“Pensar violências do Direito no Brasil é pensar em instituições de classe, em Justiça de classe”, diz cientista jurídico

Debate sobre violências do Direito reúne especialistas no tema e vítimas de violência do Estado na Fundação Escola Superior da Defensoria Pública do Estado, no Centro do Rio de Janeiro

por , Ponte Jornalismo

Em meio às diversas violências que compõem o cenário cotidiano da “cidade maravilhosa” – como remoções populacionais forçadas, assassinatos praticados por policiais em favelas e outras violações sistemáticas de direitos humanos –, profissionais e estudantes de Direito, ativistas de direitos humanos e vítimas de violências do Estado compareceram, na manhã da última segunda-feira (11/04), ao auditório da FESUDEPERJ (Fundação Escola Superior da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro), no Centro do Rio, para debater “as violências do Direito e a perspectiva do seu fim”.

Com mediação do juiz do TJ-RJ (Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro), João Batista Damasceno, e do delegado da Polícia Civil do Rio de Janeiro, Orlando Zaccone, que integram o NUVID (Núcleo de Estudos das Violências do Direito), e diante de uma plateia numerosa, palestraram os professores Adriano Pilatti, da PUC-Rio (Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro), Carlos Henrique Aguiar Serra, professor de Ciência Polícia na UFF (Universidade Federal Fluminense), coordenador do PPGCP-UFF (Pós Graduação em Ciência Política) e membro do NUVID, e Marildo Menegat, da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), e a advogada Daniella Vitagliano.

Para o cientista político e jurídico Adriano Pilatti, “pensar violência no Brasil sem pensar 388 anos de escravismo, de tortura cotidiana, de tratamento de gente como coisa, é pensar pela metade”. “Essa herança escravista continua em nós, continua na incapacidade cognitiva de boa parte da burguesia brasileira de olhar para o trabalhador e ver ali um sujeito de direitos, continua em toda a patética liturgia das instituições públicas que constroem palácios, ritos e procedimentos em que os pobres se sentem absolutamente estranhos, envergonhados, intimidados, desde as vestes até o vocabulário. Os palácios de justiça não são feitos para os pobres em nosso país, nunca o foram”, criticou.

“O Estado não foi feito para os pobres. No Estado brasileiro dá-se um projeto de predação de natureza e gente. E a partir desse projeto é que esse Estado molda ou deforma uma sociedade com níveis de violência e desigualdades abissais que deveriam nos envergonhar cotidianamente, mas que nós naturalizamos na paisagem, de uma maneira às vezes até assustadora. Portanto, pensar em violências do Direito no Brasil é pensar em instituições de classe, em justiça de classe”, continuou o professor, que fez referências aos homicídios praticados por policiais nas favelas do Rio de Janeiro.

“Era preciso que um menino pobre fosse condenado exemplarmente e torturado cotidianamente pelo sistema de justiça do estado brasileiro, para avisar aos iguais a ele, que pessoas como ele não têm o direito de se insurgir”, disse ele, referindo-se à injustiça de que foi e tem sido vítima o ex-catador de latas Rafael Braga Vieira, história contada pela Ponte Jornalismo. “Nós temos o aparelho de um sistema de classe que é descaradamente sincero sob esse ponto de vista, apesar de todas as vendas. Essa combinação de fatores históricos, agravada pelo quadro atual do capitalismo, é apenas a última forma de barbárie, que nós também naturalizamos”, completou Pilatti.

Abordando a falência de um capitalismo “agonizante”, o cientista político Marildo Menegat afirmou que, nos últimos 40 anos, “não há um único país no mundo em que não haja fortes regressões sociais, jurídicas e na vida política” e “o que se apresenta, a partir dos anos 70, é uma regressão à barbárie” – o que se traduz num “quadro de grande instabilidade social que produz uma imensa instabilidade política”.

Para ele, “não basta dizer-se que no Brasil sempre houve violência, que essa sempre foi uma sociedade autoritária”. “Temos restos da Ditadura na nossa história. Mas há um aspecto novo nessa violência: ela hoje se realiza numa forma social de uma guerra civil interminável. Os índices de mortos anuais são de uma guerra civil que precisa ser aqui conceituada como um tempo de exceção. Não há qualquer possibilidade de uma sociedade em tempos de paz produzir 27 mortos por 100 mil habitantes”, destacou o professor.

Ao abordar as formas como o Direito trata “as massas que estão fora das relações sociais”, o professor criticou o sistema prisional. “O Direito, na medida em que aceita o processo de encarceramento em massa, acha que vai acabar com a crise social colocando os refugos sociais dentro de quatro paredes. Uma coisa absurdamente insana”, enfatizou.

Nilo Hallack, da Liga dos Camponeses Pobres. / Foto: Luiza Sansão
Nilo Hallack, da Liga dos Camponeses Pobres. / Foto: Luiza Sansão

“Relatos e retratos da violência do Direito”

Além dos especialistas, participaram do debate lideranças de movimentos de luta contra a violência de Estado. O dirigente da Liga dos Camponeses Pobres, Nilo Hallack, falou sobre a opressão no campo, a criminalização do movimento camponês em Rondônia, titulação de terras e assassinatos de camponeses, destacando a existência de “uma ação continuada do Estado para impedir o acesso à terra” e de leis ambientais “cujo caráter principal não é a defesa do meio ambiente, mas o de impedir o acesso do povo brasileiro à terra”.

Também falou a candomblecista Heloisa Helena Costa Berto, conhecida como Luizinha de Nanã, removida à força pela Prefeitura do Rio da Vila Autódromo, na zona oeste da cidade, que denunciou as humilhações que sofreu nesse processo, pelo qual diversas outras famílias da Vila Autódromo também vêm passando desde que começou o projeto para construção do Parque Olímpico na região.

Heloisa Helena Costa Berto, a Luizinha de Nanã, candomblecista da Vila Autódromo. / Foto: Luiza Sansão
Heloisa Helena Costa Berto, a Luizinha de Nanã, candomblecista da Vila Autódromo. / Foto: Luiza Sansão

“Em fevereiro, justamente por causa das minhas lutas, às 23 horas e 30 minutos, uma juíza deu uma emissão de posse, e às quatro horas da tarde [do dia seguinte] chegou um oficial, e às sete horas da noite minha casa foi derrubada. Não tive nem ao menos tempo para tirar minhas coisas, os cinco dias que a lei diz”, contou.

A representante do movimento da Aldeia Maracanã, Mônica Lima, falou sobre a resistência da Aldeia Maracanã e a questão indígena, a luta pela construção da Universidade Intercultural Indígena no Rio de Janeiro, que respeite a cultura dos povos originários e comunidades tradicionais. “O Direito está cumprindo o seu papel de nos expropriar e nos expulsar dos nossos espaços”, disse a líder indígena.

Mônica Lima, liderança da Aldeia Maracanã. / Foto: Luiza Sansão
Mônica Lima, liderança da Aldeia Maracanã. / Foto: Luiza Sansão

Falaram ainda os advogados Natália Damazio, da Justiça Global, sobre questão de gênero, Marino D’Icarahy e Carlos Eduardo Martins, do DDH (Instituto de Defensores de Direitos Humanos), sobre criminalização da advocacia.

Imagem destacada: Da esquerda para a direita, Marildo Menegat, Daniella Vitagliano, Orlando Zaccone, João Batista Damasceno, Carlos Henrique Aguiar Serra e Adriano Pilatti. / Foto: Luiza Sansão

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