‘Racismo não está só na direita, mas em toda a sociedade’, diz diretor de teatro alemão Thomas Ostermeier

À frente do Teatro Schaubühne, encenador dá palestra no Rio nesta segunda

Por Luiz Felipe Reis, em O Globo

RIO – Palco de nomes como Brecht, Frank Castorf e outros ícones teatrais, a Alemanha assistiu, duas décadas atrás, à chegada de um novo gigante, Thomas Ostermeier. Com seus mais de 1,90m, aos 28 anos ele começou a transformar o espaço Baracke, em Berlim, em um bunker de resistência e experimentação estética. Pouco tempo depois, em 1999, tornou-se o diretor artístico do importante Schaubühne, dando continuidade acima de qualquer expectativa ao trabalho do encenador Peter Stein, que consagrou aquele teatro nos anos 1970. Conhecido pela capacidade de transformar clássicos em radicais encenações contemporâneas, ele vê o teatro como um campo de observação e crítica social, e diz que busca se contrapor ao temor e ao terror que pesam o ar da capital alemã e os corpos de seus atores.

É no Schaubühne que Ostermeier e sua equipe travam batalhas diárias contra a atmosfera de medo que domina a Europa — no momento, eles enfrentam inclusive uma batalha judicial com políticos de extrema direita para seguir encenando uma das peças de seu repertório.

Aos 48 anos, o diretor está no Rio para ministrar um workshop e faz, nesta segunda, no Sesc Copacabana, uma palestra às 19h, a convite do Instituto Goethe e do Sesc. Depois, embarca para o Festival Santiago a Mil, no Chile, onde apresenta duas criações: “O casamento de Maria Braun” (2008), de Rainer Werner Fassbinder, e “Um inimigo do povo” (2012), de Ibsen, que montou em São Paulo em 2013, em sua última passagem pelo Brasil.

Em “Professor Bernhardi” (1912), de Arthur Schnitzler, sua mais recente direção, o embate entre um médico judeu e um padre católico catapulta um escândalo público e uma escalada de antissemitismo. O que o fez pôr em diálogo esse texto e o público contemporâneo?

Aos olhos de hoje, trata-se de uma peça sobre o racismo, o populismo e a ascensão da nova direita, ou do novo fascismo, se preferir. É uma investigação sociológica que observa 22 personagens num hospital. Através de detalhes da rotina de trabalho, revela como o racismo se imiscui e destrói as relações humanas, e também como é possível derrubar pessoas através de rumores. Hoje você vê pessoas retiradas do poder a partir desse expediente. É algo, inclusive, a ser tratado urgentemente no Brasil. E é também sobre o que estamos enfrentando agora na Europa. Uma sociedade que, para competir, se utiliza de ferramentas de exclusão. E uma das formas de excluir o outro da competição é o racismo, nesse caso o antissemitismo. É chocante ver uma peça de 1912 se aproximar tanto de hoje. Estamos voltando para trás, nos repetindo de modo deprimente.

O teatro alemão vem criando respostas cênicas a temas como a crise migratória, xenofobia, racismo, terrorismo… De que modo o seu teatro vem reagindo a tais questões?

No nosso repertório há três peças lidando com isso. “Fear”, de Falk Richter, é ativismo político em cena (a peça mostra imagens de vários políticos alemães e, na trama, Beatrix von Storch, do partido conservador Alternativa para a Alemanha, é atormentada pelo fantasma do avô, que foi ministro de Hitler). Fomos parar na Justiça porque representantes da nova direita moveram ações que pedem a proibição da peça. Foram ao nosso teatro, invadiram o palco… Nós já ganhamos dois casos, mas há um novo julgamento em fevereiro. Já “Compassion”, de Milo Rau, nos pergunta por que sentimos empatia pelos estrangeiros que estão mais perto de nós, mas não pelos que estão no Congo morrendo em genocídios, há décadas. E o meu novo trabalho (“Retours à Reims”, inspirado no livro de mesmo nome do filósofo francês Didier Eribon) questiona a função das pessoas do nosso meio, jornalistas, artistas, a intelligentsia

E que contribuição efetiva um artista pode oferecer? Qual ação transformadora?

Essa nova direita não vem ao teatro. O que fazemos, então, é nos dirigir à plateia burguesa. Criticar as atitudes da burguesia em relação a tais questões, e revelar as nossas falhas diante disso. É algo urgente. Porque o que ocorre agora é que a xenofobia e o racismo estão se infiltrando não só em quem vota à direita, mas na sociedade como um todo, na classe média. Partidos da burguesia estão absorvendo temas introduzidos pelos movimentos reacionários. Então é uma luta a ser travada com a classe média, com os partidos conservadores e, também, com os social-democratas.

Como reagiu ao recente ataque a Berlim (no dia 19 de dezembro de 2016, um caminhão atingiu um mercado, matando 12 pessoas)?

Organizamos uma jornada artística. Convidamos as pessoas a se juntarem fazendo música, lendo poemas, conversando, para mostrar uns aos outros que não estamos sozinhos e que assim não iremos seguir nossos primeiros impulsos de vingança. Não quero, aqui, soar ingênuo, mas a beleza da arte, em todas as formas, é uma alternativa a um mundo cheio de violência. É preciso lembrar a nós mesmos e provar, ao menos dentro do teatro, que vozes importantes do humanismo ainda estão aqui. Mensalmente convidamos pensadores para debates públicos. Há pouco recebemos Didier Eribon. Meu próximo trabalho parte de seu livro “Retours à Reims”. Nele, Didier narra seu retorno à casa da sua família, de trabalhadores outrora comunistas e que, hoje, votam à direita. Ele tenta descrever por que as pessoas perderam a confiança na esquerda.

Como avalia a situação de Merkel após o ataque, e a sua política de refugiados?

É claro que apoio sua decisão de deixar os refugiados entrarem. Foi uma ação importante. Mas a questão é complexa, pois aqui também há pobreza, uma classe trabalhadora cujos ganhos não crescem há anos, e isso num dos países mais ricos do mundo. Não podemos esquecer dos alemães pobres, porque se isso acontecer vai impulsionar o racismo, a xenofobia… “Por que o governo se preocupa com sírios e não faz nada por nós?”, essas coisas. É necessária uma reformulação, do contrário veremos muita violência dentro do país.

Considera o medo um sentimento dominante na Europa de hoje?

Sim, mas não é de agora. O medo está aí há mais de 20 anos, desde quando a agenda neoliberal foi absorvida pela classe média. Nela, é preciso sentir medo. Medo de decair socialmente. Ele é importante para a implementação e a continuidade do neoliberalismo.

Como diretor, qual é sua principal investigação artística, nesse momento?

A arte de atuar. É a minha maior preocupação. Em muitas peças a que tenho assistido, sinto que os atores não atingem o seu potencial. Fazem um trabalho chapado, ou criam retratos superficiais de seus personagens. Me sinto pessoalmente responsável em defender essa arte, o milagre que é alguém se transformar num personagem tridimensional, com múltiplas camadas, na minha frente. Porque odeio a teatralidade falsa que vejo. Pessoas falando de um jeito estranho, com gestos exagerados, parecendo ridículos… E é isso que boa parte dos espectadores comuns têm em mente quando ouvem “teatro”. Odeio isso. E se a gente não lutar firmemente contra isso, o teatro corre o risco de se tornar uma arte velha e ridícula.

E como seu método atua contra isso?

Meu teatro é centrado na situação dramática e na interação entre parceiros de cena. É sobre como entrar em real comunicação com a peça e com quem está ali, na sua frente. Trabalho para ativar a percepção. Geralmente há muito temor nas salas de ensaio. As pessoas têm medo de ir ao palco, de culpar a si mesmas no palco. Busco ferramentas que os ajudem a esquecer desses medos.

 

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