Na natureza não existem espécies campeãs. Portanto, as monoculturas extensivas são antinaturais. É por isso que elas exigem uma luta permanente.
Por Leonardo Melgarejo*, Carta Maior
A agroecologia – uma introdução ao tema
Entre os anos 1980 e 2010 a temperatura do planeta subiu quatro graus (IPEA, Os desafios do desenvolvimento 2013. Ano 10, n.77, p70). Com isso a vida que conhecemos resulta ameaçada, e se aceleram os debates sobre a necessidade de reformulação no modelo de desenvolvimento dominante. Uma das certezas, neste tempo de crises, é que são necessárias relações menos deletérias, entre as atividades humanas e a capacidade de suporte dos ecossistemas. Afirma-se: a humanidade precisa acordar, antes que seja tarde[1].
Reside aí o principal argumento para maiores apoios ao desenvolvimento da agroecologia. Ela mostra que em defesa da vida precisamos superar a ideia tola de que o homem está acima da natureza. Ela lembra que os processos de exploração da natureza devem aprender com as leis naturais, ou não terão futuro.
Na natureza não existem espécies campeãs. Portanto, as monoculturas extensivas são antinaturais. É por isso que elas exigem uma luta permanente, contra a natureza. E se nesta luta usamos armas químicas, que envenenam o solo, a água e o ar, se faz evidente que os interesses associados a colheita das safras do presente comprometem o solo, o ar, a água e também as safras do futuro.
Apenas a ocultação de informações e a ignorância ou a apatia coletiva podem explicar este fato tão estranho quanto injusto: os privilégios imediatos de alguns estão se sobreponde aos direitos à vida e já ameaçam o futuro de todos. Resulta claro que algo está muito errado, e deve ser alterado.
Uma possibilidade é de que a enorme injustiça contida nestes fatos em algum momento se tornará óbvia, e terá fim. A outra é que a temperatura do plante seguirá subindo, e não despertaremos antes do caos.
Na natureza sempre que uma virose se expande, se o hospedeiro não mata o vírus, o vírus mata o hospedeiro. A mensagem é clara: o futuro está ameaçado e são necessárias ações concretas, distintas daquelas que nos trouxeram até este ponto.
Pois bem, a agroecologia aponta caminhos para superação desta visão anacrônica, superada, reducionista, apoiada em falsas promessas e obcecada pelo curto prazo.
Mas infelizmente as boas interpretações não resolvem problemas reais. A visão e a consciência de alguns, mesmo que com apoio do Papa, não são o bastante para mudar as tendências atuais. Para viabilizar mudanças nas relações do homem com a natureza, para alterar as formas dominantes na agricultura, a consciência ecológica deve crescer e incorporar outras dimensões. Deve invadir as cidades e as formas de relação social, o que exige uma força que está além da capacidade dos indivíduos isolados. Mesmo que muitos se superem, os resultados isolados serão frágeis e instáveis, pois as mudanças efetivas dependem dos grupos e das articulações entre os grupos.
Enfim, não basta o entendimento de que o futuro de todos depende da incorporação de aprendizados oferecidos pela natureza, onde tudo opera em redes que articulam interesses coletivos para atendimento das necessidades especificas de cada grupo. É necessária a ação consciente. E esta depende de um chamado inicial, do acesso a informações e de motivações. Depende de lideranças e de símbolos que abracem a todos, algo feminino como o amor de mãe.
Sem feminismo não há agroecologia!
Em 2012 milhares de mulheres camponesas obtiveram um compromisso da presidente Dilma, atendido no anúncio da Politica Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (PNAPO) e na promessa de realização dos planos e programas de suporte, que a viabilizariam (PLANAPO e PRONARA). Promessas não cumpridas porque resultaram dependentes de executores que não conseguem ou não querem perceber o alcance daquela demanda.
Mas semente foi lançada e a natureza obriga seu crescimento.
Hoje centenas de organizações do campo e da cidade se incorporam à luta pela PNAPO, pelo PLANAPO e pelo PRONARA (Programa Nacional de Redução de Agrotóxicos), e seguem o rumo traçado pela Marcha das Margaridas, com uma certeza: a vitória é certa pois a alternativa não tem futuro. A Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), a Associação Nacional de Agroecologia (ABA),.a Associação Brasileira de Coletiva (ABRASCO), o Conselho Federal de Nutricionistas (CFN), o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA), a Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida e o Fórum Nacional de Combate aos Agrotóxicos são apenas alguns dos grupos de referência, comprometidos com esta luta. Todos eles trabalham pelo esclarecimento da população, confiando que o acesso a informações provocará reações que levarão a superação de injustiças que ameaçam a todos.
A mitologia
A expansão da agroecologia é necessária e precisa ser apoiada. Para isso há que massificar o acesso a informações.
A agroecologia enfrenta interesses poderosos, que criam mitos e se valem de formadores de opinião onipresentes nos meios de comunicação, dotados de fé cega nas campanhas de marketing, sempre ocupados em desfazer o que contraria aqueles interesses e em anunciar as últimas promessas de soluções técnicas, para problemas criados pelo mesmo tipo de técnica que alimenta aqueles mesmos problemas, em sua gênese e raiz.
Resulta numa espécie de luta entre a escuridão e o clarão da consciência. O povo não é bobo. Mas precisa de informações que desmistifiquem valores simbólicos que perpetuam uma lógica excludente, onde a construção coletiva é acusada de criminosa, e os privilégios são enaltecidos como se nada tivessem a ver com a construção social que lhes permite existir.
O mito da ciência neutra e das soluções técnicas, que tem na transgenia um de seus pontos altos permite demonstrar a importância do acesso a informações adequadas e a fragilidade das barreiras que devemos superar.
Em sua maioria os intelectuais que servem aos interesses de empresas poderosas, e procuram desmerecer a agroecologia ao mesmo tempo em que enaltecem as vantagens da transgenia, sabem disso tudo, mas evitam conversar a respeito. Alguns poucos que talvez não o saibam, e se julgam protegidos pela ignorância da especialização obsessiva, também são responsáveis e fogem dos debates.
Encaremos o que segue como um desafio e uma proposição, da ABA, para a CTNBio e SBPC. O que devemos pensar do silêncio daquelas instituições? A ausência de comentários a este tipo de crítica deve ser interpretada como ausência de importância, para os temas propostos?
E se as questões são importantes, porque não conseguimos apoio oficial nem mesmo para debatê-las? Para detalhes a respeito de todos os tópicos expostos a seguir, ver FERMENT et al, 2015.
….. Alguns mitos[2]
1 – “Os produtos transgênicos são avaliados de forma exaustiva e são tão ou mais seguros que os produtos naturais.”
Na verdade os estudos que atestam segurança dos produtos transgênicos são desenvolvidos ou custeados pelas empresas interessadas na sua comercialização. Como exemplo considere que as avaliações de segurança alimentar e nutricional são realizadas a partir de grãos colhidos em canteiros especialmente implantados para assegurar bons resultados, nos testes. Plantas modificadas para suportar doses massivas de herbicidas (milho e soja tolerantes ao glifosato, por exemplo) são cultivadas na ausência do veneno e, contrariamente ao que ocorre com rações e alimentos consumidos no mundo real, as cobaias dos testes de segurança recebem grãos onde não existe qualquer resíduo de agrotóxicos. Além disso, os estudos são de curto prazo e não avaliam impactos de baixa densidade e longa exposição. Como se não bastasse, frequentemente se apoiam em amostras inadequadas, com escassas repetições. Mesmo assim, quando alguns testes apontam alterações estatisticamente significativas, elas são descartadas sob alegação de “irrelevância biológica”. Sequer as normas da Comissão Técnica nacional de Biossegurança –CTNBio-, contestadas por sua fragilidade, tem sido respeitadas em sua totalidade.
2 – “Os produtos transgênicos reduzem o uso de venenos agrícolas e protegem a saúde das pessoas e do ambiente”
No Brasil só temos lavouras transgênicas de algodão, milho e soja tolerantes a herbicidas ou que carregam proteínas inseticidas, ou que combinam estas duas características[3]. A expansão destas lavouras está acelerando o surgimento de plantas e insetos que não são controlados pelas práticas tradicionais. Isto traz duas consequências: (1) os agricultores ampliam o número de aplicações e a concentração dos venenos; (2) os agricultores utilizam venenos mais perigosos. Com isso, inseticidas biológicos dominados pelos agricultores e utilizados com sucesso ao longo dos últimos 50 anos, como o Dipel, estão perdendo eficácia. Em substituição a eles, produtos comprovadamente neurotóxicos, inclusive de uso proibido pela ANVISA, como o benzoato de emamectina, estão sendo importados com autorização do MAPA, para o controle de lagartas que devoram as plantas transgênicas como se nelas não existissem proteínas inseticidas. No controle de plantas a situação é semelhante, herbicidas extremamente tóxicos, proibidos em vários países, como Paraquat, Dicamba, 2,4D, estão sendo usados em escala crescente. Isto já transformou o Brasil no principal mercado destes venenos, e desde de 2008 somos campeões no uso de agrotóxicos.
3 – “As Sementes transgênicas são mais produtivas. Por isso são fundamentais para combater a fome do mundo”
A produtividade, assim como a tolerância à seca, depende de vasta combinação de fatores, envolvendo muitos genes, que operam de forma articulada em diferentes momentos do estágio de desenvolvimento vegetal e afetam a capacidade de absorção e metabolização de água, luz e nutrientes. As transformações genéticas existentes nas lavouras transgênicas de milho, soja e algodão disseminadas pelo Brasil, afetam apenas capacidades relacionadas ao manejo de plantas e insetos indesejados. Elas só permitem que as plantas tomem banhos de herbicidas, sem morrer, ou que produzam proteínas inseticidas, ou que façam as duas coisas ao mesmo tempo. Não interferem no metabolismo associado à produtividade e por isso não podem tornar as plantas mais produtivas. No máximo impedirão que o rendimento se reduza muito, em situações extremas de infestação de plantas indesejáveis, ou de ataque massivo de lagartas susceptíveis às proteínas tóxicas decorrentes da transgenia. Mas isso, em situação alguma, AMPLIARÁ a produtividade.
Todos agrônomos, biólogos e geneticistas sabem disso, e alguns possivelmente acessem vantagens ao esconder um fato básico: as empresas de biotecnologia já são donas das melhoradoras de sementes, que continuam produzindo variedades mais produtivas, não transgênicas. E estas variedades ficam escondidas dos agricultores enquanto não se tornam transgênicas autorizadas para cultivo, pela CTNBio. Elas só entram no mercado de sementes quando os agricultores não podem guarda-las para replantio, por causa dos direitos de propriedade intelectual que permitem cobrança de royalties. Como isso leva tempo, os agricultores estão sempre cultivando as melhores variedades do passado, que neste período de acelerada mudança climática perdem potencial de rendimento a cada ano. Portanto, não se trata apenas do fato de que a engenharia genética e a transgenia não oferecem plantas mais produtivas. A realidade é pior. A transgenia e domínio do mercado de sementes por pequeno grupo de grandes empresas é responsável pelo retardo no uso das sementes mais produtivas.
E para os ingênuos, que afirmam coisas como “eu planto soja transgênica e colho muito mais do que colhia quando plantava soja não transgênica”, deve ser dito que a soja mais produtiva, que ele planta hoje, só se tornou transgênica porque já era mais produtiva, embora não estivesse no mercado. E repetir: sua soja transgênica não é mais produtiva por ser transgênica simplesmente porque as manipulações genéticas inseridas na sua soja não aumentam a produtividade.
4 – “As lavouras transgênicas estão beneficiando a todos, aos grande e aos pequenos agricultores”
As sementes transgênicas custam até dez vezes mais do que as não transgênicas. Estas últimas, além de não estar sendo “atualizadas”, estão desaparecendo de mercado. Com custos crescentes e produtividade estacionada, os produtores de transgênicos se obrigam a expandir a área cultivada. Com isso, o tamanho mínimo economicamente viável para lavouras de soja, algodão e milho transgênico, tem crescido tanto que já não “cabe” nos estabelecimentos de pequeno porte. Na prática isto significa que as lavouras transgênicas estão inviabilizando as pequenas propriedades, fomentando o êxodo rural e desestruturando o tecido social responsável pela vida das comunidades rurais.
Por que os pequenos agricultores plantam transgênicos? Porque o manejo destas lavouras é simplificado, e para elas existem garantias de créditos, acesso mercados e renda. Estes mecanismos, estabelecidos no interesse das grandes corporações transnacionais, são direcionados a lavouras empresariais e não contemplam as preocupações e necessidades da agricultura familiar. Na prática, os pequenos estão sendo destruídos pelo avanço da transgenia.
5 – “As lavouras transgênicas contribuem o desenvolvimento nacional e estão sustentando nossa economia”
Neste ponto, considere o fato de que a chamada bancada ruralista[4] cresce em importância e atrevimento. Não apenas interfere em decisões de vários ministérios como está sendo fundamental para o impeachment da presidente Dilma. Se isto vem ocorrendo porque a economia nacional está se “primarizando”, ou se a economia está se “primarizando” pelo fortalecimento dos interesses catalisados por aquela bancada, é difícil dizer. O fato é que o Brasil esta voltando a ser uma colônia exportadora de produtos de baixo valor agregado, importadora de tudo aquilo que se faz necessário para extrair tais produtos, e destruidora das leis, das organizações e dos nacionalistas que se opõem a isso.
Em outras palavras, com a transgenia o Brasil vem se tornando, a cada ano, mais e mais dependente da exportação de grãos não diferenciados (comodities), que pouco agregam em termos de efeitos multiplicativos para a economia, e ainda deixam enormes estragos ambientais. E nossa economia ainda sangra pelo pagamento de direitos de patente, pelo uso das únicas sementes a que nossos agricultores tem acesso e também pela importação dos agrotóxicos associados. A quem interessa isso? Seis grandes transnacionais são “donas” das sementes transgênicas de soja, milho e algodão, que precisamos comprar todos os anos, para cultivar cada safra. No interesse delas, e de seus agentes locais, o governo poderia ser ameaçado de desabastecimento de sementes? Se isso acontecesse, o que se passaria com a economia nacional? O que assegura a disponibilidade de sementes de milho e soja, para plantio de cada safra, senão a boa vontade das empresas “donas” das sementes transgênicas? Aparentemente apenas o atendimento de seus interesses.
Como esta situação de abjeta subserviência poderia estar associada ao desenvolvimento nacional? A soberania, a segurança alimentar, o desenvolvimento brasileiro dependem do oposto. Dependem da multiplicação de sementes crioulas, nas mãos dos agricultores, apoiadas por programas e políticas públicas de base agroecológica. Dependem de avanços da Politica Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (PNAPO) e seu principal instrumento, o Programa Nacional de Redução de Agrotóxicos (PRONARA). Dependem da agroecologia, da ação das mulheres do acesso a informações e do avanço da consciência coletiva. Nosso futuro depende desta compreensão e do engajamento de todos, para sua consolidação.
Observação – A chamada Bancada Ruralista[5] sempre foi relevante no Brasil, onde a concentração de terras e de poder jamais deixou de crescer. Porém, em 2016 atingiu seu auge, sendo formada por pelo menos 18 dos 81 senadores (22% do total) e 175 dos 513 deputados federais (34%). No processo de impeachment da presidente Dilma ela teve papel decisivo. Sob pressões da bancada ruralista o governo antecipou recursos que não tinha disponíveis, para o plano safra 2015 (destaque para lavouras transgênicas). Esta antecipação, chamada de “pedalada fiscal”, foi considerada criminosa e, recebendo votos de todos os membros da bancada ruralista na Câmara Federal, permitiu aceitação do pedido de afastamento da presidente, e seu encaminhamento ao Senado. No Senado, outros membros da bancada ruralista concluíram pela aceitação do processo de impeachment.
Notas:
1 – UNCTAD 2013 – Trade and Evironment Review 2013, Wake up before it is too late: Make agriculture truly sustainable now for food security in a changing climate, disponível em http://unctad.org/en/pages/PublicationWebflyer.aspx?publicationid=666
2 – Extraído, com adaptações, de Melgarejo, L. O que é importante que todos saibam sobre os transgênicos. In Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul. Relatório Verde – Ação em Defesa do Ambiente Natural. Porto Alegre, RS. 2015, 300p
3 – Também foram aprovados os cultivos de feijão e eucalipto transgênicos, mas estas plantas ainda não estão sendo cultivadas em escala comercial.
4 – http://www.brasildefato.com.br/node/30142
5 – http://www.brasildefato.com.br/node/30142
*Leonardo Melgarejo – Eng Agr, Dr. Engenharia de Produção, Coordenador do GT Agrotóxicos e Transgênicos da Associação Brasileira de Agroecologia – ABA- , presidente da Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural – AGAPAN.