Quilombo do Camorim: uma história de preservação e resistência

Stephanie Reist* – RioOnWatch

“Éramos um quilombo rural que virou um quilombo urbano”, Adilson Batista Almeida explica como ele descreve o Quilombo do Camorim do Maciço da Pedra Branca, em Jacarepaguá, uma área na Zona Oeste do Rio, próxima ao Parque Olímpico.

Adilson Batista Almeida é o fundador, presidente e diretor da Associação Cultural do Camorim (ACUCA), uma organização comunitária que representa as reivindicações dos moradores do Camorim pelo título coletivo da terra, no intuito de preservar a história do território como um quilombo. Assim como sua vizinha Vila Autódromo, o Quilombo do Camorim tem sido ameaçado pela especulação imobiliária na Barra da Tijuca, que começou na década de 1980 e se acelerou nos últimos anos devido aos Jogos Olímpicos Rio 2016. Parte do território reivindicado pelo Quilombo do Camorim foi desmatado para dar lugar a condomínios recentemente construídos, que abrigarão jornalistas estrangeiros que cobrem os Jogos. Mais de mil árvores da Mata Atlântica foram derrubadas para o empreendimento.

“Dentro de nossa história, temos tanto conhecimento cultural, ambiental e histórico”, declara Adilson, detalhando a história do quilombo em frente ao reservatório de abastecimento de água da CEDAE, construído na virada do século 20 por moradores do parque estadual. Confrontado com os condomínios construídos e com as tensões dentro da comunidade, o Quilombo do Camorim está atualmente lutando para conservar esse conhecimento e modo de vida.

Conhecimento ambiental como resistência

Situado junto à entrada do Parque Estadual da Pedra Branca—parte da maior floresta urbana do mundo e um importante local para conservação da biodiversidade da Mata Atlântica, que se estende ao longo de grande parte do que é atualmente a Barra da Tijuca–a história do Camorim remonta à época dos índios Tupi-Guarani, que habitavam a região antes da colonização portuguesa no Brasil. O nome Camorim vem de um peixe que os habitantes locais capturavam na Lagoa de Jacarepaguá. Quando Salvador Correia de Sá, o Velho, primo do governador colonial Mem de Sá, reivindicou a área para sua plantação e engenho de cana de açúcar, ele manteve o nome indígena local.

Embora a estrada que leva ao Quilombo do Camorim esteja agora repleta de condomínios fechados, uma das jóias menos conhecidas da arquitetura colonial do Rio, a Igreja de São Gonçalo do Amarante, dá boas-vindas aos visitantes assim que entram na comunidade. Construída por africanos escravizados em 1625 e conservando muito de sua estrutura original, a igreja branca e azul celeste é uma prova da contínua produção cultural e ocupação da comunidade por afrodescendentes. Em 1965, o Instituto Estadual do Patrimônio Cultural do Rio de Janeiro reconheceu a igreja como marco histórico, sendo a mesma recentemente restaurada em 2000. O anexo e a praça ao lado da igreja também são espaços importantes para as atividades culturais–capoeira, jongo, maculelê–e ambientais da ACUCA, uma vez que o quilombo carece de um centro comunitário.

De acordo com Adilson, o território também possui importantes sítios arqueológicos. A senzala original localizada perto da igreja ainda conserva um pouco de sua estrutura original, apesar de ter sido significantemente alterada pelos moradores ao longo dos anos. Trilhas que agora fazem parte do parque estadual refazem os passos daqueles que fugiram e resistiram à escravidão. Os vestígios de seus esconderijos–pequenas cavernas, formações rochosas e casas de pau a pique–podem ser encontrados por toda a floresta no caminho para a Pedra do Quilombo, um pico que servia como importante ponto de vigia para os quilombolas. “Eles eram conhecedores dessa floresta”, afirma Adilson, e foi esse conhecimento do ambiente natural que possibilitou a resistência quilombola na região.

Adilson e a ACUCA continuam essa história de competência ambiental oferecendo visitas guiadas à comunidade e ao parque estadual. Adilson insiste que os visitantes respeitem a reserva natural, e ele tem incontáveis histórias de pessoas desacompanhadas de guia contaminando o abastecimento de água e nadando no reservatório, ou de pretensos desbravadores precisando ser resgatados por ele e por outros membros da comunidade quando se aventuram fora das trilhas de mais de 12.500 hectares do parque. Como administradores das terras de seus ancestrais, a ACUCA regularmente sedia eventos de reflorestamento e limpeza do parque, o mais recente dos quais ocorreu em 5 de junho, em comemoração ao Dia Mundial do Meio Ambiente.

Camorim e Adilson são exemplos da complexidade da história da escravidão, raça e racismo no Brasil. Embora lamente intensamente o fato, Adilson não esconde que é descendente de um capitão do mato, frequentemente um homem negro ou mestiço, encarregado de encontrar e devolver escravos fugidos. O bisavô de Adilson, Caetano de Camorim, foi inclusive mencionado nas crônicas de Magalhães Corrêa do início do século 20, sobre as remotas Jacarepaguá e Barra, O Sertão Carioca. “Infelizmente, eu não gosto de falar sobre isso, mas está dentro da história, porque é o negro que captura seu próprio irmão pra ser açoitado, mas infelizmente está na história. Então hoje eu procuro mudar esse conceito, tá dentro da minha história mas não faz parte da minha história esse conto”.

Lutas atuais: burocracia

Apesar dessa profunda conexão histórica, cultural e ambiental com o território–todos elementos fortemente levados em conta para a determinação do status de quilombo–o Quilombo do Camorim ainda precisa obter o título coletivo de suas terras. Em 2004, membros do Camorim solicitaram o reconhecimento como quilombo através do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA). “O processo com o INCRA tem sido muito difícil. Eu fui buscar informação, e não havia muita orientação”, explica Adilson Almeida.

Em 2003, um decreto presidencial dividiu o processo de reconhecimento do quilombo em duas etapas, envolvendo dois orgãos governamentais independentes. Primeiramente, a Fundação Cultural Palmares (FCP) deve registrar e reconhecer a autoidentificação da comunidade como um quilombo. Em seguida, a comunidade inicia um longo processo junto ao INCRA para demarcar oficialmente a comunidade e o território, através de um relatório técnico conduzido por um antropólogo, que pode levar de dois a mais de cinco anos para ser elaborado. Uma vez que o INCRA tenha verificado seus registros e aprovado a terra demarcada, o instituto inicia as negociações para reaver a propriedade dos detentores privados que não se identificam com a comunidade quilombola.

Embora a ACUCA tenha ido diretamente ao INCRA em 2004, eles não estavam cientes de que precisavam primeiro obter o registro com a FCP,  em virtude de mudança burocrática e, por isso, o caso foi arquivado em 2009. A ACUCA só obteve o reconhecimento de quilombo pela FCP em 2014 e seu processo original de 2004 no INCRA foi recentemente reaberto, mas isso significa que dez anos se passaram antes que as reivindicações de Camorim fossem efetivamente acatadas pelo governo, devido à falta de informação acessível e à má gestão.

Ainda que o INCRA tenha recentemente tomado medidas para informar melhor as comunidades quilombolas sobre seus direitos, mudanças ministeriais no governo Michel Temer–como o fato de parte do processo de demarcação dos quilombos e processos de titulação terem sido recentemente re-designados para a Casa Civil em parceria com o INCRA, e mudanças no Ministério de Educação que poderiam afetar o já mal implementado ensino da história e cultura afro-brasileira nas escolas–deixaram muitos temerosos de que esses ganhos para a população negra no Brasil possam parar devido a uma burocracia confusa, ou de haver um retrocesso por ação de poderosos lobistas do setor agrícola e membros do governo interino, que se opõem ativamente aos direitos territoriais do quilombo.

Tempo é essencial para as comunidades quilombolas, que enfrentam pressão externa e interna. Pouco tempo depois do Quilombo do Camorim ser reconhecido pela FCP em 2014, a Living, uma subsidiária do grupo de construção Cyrela, iniciou construções na terra reivindicada pela comunidade. Os condomínios quase acabados abrigarão os jornalistas internacionais durante a cobertura dos Jogos Olímpicos do Rio 2016, antes de fazerem parte de um mercado imobiliário que antecipou um aumento de aproximadamente 224% nos preços das casas na região, conforme pesquisa feita pelo Observatório das Metrópoles. Adilson admite que tentar nesse momento reivindicar o território seria uma árdua batalha jurídica. Ao contrário, ele espera que o grupo Cyrela reconheça o quilombo e, de preferência, ofereça um centro comunitário para as atividades e eventos da ACUCA, uma solicitação que a ACUCA fez ao Prefeito em fevereiro de 2014.

De fato, nenhum dos quilombos dentro do município do Rio de Janeiro reconhecido pela Fundação Cultural Palmares–Quilombo Pedra do Sal na Região do Porto, Quilombo Cafundá Astrogilda também no parque estadual Pedra Branca, próximo à Vargem Grande, e o Quilombo Sacopã na Lagoa, Zona Sul—recebeu o título coletivo integral para suas terras. Somente cerca de 10% dos mais de 2.800 quilombos reconhecidos receberam a titulação completa. Aqueles que possuem o título coletivo integral são predominantemente quilombos rurais, em parte devido à percepção, que afeta tanto os grupos indígenas como os afrodescendentes, de que o que é tradicional é necessariamente rural.

Devido ao semelhante esforço para obter reconhecimento de seus direitos, meios de subsistência e sentido de pertencimento territorial, o Quilombo do Camorim tem apoiado a luta da Vila Autódromo contra remoções face à construção do Parque Olímpico. Membros do grupo de capoeira do Camorim participaram da ocupação cultural da Vila Autódromo, em novembro de 2015.

Adilson entende o senso de pertencimento territorial que muitos na Vila Autódromo tinham: “O nosso próprio prefeito ao invés de preservar as estruturas que já existem, fez a remoção, e os levou para um local [Parque Carioca, habitação pública próxima ao Camorim] totalmente distinto da realidade daquelas pessoas. Para nós, representantes do Quilombo do Camorim, eles são irmãos e estão dentro do nosso território. A gente tem que unir forcas pra lutar pela mesma proposta”.

Futuro fragmentado

A construção de condomínios na área não é um desenvolvimento recente. O crescimento de Jacarepaguá e Barra da Tijuca, impulsionado pela especulação imobiliária ao longo das últimas décadas, trouxe o estabelecimento de pessoas de fora do quilombo no coração do quilombo, ao redor da igreja e nas áreas circundantes em condomínios fechados.

Esse crescimento, entretanto, trouxe novos protagonistas sociais como as igrejas evangélicas que criaram divisões dentro da comunidade. Nos dias 28 e 29 de maio, a ACUCA realizou um evento convidando professores universitários, membros da comunidade e da igreja evangélica–nenhum líder da igreja católica participou, apesar de terem sido convidados–para discutir as tensões na comunidade e as possibilidades de diálogo inter-religioso. Muitos quilombolas lamentaram que seus vizinhos e familiares tivessem se desassociado da identidade afro-brasileira devido à ideia de que a capoeira e o Candomblé são “macumbas” ou “bruxarias”. Heloisa Helena Costa Berto, uma praticante do Candomblé cuja casa e centro espiritual na Vila Autódromo foram demolidos, participou do evento e externou o sentimento de estar no ostracismo na região, devido ao seu papel de líder espiritual, e defendeu a moradia e os direitos religiosos dos afro-brasileiros.

De acordo com Adilson, aqueles que participam das atividades e eventos culturais da ACUCA, normalmente, são mais de condomínios próximos do que da própria comunidade. Adilson estima que somente 20 a 30 famílias dentro do território do quilombo se identificam como quilombola. Rosaline, filha de Adilson, que também atua como vice-presidente da ACUCA, reconhece o papel de seu pai como uma enciclopédia viva para a comunidade: “Eu preciso aprender mais. Ele sabe tudo e é importante para a comunidade aprender a nossa história”.

Adilson entende sua missão como sendo um dos que podem deixar um legado de resistência histórica e cultural afro-brasileira para a juventude, não só do Quilombo do Camorim, mas do Rio e do Brasil:

“Nós criamos uma coreografia e a nomeamos sankofa. Sankofa é um pássaro [que significa/representa] voltar ao passado, buscar as origens, aprender as coisas boas e trazer para o presente, construir um futuro melhor… esse legado é para as crianças, elas têm que conhecer a própria origem, porque faz parte do descobrimento do Brasil. Nessa parte da floresta, que a gente vê aqui, existe um povo que realmente lutou para preservar, que sofreram, muitos morreram açoitados, e hoje nós temos esse ícone da cultural ambiental.”

Apesar de um centro cultural não restaurar o território que aquela comunidade já perdeu, ele pode servir para preservar a riqueza histórica, cultural, ambiental e política que o Quilombo do Camorim tem cultivado por gerações.

*Stephanie Reist está pleiteando um Mestrado em Políticas Públicas e um doutorado em Estudos Latino-Americanos na Universidade de Duke, EUA. Sua pesquisa analisa a dinâmica centro-periferia, pertencimento, cidadania e direitos sobre a terra em favelas e quilombos do Rio de Janeiro.

Comments (1)

  1. Ao ler o post “Quilombo do Camorim: uma história de preservação e resistência”, no site Racismo Ambiental associei o contexto e o inter-relaciono a importância da Educação como instrumento formativo e como instrumento de apresentação da história e os fatos que compõem locais, vidas e culturas. E a partir, desses conhecimentos estruturar mecanismos de preservação e de divulgação dessas histórias, desses contextos e de seus processos de constituição, para dividi-los com outras pessoas através de atividades educativas, dessa forma preserva-se a memória e possibilita a outras pessoas conhecimentos aplicáveis as suas vivências.

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