BA – Operação da Usina de Pedra do Cavalo impacta na subsistência de cinco mil famílias

Em audiência pública realizada em 8 de junho, em Maragogipe (BA), o MPF reuniu comunidades afetadas e entidades envolvidas na questão, para debater impactos socioambientais da operação da hidrelétrica, que funciona sem licença desde 2009

Por Ministério Público Federal na Bahia

Na última quinta-feira, 8 de junho, o Ministério Público Federal reuniu 299 pessoas para debater os impactos socioambientais da operação da Usina Hidrelétrica (UHE) de Pedra do Cavalo, situada no município de Cachoeira, no recôncavo baiano. A audiência pública foi realizada no Mercado Municipal Alexandre Alves Peixoto, em Maragogipe (BA) e contou com ativa participação de pescadores, marisqueiros, professores universitários, representantes da Votorantim – grupo que opera a usina – e de órgãos municipais, estaduais e federais envolvidos na questão.

A audiência foi conduzida pelo procurador da República Pablo Barreto, que dividiu a mesa diretora com o promotor de Justiça Augusto César Carvalho de Matos, da promotoria Regional Ambiental do Baixo Paraguaçu. A usina funciona na Barragem de Pedra do Cavalo e está, desde 2009, sem licença de operação em função de uma série de questionamentos quanto aos seus impactos, como a alteração da vazão e da salinidade do rio Paraguaçu e suas consequências socioambientais.

Estes impactos estariam trazendo prejuízos a mais de cinco mil famílias de pescadores e marisqueiros beneficiários da Reserva Extrativista (Resex) Marinha Baía do Iguape, situada nas proximidades da Usina. A área é de responsabilidade do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), que se posiciona contrária à renovação da licença até que o funcionamento da usina possa ser ajustado para evitar impactos negativos à reserva e ao meio de vida das comunidades que dela vivem.

Após a abertura do evento, quatro líderes comunitários se pronunciaram: Marcos Brandão, do Conselho Pastoral dos Pescadores; Janete Barbosa, do Fórum de Mulheres da Resex; Ananias Viana, do Conselho Quilombola do Vale do Iguape e Edson Falcão, da Associação de Pescadores e Moradores de Angolá. Todos convergem no discurso: a operação da usina, nos moldes atuais, trouxe grandes impactos negativos para as comunidades. Para eles, a mudança na vazão da água ocasionou problemas de saúde à população local – principalmente para as comunidades sem acesso a saneamento básico – e redução drástica na quantidade de peixes e mariscos, o que vem prejudicando a subsistência das famílias e mudando o modo de vida das comunidades tradicionais da região, que precisam buscar alternativas para sobreviver.

“Antigamente, a cada 15 dias, o mangue se renovava. Agora voltamos a cada dois meses e não achamos nada. A vazão não é como a água que desce do rio, hora se prende e hora se solta sem ritmo, e isso afeta diretamente a vida das espécies e consequentemente a vida das famílias. Antigamente a gente pegava de 3 a 5 quilos de mariscos por dia. Hoje, numa semana inteira, a gente consegue 2 quilos. Antes se pegava 40, 50 dúzias de lambreta por dia. Hoje são 3, 4 dúzias, e somos poucas as marisqueiras de lambreta. A gente vive em desespero porque não sabe o que fazer”, afirmou Janete.

Após os líderes comunitários, Neymar Silva, gerente de operação e manutenção da Votorantim forneceu detalhes técnicos sobre o funcionamento da usina. Em sua apresentação, se destacam algumas informações: a empresa venceu um leilão realizado em 2001 pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), recebendo a concessão para motorização da barragem Pedra do Cavalo. Segundo a apresentação, “todas as características técnicas e restrições de operação foram estabelecidas pelo poder concedente no edital de leilão e no contrato de concessão” (Contrato de Concessão nº 19, de abril/2002) e a usina “tem a possibilidade de atender o regime de vazões determinado pelos órgãos reguladores e ambientais desde que respeitadas as limitações técnicas”.

Os representantes do Inema (Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos) Eduardo Topázio, diretor de Águas, e Paulo Novaes, coordenador de Empreendimentos de Interesse Social, explicaram o histórico de licenciamento da UHE e deram mais detalhes sobre as limitações técnicas alegadas pela Votorantim. Topázio explicou que a barragem tem uma vazão mínima que precisa ocorrer com ou sem a geração de energia, por medidas de segurança. Explicou, ainda que não é possível liberar água continuamente “porque o vertedouro não libera menos de 40 mil litros por segundo. A única forma de alterar esse aspecto é mexendo nas estruturas físicas”, afirmou. Topázio ressaltou que a barragem foi construída durante o regime militar, sem considerar a opinião das comunidades e as preocupações ambientais que foram abrangidas pela legislação ao longo dos anos, e que a sua manutenção é necessária para evitar enchentes e desastres que afetem as cidades às margens do Paraguaçu, após a usina.

Novaes, por sua vez, ressaltou que a UHE entrou em operação com aval do Centro de Recursos Ambientais (CRA) – órgão estadual responsável pelo licenciamento à época, em 2002. Explicou que tem, em mãos, documento e parecer do ICMBio contrário à licença de operação, mas que apresenta condicionantes a serem cumpridas pela Votorantim. Novaes disse que espera, com o intermédio do MPF, chegar a um posicionamento para saber se o Inema irá acatar as condicionantes e fazer “o que for necessário para mitigar e minimizar os impactos da operação da usina” ou se não irá conceder a licença. “Estou disposto a ouvir tudo e a tomar a posição mais correta e mais justa para, dentro das normas, darmos andamento a esse processo”, completou.

Outra participação de destaque foi a de Célio Pinto, servidor do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis), órgão gestor da Resex à época do licenciamento da UHE. Ele explicou que a anuência ao empreendimento contemplou condicionantes que não foram acatadas na ocasião pelo CRA. “Temos limitações no ponto de engenharia, mas esses problemas precisam ser adaptados. Para um empreendimento funcionar, ele precisa se adaptar ao ambiente, às condições locais e às comunidades que vivem aqui. É preciso diálogo franco e (empregar) a melhor técnica. Se for possível continuar, não (se deve) ultrapassar os limites da proteção ambiental”, afirmou.

Após manifestações de representantes do Operador Nacional do Sistema (ONS); da Ordem dos Advogados do Brasil – Seção Bahia, de professores das Universidades Federal da Bahia, do Recôncavo Baiano e Estadual de Feira de Santana, e do município de Maragogipe, foi a vez do ICMBio reiterar o posicionamento que o põe contrário à renovação da licença de operação da usina.

Rodolfo Mafei, coordenador Regional, e Bruno Marchena, analista Ambiental, afirmaram que a UHE de Pedra do Cavalo “configura-se atualmente como o empreendimento de mais relevante impacto socioambiental na Resex, desestabilizando o equilíbrio ecológico do estuário” e contribuindo “com a desestruturação dos modos de vida tradicionais de pescadores e marisqueiras, beneficiando a Votorantim com os lucros gerados pela produção energética e deixando os prejuízos para as comunidades locais”. Para o ICMBio, o licenciamento ambiental da barragem e da usina não deveria ser fracionado, já que uma operação é integrada à outra. Ressaltaram, ainda, que a atual forma de operação da usina é inviável para a conservação da Resex Marinha Baía do Iguape.

A audiência seguiu com manifestações orais de marisqueiros e pescadores, que relataram as mudanças no meio ambiente e a consequente precarização de suas atividades ao longo dos anos, a partir da implantação da usina. Relataram, ainda, a marginalização advinda da falta de opções de trabalho e renda e a migração dos seus descendentes para “tentar a sorte” na capital, pela falta de mecanismos de sobrevivência. No encerramento, o procurador Pablo Barreto afirmou que a audiência pública cumpriu seu propósito, e que todo o material será analisado, no curso do inquérito, e levado em consideração pelo MPF para a busca conjunta de uma solução.

Entenda mais sobre caso – De acordo com peritos do MPF, quando a Barragem de Pedra do Cavalo foi construída pelo Governo da Bahia, na década de 70, o represamento diminuiu o fluxo de água do rio Paraguaçu, permitindo a entrada de maior quantidade de água do mar em seu leito, a partir da foz, situada na baía de Todos os Santos. Com a mudança, houve a alteração da salinidade da água no rio e, por consequência, das espécies animais tradicionalmente capturados pelos ribeirinhos, que dali tiram seu sustento. As comunidades foram forçadas a absorver o prejuízo da mudança e a se adaptar a novas técnicas de pesca e mariscagem ao longo das décadas, adotando novos apetrechos e passando a se manter a partir dos então surgidos manguezais.

Com a criação de novas políticas ambientais, no ano de 2000 foi criada a Reserva Extrativista Marinha Baía do Iguape, visando a exploração autossustentável na região, preservando tanto o ecossistema estuarino quanto o meio de vida dos pescadores e marisqueiros artesanais.

Segundo parecer do ICMBio, quando as turbinas da hidroelétrica entram em operação, liberam água doce da barragem no leito do rio Paraguaçu, em direção à Baía de Iguape e à foz. No documento, o instituto explica que a vazão de água aleatória do ponto de vista ecológico – em horários diversos e com volumes de água variados – provoca alterações abruptas na Baía de Iguape, diminuindo a salinidade da água. Pela vazão de água da usina não acompanhar o regime das marés, os organismos aquáticos não têm tempo de se adaptarem ou locomoverem, o que resulta em sua diminuição e morte.

De acordo com os pareceres do ICMBio e dos peritos do MPF, a operação da usina – e consequente alterações ambientais – pode colocar em risco a subsistência de comunidades extrativistas ribeirinhas situadas nos municípios de São Félix, Cachoeira e Maragogipe, entre elas, diversas comunidades remanescentes de quilombolas.

Foto destacada: MPF/BA

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