Discurso punitivo que emerge do “ódio à corrupção” sufoca o debate sobre violações aos direitos humanos em usinas
Daniel Giovanaz, no Brasil de Fato
Em artigo publicado em novembro de 2016, o jornalista e cientista político Leonardo Sakamoto criticou a comoção seletiva da população brasileira diante das acusações sobre o pagamento de propinas para a construção da usina hidrelétrica de Belo Monte, no Pará: “A maior parte das pessoas só fica revoltada com Belo Monte por conta de denúncias como essas. E todo o impacto social e ambiental causado pela usina?”, pergunta. “E as comunidades indígenas, de ribeirinhos e demais populações afetadas?”.
Relator de uma comissão especial do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (CDDPH) durante as obras da usina, Sakamoto considera que a política de construção de hidrelétricas no Brasil é estruturada na base do medo, e que Belo Monte é apenas um dos exemplos de ataque aos direitos humanos que ficam à margem da indignação causada pelas denúncias de corrupção.
Números divergentes
Iury Paulino, um dos coordenadores do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) no Pará, afirma que 50 mil famílias foram afetadas pelo megaprojeto Belo Monte, mas muitas delas não foram reconhecidas ou indenizadas pela Norte Energia S.A., empresa responsável pela hidrelétrica: “Um dos grandes problemas é que os números da Norte Energia nunca batem com os nossos. Assim como os laudos da empresa não batem com os relatos dos pescadores da região”, afirma. A principal demanda do movimento é que a Norte Energia seja afastada das operações da usina.
A hidrelétrica de Belo Monte foi inaugurada em maio do ano passado e se tornou a terceira maior do mundo em potência. Orçada em R$ 16 bilhões, ela custou aproximadamente R$ 29 bilhões e foi instalada na bacia no rio Xingu. Segundo a empresa responsável pelas operações, cerca de R$ 4 bilhões foram investidos nos municípios localizados na área de influência da usina – principalmente, no município mais próximo, Altamira. Porém, os investimentos e compensações financeiras não foram suficientes para remediar os impactos ambientais e sociais do projeto.
Problemas sociais
As águas subterrâneas que abastecem Altamira foram degradadas, de acordo com o “Dossiê Belo Monte” produzido pelo Instituto Socioambiental (ISA) em junho de 2015. Ainda segundo o documento, a divisão de dezenas de comunidades indígenas e o intenso fluxo migratório nos municípios vizinhos à usina acarretaram problemas de saúde e segurança pública: a desnutrição infantil nas aldeias cresceu 127% e os assassinatos, 80% em três anos.
O que mais sensibiliza a opinião pública, no entanto, é que caso Belo Monte passou a ser investigado em 2015 pelo juiz Sérgio Moro na 13ª Vara Federal de Curitiba. A denúncia de corrupção que envolve a hidrelétrica diz respeito ao pagamento de propinas – equivalentes a R$ 150 milhões, segundo a delação premiada de executivos da Andrade Gutierrez à Lava Jato –, para bancar campanhas eleitorais do PMDB e do PT.
Os senadores Renan Calheiros (PMDB), Valdir Raupp (PMDB), Jader Barbalho (PMDB) e Romero Jucá (PMDB), um dos articuladores do golpe contra Dilma Rousseff (PT), comandavam esquemas de desvios de dinheiro em empresas do setor elétrico, segundo o ex-senador Delcídio do Amaral. Todos eles, a exemplo do ex-ministro Antonio Palocci (PT), negam participação no esquema.
Esquema montado durante o governo Yeda Crusius (PSDB)
Além de Belo Monte, outras três hidrelétricas denunciadas pelo MAB por violações aos direitos humanos e danos ambientais passaram a fazer parte do noticiário nacional devido às investigações da Lava Jato. Praticamente indiferente aos desvios no curso de rios, à degradação de áreas de vegetação nativa e ao deslocamento e desabastecimento de milhares de pessoas, a opinião pública reagiu imediatamente às denúncias de pagamento de propina durante a construção de represas no Rio Grande do Sul, em Minas Gerais e em Rondônia: elas ocorreram no período de maior respaldo popular da Lava Jato.
A empreiteira Odebrecht participou das obras das quatro barragens que estão no radar da Polícia Federal, e as primeiras sentenças foram divulgadas em junho do ano passado. No Rio Grande do Sul, dois ex-secretários da governadora Yeda Crusius (PSDB) foram condenados em primeira instância por participarem do esquema de corrupção na barragem de Taquarembó, iniciada em 2009, próximo à fronteira com o Uruguai.
A construção da represa, entre os municípios de Dom Pedrito e Lavras do Sul, no Sudoeste gaúcho, é investigada pela Polícia Federal (PF) desde 2015. Projetada em 2008 para irrigar 35 mil hectares, ela foi orçada pelo valor de R$ 59,8 milhões, mas deve custar o triplo.
A área irrigada atingiu centenas de famílias que viviam no subdistrito de Cerro do Ouro, em São Gabriel, que passaram a receber indenizações “muito aquém do que o mercado tem praticado”, segundo o Sindicato Rural do município. Conforme estimativa do governo estadual, mais de 10% do valor total da obra foi destinado às desapropriações.
Além do problema das compensações financeiras, líderes de comunidades indígenas e moradores da região articulados com o MAB e a Assembleia Permanente de Entidades em Defesa do Meio Ambiente (APEDEMA) criticam o atraso na divulgação do estudo que prevê os impactos ambientais da barragem. O desvio do arroio Taquarembó, de acordo com os moradores, tem causado prejuízos econômicos àqueles que dependiam da pesca de peixes nativos como o dourado e o surubim.
Denúncias: propina e fraude
Os primeiros indícios de corrupção na construção da barragem foram levantados pela PF após a análise de e-mails do setor de operações estruturadas da Odebrecht, uma “ala secreta” da construtora responsável por distribuir vantagens indevidas a políticos e operadores financeiros. Os maiores beneficiários das propinas seriam ex-integrantes do governo Yeda Crusius, parlamentares e empresários gaúchos.
A Justiça Federal condenou em junho de 2016 quatro pessoas por fraude na licitação de Taquarembó: Rosi Bernardes, ex-secretária-adjunta de Obras, Rogério Porto, secretário da Irrigação do Rio Grande do Sul, Marco Antônio Camino, dono da MAC Engenharia, e Neide Viana Bernardes, funcionária da Magna Engenharia. As penas variam de três a seis anos de prisão, e todos recorreram da sentença. Antes de entrar no raio de atuação da Lava Jato, a investigação sobre as fraudes de Taquarembó ocorria no âmbito da operação Solidária, também da PF, que demonstrou através de grampos telefônicos que servidores do governo do PSDB tinham influência sobre o processo licitatório a tal ponto que podiam alterar editais para que determinada empresa fosse contemplada.
A barragem mais alta do Brasil
A obra da usina Irapé, no Vale do Jequitinhonha, possui a barragem mais alta do Brasil e atingiu mais de cinco mil famílias no Norte de Minas Gerais, segundo o MAB. Uma parte significativa delas não dispõe sequer de fornecimento de energia elétrica.
Integrante do movimento na região da usina Irapé, Aline Ruas afirma que a contaminação das águas, a morte de várias espécies de peixe, a ineficiência do abastecimento fornecido pela Companhia Energética de Minas Gerais (Cemig) e a perda de 70% da capacidade de produzir alimentos no cultivo das vazantes são os impactos mais evidentes da hidrelétrica: “Muitos direitos foram violados, principalmente no que se refere à água para as populações atingidas pela hidrelétrica”, analisa. “O vale do Jequitinhonha é a região de Minas Gerais com a maior porcentagem de domicílios sem acesso a energia elétrica. Ou seja, Irapé, além de causar as violações de direitos, não trouxe nem energia para as famílias do Vale, nem para o consumo residencial”, completa.
Obra concluída durante o o governo Aécio Neves (PSDB) sem licitação
Em novembro de 2014, a força-tarefa da Lava Jato encontrou na sede da empreiteira Galvão Engenharia, em São Paulo, um documento que indicava a formação de um consórcio para concorrer às obras daquela hidrelétrica, em 2002. Segundo o documento, as construtoras Andrade Gutierrez, Odebrecht e outras três empreiteiras teriam buscado o “interesse político” e a “boa vontade” da Cemig para garantir que nenhuma delas ficaria de fora do megaprojeto.
A Cemig confirmou que o consórcio formado por essas empresas teve um pré-contrato assinado em 1998 durante o governo Eduardo Azeredo (PSDB) e foi contratado sem licitação pelo governo Itamar Franco (PMDB), em 2002. A hidrelétrica, orçada em R$ 600 mil, custou o dobro – pouco mais de R$ 1,2 bilhão. A obra terminou em 2006, durante o governo Aécio Neves (PSDB), sem passar por nenhum processo licitatório.
A defesa da Companhia argumenta que o consórcio teria sido beneficiado pela Lei 9.074/75, que prevê “dispensa de licitação para estatais que participem de concorrência para levantarem preços de bens e serviços a serem contratados”. No caso, a estatal seria a própria Cemig, que em 2015 venceu o leilão da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel). Nenhuma das empreiteiras participantes do consórcio falou à imprensa para comentar o caso.
Delegado processado por Lula foi quem juntou provas contra Palocci
Segundo pesquisa do instituto Ipsos divulgada em dezembro de 2016, para 98% dos brasileiros a Lava Jato deve continuar “custe o que custar”. Com a opinião pública alheia às violações de direitos das populações ribeirinhas e extremamente favorável à operação da Polícia Federal, abre-se caminho para a punição dos denunciados por pagamentos de propinas e mantém-se invisível a situação dos atingidos por barragens – vítimas de uma violência que não costuma ser reconhecida como forma de corrupção.
A usina hidrelétrica de Santo Antônio, no Rio Madeira, em Rondônia, está na lista de obras suspeitas da Lava Jato desde setembro de 2016, quando foi aberto o inquérito relacionado à 35ª fase da operação. Assim como no caso do Rio Grande do Sul, a investigação é baseada na planilha que demonstrou o funcionamento de um setor “secreto” na construtora Odebrecht para pagamento de propina a agentes políticos.
Foram presos provisoriamente o ex-ministro Antonio Palocci (PT), da Casa Civil, o ex-secretário Juscelino Antonio Dourado, também da Casa Civil, e um assessor do ex-ministro, Branislav Kontic. Um dos delegados da PF que está à frente da operação é Felipe Hille Pace, processado pelo ex-presidente Lula (PT) por acusações sem provas após uma tentativa de vincular o nome do petista à lista da Odebrecht.
Uma das maiores obras de infraestrutura do país, a hidrelétrica de Santo Antônio custará cerca de R$ 20 bilhões. A energia que será produzida pela usina equivale a 4,3% do total gerado no Brasil em 2007 e será suficiente para suprir a necessidade de 45 milhões de brasileiros, de acordo com as estimativas da Santo Antônio Energia.
Água contaminada, trabalhadores explorados
De acordo com um dos integrantes do MAB na região, João Marcos Rodrigues Dutra, os moradores de vilas próximas ao Rio Madeira sentem desde o início das obras o impacto ambiental e social do projeto. “Com o encharcamento do solo, teve a elevação do nível da água do lençol freático, que começou a se confundir com água de fossa, do lixão, de cemitério… Como a região não tem rede de distribuição, só poços, contaminou toda a água”, relata.
No distrito de Jaci Paraná, a sudoeste de Porto Velho, o cenário é ainda mais grave. “Lá vivem 20 mil operários e mais de três mil famílias não reconhecidas como afetadas pela barragem”, calcula João. “O impacto é muito grande, porque o fluxo migratório foi muito intenso e muito rápido. Houve aumento nos índices de violência, consumo de drogas, violência sexual contra mulheres e crianças… Tem operário que está ali há quase oito anos, por causa da usina, e com as terceirizações e quarteirizações que vieram depois, acabaram se submetendo a condições análogas a escravidão”, revela.
Desde 2009, segundo os cálculos do MAB, foram deslocadas pelo menos oito mil famílias para que o projeto pudesse sair do papel. A hidrelétrica terá 44 turbinas e, após seis anos de obras, está prestes a entrar em funcionamento.
Avanços insuficientes
O Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) reconheceu há sete anos que “o padrão vigente de implantação de barragens tem propiciado, de maneira recorrente, graves violações de direitos humanos, cujas consequências acabam por acentuar as já graves desigualdades sociais, traduzindo-se em situações de miséria e desestruturação social, familiar e individual”.
De lá para cá, embora jamais tenha obtido respaldo popular para conquistar todas as demandas dos atingidos, o MAB colecionou avanços importantes no sentido da ampliação de direitos das famílias ribeirinhas. Em 2010, foram promulgados o Decreto Federal nº 7.342/10 e a Portaria Interministerial nº 340/2012, que obrigam a realização de cadastro socioeconômico em áreas diretamente afetadas por barragens, para agilizar o processo de pagamento de indenizações. Em 2014, foi implementada no Rio Grande do Sul a primeira Política Estadual de Direitos dos Atingidos, experiência que pode ser replicada em outros estados com base nas determinações do CNDH.
Porém, como sustenta Leonardo Sakamoto, em muitas localidades falta “cumprir as condicionantes ambientais e indígenas, além de “apurar denúncias de intimidação, invasão de propriedades e indução de assinaturas de contratos”. Tal qual os milhares de hectares alagados para a construção das usinas, o sofrimento das famílias do Xingu, do Jequitinhonha, de Taquarembó e do Rio Madeira está submerso, sem perspectiva de vir à tona. Enquanto subsiste a miopia da Lava Jato, as reivindicações dos atingidos por barragens avançam lentamente na Justiça e são sufocadas por um discurso punitivista, que atrasa cada vez mais o debate sobre as violações de direitos humanos no interior do Brasil.
Edição: Ednubia Ghisi.
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Imagem: Usina de Irapé, concluída sem licitação no governo Aécio Neves (PSDB): famílias no entorno não têm energia elétrica / Divulgação CEMIG