Os silêncios da Nova Agenda Urbana da ONU

Por ora, os objetivos que estão em discussão na ONU para o desenvolvimento das cidades até 2030 parecem estar ignorando uma série de cidadãos

Por Leandro Franklin Gorsdorf, Luana Xavier Pinto Coelho, Maria Eugenia Trombini e Thiago A. P. Hoshino*, na Gazeta do Povo

Em 6 de maio foi divulgado o primeiro rascunho da Nova Agenda Urbana (NAU), documento que conduzirá os debates da Terceira Conferência das Nações Unidas sobre Habitação e Desenvolvimento Urbano Sustentável – Habitat III, em outubro deste ano no Equador. Em regra, os documentos originados em eventos da ONU são resultado de difíceis consensos entre os países, levando à opção por generalizar os temas e abordagens para evitar debates mais espinhosos que costumam ser, também, os mais centrais. Tal postura reitera, ainda, o postulado do universalismo dos direitos humanos, que impera no órgão. Dessa maneira, questões específicas e o refinamento do olhar sobre as diferenças que compõe o mundo não raro são vistos como “perfumaria”, principalmente quando lidos sob a ótica do “desenvolvimento”, mesmo que seja este um suposto desenvolvimento sustentável das cidades.

Mas se as políticas definidas por ocasião da Terceira Conferência das Nações Unidas para Habitação e Desenvolvimento Urbano Sustentável são pactuadas por países, seus destinatários finais são sujeitos, cidadãos. Dado que os fatores gênero, idade, raça, etnicidade e renda distribuem desigualmente os ônus e benefícios da urbanização entre os indivíduos em um território, então essas diferenças devem ser o ponto de partida para a formulação, execução e fiscalização das referidas políticas. Afinal, não estamos a falar apenas de “recortes”, mas de identidades, por vezes coletivas, muito caras aos distintos projetos de vida urbana, aos distintos urbanos possíveis sob o guarda-chuva “cidade”.

“Minorias”?

Assim, a disputa pelos direitos das ditas “minorias” (muitas vezes sub representadas, a despeito de sua expressividade quantitativa) marca a história das Nações Unidas desde seu surgimento. Na Declaração Universal dos Direitos dos Homens de 1948 não há nenhuma referência ao assunto. O entendimento dominante no pós guerra era de que os direitos humanos universais eram capazes de substituir o “direito das minorias”. O artigo 2º destaca que os direitos elencados podem ser invocados por todos “sem distinção alguma, nomeadamente de raça, de cor, de sexo, de língua, de religião, de opinião, política ou outra, de origem nacional ou social, de fortuna, de nascimento ou de qualquer outra situação”. Ora, se no mundo real as distinções existem, então como dar conta delas e mitigar a aplicação enviesada dos direitos que delas se originam?

O primeiro dispositivo internacional de caráter multiculturalista foi a Convenção 169 da OIT sobre Povos Indígenas e Tribais em 1989. Ratificada pelo Brasil em 2004, seu preâmbulo menciona expressamente a “necessidade de abandonar a orientação assimilacionista das normas anteriores”, fruto de um pensamento liberal e eurocêntrico. A partir de então foram reconhecidos direitos diferenciais a determinados grupos. Ainda assim, tais direitos não são unânimes e mesmo hoje diversas normas de direito internacional evitam tangenciar a questão. O prejuízo dessa recusa é incalculável: basta pensar no número crescente de comunidades indígenas e quilombolas urbanas1, bem como de terreiros e demais territórios tradicionais nas cidades, apenas para nos atermos ao contexto brasileiro. Além disso, é inegável a racialização das periferias, ou a periferização das raças, não somente na América Latina, mas também nos guetos dos Estados Unidos e banlieus europeus.

Na contramão dessa perspectiva pluralista, o que encontramos no draft one do documento-base da Conferência Habitat-III é uma menção tímida, pontual, a determinados grupos que se encontram em “situação de vulnerabilidade” nas cidades, no formato de listas relacionadas à questão da igualdade e da não discriminação. Não há qualquer preocupação mais detida quanto às agendas destes atores, suas visões e versões da cidade, ou sobre como as desigualdades que constituem sua experiência urbana e afetam o acesso a direitos como transporte, saneamento, moradia adequada, espaços públicos. Nem mesmo a contribuição dos variados grupos culturais formadores do patrimônio nacional é reconhecida, haja vista o reduzido acervo de bens histórico-culturais protegidos em face de valores das matrizes africana e indígena, por exemplo.

Outros casos ilustram a mesma invisibilidade. A população LGBT, em inúmeras de suas demandas, reivindica pautas e direitos urbanos específicos. Há a discussão sobre segurança, ou melhor, insegurança, no espaço publico, que em certa medida aproxima-se dos problemas enfrentados pelas mulheres, embora com outra intensidade e formato. A rua, é notório, tem sido o espaço da violência contra, gays, lésbicas e trans. Segundo dados da entidade TransResspect, identificou-se que somente em 2016, mais de 100 pessoas trans foram assassinadas no mundo. Já quando a questão é moradia adequada, podem-se citar os casos de discriminação a casais entre pessoas do mesmo sexo nos programas governamentais de habitação ou mesmo na aquisição ou locação de casas entre particulares. Sobre isso despontam campanhas cada vez mais frequentes em cidades americanas.

Com relação às mulheres, por sua vez, o documento as inclui ao lado de outros “grupos vulneráveis”. Essa postura nega o potencial de agência e privilegia uma visão que as infantiliza em detrimento de outra, compatível com o empoderamento feminino. A crítica ao predomínio dos homens nas relações internacionais não é nenhuma novidade, decorre da hegemonia masculina nas estruturas de poder dos Estados nacionais, principais atores na “Organização das Nações Unidas”.

Além disso, o draft zero peca por não dialogar com documentos formulados pelas próprias Nações Unidas, como os informes da Relatoria Especial para a Moradia Adequada. Em alguns tópicos, o tom das discussões para a Habitat III se acha mesmo em descompasso com a posição dos demais órgãos de direitos humanos que compõem o sistema ONU.

Exemplo disso é a crítica feita pela Relatora do Direito à moradia adequada, Leilani Fahar, em seu relatório temático apresentado ao Conselho de Direitos Humanos da ONU em março deste ano, acerca da ausência da temática da população em situação de rua dos debates preparatórios da Conferência Habitat-III. Segundo ela, a atual condição mundial dessa população pode ser considerada como uma das mais graves crises de direitos humanos que a humanidade enfrenta. Com a financeirização da moradia e o abandono por parte dos Estados do dever de garantir acesso a uma moradia adequada, a situação têm se agravado mas, mesmo assim, o tema mantém-se longe dos debates da nova agenda urbana. O sucateamento das políticas públicas habitacionais e a ausência de enfoques mais pautados em direitos são fatores que inevitavelmente deixaram uma grande população em uma situação de rua.

Estigmatização, preconceito, discriminação são vividos pela população em situação de rua em seu cotidiano. Criminalização e exclusão têm sido as políticas dedicadas a estas pessoas. Apesar dos desafios colocados ao enfrentamento dessa crise, é necessário primeiramente compreender as causas estruturais que levam as pessoas para as ruas. Causas essas que não são tão diferentes do agravamento da desigualdade social, tanto no Brasil quanto no mundo.

Considerando todas as mencionadas ausências, a sociedade civil brasileira formulou uma carta, por intermédio da Plataforma Global do Direito à Cidade, reagindo ao texto do Rascunho Zero . Em particular, sobre as vulnerabilidades e opressões que atravessam e extrapolam o viés da pobreza, a carta menciona que “o documento não aprofunda as problemáticas relacionadas às desigualdades e exclusões vividas por grupos populacionais marginalizados”.

Na discussão sobre moradia e desenvolvimento urbano, esse silêncio é eloquente. Excluir atores específicos da Nova Agenda Urbana reforça uma prática não randômica, mas persistente na ótica da cidade. Isso porque os processos de financeirização da produção habitacional e de mercantilização do território obedecem padrões que beneficiam ou prejudicam grupos específicos de forma consistente. Tanto assim que o próprio Comentário Geral n. 4 do Conselho de Direitos Humanos da ONU sobre o PIDHESC ressalta a adequação cultural como uma das inextricáveis dimensões do direito à moradia digna.

Por esse motivo entendemos que a Nova Agenda Urbana deve avançar no que se refere aos invisibilizados e invisibilizadas na atual redação. “Leave No One Behind” ou “Não deixar ninguém para trás” é um dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS). Para efetivá-lo, imprescindível que se incluam grupos raciais historicamente discriminadas, LGBTs, povos e comunidades tradicionais e a população em situação de rua no Rascunho Zero para a Habitat III. Ressalte-se: inclusão como sujeitos do direito à cidade e não apenas “segmentos” a serem “considerados” passivamente na tomada de decisões ou “filtros” para agregação de dados estatísticos, conforme a versão atual sugere. Doutro modo, o destino mais certo da nova agenda, sobretudo no oceano de complexidade das sociedades pós-coloniais, não será outro senão o NAUfrágio.

*Leandro Franklin Gorsdorf, professor de direitos humanos do Núcleo de Pratica Jurídica da UFPR e membro do grupo de pesquisa Propolis; Luana Xavier Pinto Coelho, advogada popular da Organização Terra de Direitos, mestre em desenvolvimento urbano; Maria Eugenia Trombini, advogada popular da Organização Terra de Direitos, cientista social e mestranda em ciência política pela UFPR;Thiago A. P. Hoshino, doutorando em direito pela UFPR, pesquisador do INCT Observatório das Metrópoles e membro da Rede Nacional de Religiões Afro-Brasileiras.

1 – O Censo IBGE 2010 apontou mais de 300 mil indígenas já vivendo em cidades.

Foto: Periferia de São Paulo. Sem dados de autoria.

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