologia e Relações Raciais (todos pelo CRP-03). [email protected]