Rapinar o Estado e cortar direitos é bom para o mercado financeiro, não para você

Por Gustavo Henrique Freire Barbo, no Justificando

No final de 1974, o presidente Ernesto Geisel anunciava o II Plano Nacional de Desenvolvimento. Lançado no minguar do chamado “Milagre Econômico” e de uma forte crise do petróleo, o II PND foi a solução encontrada pela ditadura militar brasileira para lidar com a forte recessão da época, articulando o capital de empresas controladas pelo Estado com o capital financeiro e empresarial objetivando iniciar um novo ciclo de industrialização no país. O II PND, muito mais arrojado que sua versão anterior, implicava uma forte intervenção estatal nas áreas de infraestrutura como produção de energia e sistemas de telefonia.

Geisel, no entanto, sofreu forte oposição da linha dura da caserna e de seus representantes da ARENA, partido que dava sustentação política ao regime militar. Muito embora o II PND aceitasse de bom grado a participação do capital privado, isso não impediu que Geisel fosse tachado de comunista e acusado de querer dar início a uma “república soviética brasileira”. A reação tinha um objetivo claro: levar abaixo qualquer perspectiva que colocasse o Estado como indutor de políticas de longo prazo, ainda que não houve óbices à participação do empresariado. Não coincidentemente, foi neste momento que nossas elites empresariais começaram a perder a graça pelo governo dos militares e apoiar os movimentos que clamavam pela redemocratização.

O episódio acima revela como temos uma elite de rapina, ausente de qualquer identificação afetiva com o futuro da nação e interessada tão somente em contemplar seus interesses mesquinhos e predatórios a curto prazo ao invés de articulá-los com um projeto desenvolvimentista reestruturante para o país. Sem falar nos arautos do capitalismo financeiro, exportadores de um modelo de enxugamento do Estado do qual eles próprio desdenham.

Com efeito, o paradoxo – ou a hipocrisia – da globalização e da defesa da diminuição do Estado que vem sendo aplicada no Brasil encontra eco na emblemática situação de Mali, país situado na África ocidental. Embora Mali produza algodão e gado de boa qualidade, o subsídio que o governo norte-americano dá a seus produtores de algodão equivale a valores maiores que todo o orçamento do Estado malinês, ao passo que a União Europeia subsidia cada vaca com 500 euros por ano, mais do que o PIB per capita do país africano, que a exemplo da maioria das nações periféricas, sofre intensas pressões de organismos internacionais para que abrace o livre mercado global enquanto fórmula para o desenvolvimento. É óbvio tal situação extrai por completo a competividade dos produtos malineses. “Não precisamos de ajuda, conselhos ou palestras sobre os efeitos benéficos do fim da regulação estatal. Basta que vocês cumpram com suas próprias regras e nossos problemas acabarão”, soltou o ministro da economia do país.

A hipocrisia escancara-se ainda mais se voltarmos os olhos para a história do desenvolvimento econômico dos Estados Unidos, a começar pelas referências grafadas em sua própria moeda. Na nota de dez dólares, por exemplo, está Alexander Hamilton, grande mentor moderno do sistema econômico norte-americano. Em 1789, quando ocupava o cargo de Secretário do Tesouro, elaborou um relatório no qual concluiu que “as indústrias que estavam na infância”, como as de seu país, precisavam ser protegidas e cultivadas pelo governo antes que pudessem se erguer sozinhas.

Na nota de cinquenta dólares, por sua vez, figura Ulisses Grant, herói da Guerra da Secessão que veio a se tornar presidente. Resistindo à pressão inglesa para que os Estados Unidos abrissem mão de políticas intervencionistas e abraçassem despudoradamente o livre comércio, comentou: “daqui a duzentos anos, depois que a América tiver extraído da proteção tudo o que esta pode oferecer, ela também adotará o livre comércio”. O prazo estipulado por Grant expira em 2075.

Andrew Jackson, presidente norte-americano no período de 1829 a 1837 cujo rosto estampa a nota de vinte dólares, cancelou em 1836 a licença do segundo banco dos EUA, afirmando que os investidores estrangeiros eram proprietários de uma parte “grande demais” da entidade bancária. E quanto era essa parte? Apenas de 30%. Ha-Joon Chang, economista sul-coreano, reflete sobre o que aconteceria se um país em desenvolvimento cancelasse hoje a licença de um banco pelo fato dos norte-americanos ou entes transnacionais serem proprietários de 30% de suas ações. Certamente o Departamento do Tesouro dos Estados Unidos teria um chilique, na esteira de raivosas reações de analistas econômicos e da imprensa corporativa do país nativo. “Chavista” ou “bolivariano” seriam o mínimo que se ouviria de setores conservadores.

Não assusta, portanto, que posicionamentos contrários à rapinagem desvairada promovida pelo governo Temer, que acaba de entregar o Pré-Sal ao capital internacional e promover uma série de medidas que objetivam diminuir os recursos de áreas essenciais como educação e saúde, sejam tachados dessa maneira. O próprio presidente, cuja “Ponte para o Futuro” prevê privatizações ensandecidas, acaba de retirar do sarcófago o macarthismo bolorento alimentado por boa parte dos que saíram às ruas de verde e amarelo, adotando oficialmente o slogan “vamos tirar o Brasil do vermelho”.

Ignora o mandatário que o governo Dilma foi um governo de sucessivas capitulações ao conservadorismo e sobretudo ao rentismo parasitário, além de ter sido a queda das receitas – em parte em razão de uma equivocada política de desonerações – e não o aumento das despesas que ocasionaram o déficit fiscal.

Enxergando a oportunidade gerada pela crise política e econômica, iniciou-se um processo brutal de espoliação do Estado brasileiro, processo vendido como a única saída para colocar o Brasil nos trilhos. A pilhagem oportunista toma forma na PEC 241, que pretende impor uma política de austeridade de duas décadas e representa bem o discurso único que ignora alternativas palpáveis, melhores à sociedade mas contrárias aos interesses do mercado financeiro. Entre elas estão a realização da auditoria da dívida, uma reforma tributária que abarque o aumento da taxação da renda e do patrimônio, a implementação de instrumentos de combate à sonegação e à elisão fiscal e a execução da dívida ativa, que hoje passa do trilhão. Tais medidas – a maioria das quais já previstas por nosso ordenamento jurídico – gerariam o aumento estrutural das receitas e possibilitariam a ampliação do catálogo de direitos fundamentais ao invés de cortá-los na faca.

Só um altíssimo grau de colonização do espírito é capaz de explicar não apenas a indiferença dócil a violências explícitas como as acima trazidas, mas também o apoio entusiasmado de pessoas assalariadas ao desmonte do Estado e ao sepultamento de direitos constitucionais que se encontra em curso. É a narrativa do mercado financeiro que impôs, por exemplo, que em 2014 os orçamentos da saúde e educação somados fossem da ordem de 220 bilhões enquanto o pagamento dos juros da dívida abocanhasse monta superior a um trilhão do orçamento público federal. A PEC 241 vem exatamente para garantir que esse fosso aumente ainda mais em favor do rentismo.

A ousadia de propor uma política de arroxo fiscal para os próximos vinte anos mostra como a reação imediata ao duplipensar criminoso que defende que retirar direitos e diminuir o Estado será bom para a sociedade é o primeiro passo para que saiamos da inércia e resistamos aos tempos sombrios que despontam no horizonte. As gerações futuras nos agradecerão.

*Gustavo Henrique Freire Barbosa, advogado, membro da Comissão de Estudos Constitucionais da OAB/RN, membro da Rede Nacional de Advogadas e Advogados Populares (RENAP), integrante do Instituto de Pesquisa e Estudos em Justiça e Cidadania (IPEJUC), mestrando em Constituição e Garantia de Direitos pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).

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