São Paulo (com a ajuda do governo federal) encurrala os índios Guarani que ainda resistem na cidade

Maior cidade do Brasil tem uma população indígena que luta para que suas terras sejam demarcadas. Nesta semana, sofreram um revés com a anulação do Ministério da Justiça do processo

Por Felipe Betim, no El País

Concentrados em uma espaçosa casa de madeira com paredes de pau a pique, dezenas de índios guarani rezam e cantam — por vezes dançando com uma perna parada e a outra se movendo levemente para frente e para trás — em volta de um altar. A fraca luz, a fumaça que sai de enormes cachimbos (petyngua, em guarani mbya) e que faz os olhos arderem, além do forte cheiro do fumo (penty), conferem uma aura mística ao local (opy), considerado sagrado e ponto de encontro da aldeia.

Algumas pessoas tomam chimarrão (ka’a) em volta de um improvisado fogão a lenha no chão, onde a água ferve. Crianças e cachorros entram e saem, correm e brincam entre si. Não chegam a atrapalhar a cerimônia dos adultos, que, entre um canto e outro, proferem discursos em guarani e português: “São mais de 500 anos de resistência. Esses políticos que tomaram o poder no Brasil acham que podem brincar com o nosso povo. Mas enquanto houver um guerreiro ou uma guerreira dispostos a lutar pela nossa terra, eles não vão conseguir atentar contra os nossos povos”.

A cena da última quinta-feira descrita acima não ocorreu em longínquas terras do Mato Grosso do Sul, um dos tantos cenários do conflito pela terra no Brasil, ou em uma reserva indígena da Renca, a área protegida da Amazônia brasileira que o Governo Michel Temer (PMDB) quer abrir para a mineração. Estamos em São Paulo, a 20 quilômetros do centro. Mais precisamente na fronteira do Parque Estadual do Jaraguá — uma área protegida de Mata Atlântica —, onde em pequenas aldeias vivem mais de 700 índios guarani, segundo eles próprios calculam. Grande parte esteve na última quarta-feira na Avenida Paulista, a mais famosa via da cidade, para ocupar o gabinete da Presidência da República e protestar. Causa: no último dia 21 de agosto, o Ministério da Justiça anulou a criação da reserva do Jaraguá, uma portaria assinada em maio de 2015 pelo então ministro José Eduardo Cardozo (PT) que ampliava a demarcação da terra indígena na região de 1,7 para 532 hectares (de 17.000 para 5.320.000 metros quadrados). “Inicialmente Cardozo falava que não iria demarcar para proteger a comunidade, para evitar que o Governo do Estado entrasse na Justiça. Mas nós falamos que tínhamos direito de lutar pela nossa demarcação. A gente disse: ‘Assina que a luta é nossa. Nós vamos lutar no Judiciário, não cabe a você proteger o território’. Depois de uma grande pressão, conseguimos”, conta Thiago Henrique Karai Djekupe, uma das lideranças indígenas na luta pela terra.

A ampliação da reserva não chegou a ser efetivada e os índios jamais ocuparam os mais de 500 hectares porque, como alertara Cardozo, o Governo do Estado de São Paulo contestou quase que imediatamente na Justiça a criação da reserva, uma vez que ela abarcava as terras do parque estadual. O Superior Tribunal de Justiça (STJ) suspendeu então o processo de demarcação até que o caso fosse julgado — o STF manteve a suspensão. A decisão no último dia 21 do atual ministro da Justiça, Torquato Jardim, anulou definitivamente o processo e atendeu a demanda da gestão do governador Geraldo Alckmin (PSDB). Jardim argumenta no documento que houve “vício administrativo” na demarcação, ocorrida “sem a participação do Estado de São Paulo na definição conjunta das formas de uso da área”.

O Ministério da Justiça e a Fundação Nacional do Índio (FUNAI) não responderam às perguntas do EL PAÍS. Mas em vídeo divulgado pelo Conselho Indigenista Missionário (CIMI) no qual Jardim e lideranças indígenas discutiam a anulação da demarcação, na tarde da última quarta-feira,o ministro argumentou que “a União não pode invadir uma terra do estado ou município”. “É preciso ter segurança jurídica. Portaria de ministro nenhum pode tomar a terra do estado. Então o que temos de fazer é reiniciar o processo. Admito, a terra é de vocês. Mas hoje juridicamente é do Estado de São Paulo”, explicou Jardim, que ainda acrescentou: “Tenho enfrentado pressões imensas de bancadas parlamentares que não estão do lado de vocês. O adversário de vocês não é o Ministério de Justiça”.

A relação de grupos indígenas com o Governo Federal já era ruim durante a gestão de Dilma Rousseff e vem piorando desde que Temer assumiu o poder. Entre as várias concessões à bancada ruralista do Congresso, uma das principais ocorreu nas vésperas da votação de sua denúncia na Câmara, quando assinou um parecer da Advocacia Geral da União (AGU) que estabelece que só poderão ser demarcadas áreas ocupadas pelos índios até a data da promulgação da Constituição Federal de 1988. A diretriz poderia bloquear novas demarcações de terras indígenas ou ampliações de reservas já existentes. “A portaria [assinada por Cardozo] estava paralisada, mas a gente tinha muita força para conseguir a demarcação definitiva. Quando começamos a aumentar essa pressão, o Governo Federal se alinhou com o do Estado. Agora não tem mais como a gente brigar no judiciário, não tem mais o que ser julgado, não tem mais uma portaria”, argumenta Thiago.

A região do Jaraguá é reconhecida pela FUNAI como um território tradicional desde 2010, mas a demarcação dos 1,7 hectares ocorreu em abril de 1987, um ano antes da promulgação da Constituição. Poucas pessoas viviam naquela área. Mas as famílias foram crescendo e se multiplicando, ao mesmo tempo que outros índios foram chegando de outras regiões de São Paulo e do Brasil. Hoje, as mais de 700 pessoas do Jaraguá estão encurraladas nos arredores do parque estadual em cinco pequenos pedaços de terra — não apenas nos 1,7 hectares demarcados — que pouco têm a ver com as grandes reservas indígenas no meio da selva no interior do país. Alguns serviços públicos chegaram, como um posto de saúde e duas escolas públicas — uma municipal, onde as crianças de até seis anos aprendem o guarani, brincam e se alimentam durante todo o dia, e outra estadual. Mas o chão é de terra batida e não há solo, nem espaço, para plantar. Tampouco há trabalho para todos dentro das comunidades e poucos conseguem algo fora “por causa do preconceito”, segundo Thiago. Todos vivem com dificuldade. “Muitos dependem de doações, vendem artesanatos, recebem um valor mínimo do Bolsa Família…”, explica o jovem líder, de 23 anos.

As pequenas casas, a maioria de madeira, estão praticamente coladas uma ao lado da outra, algo que rompe com a tradição dos guarani de viverem em núcleos familiares espaçados um dos outros, segundo explica Thiago. Crianças correm e brincam a todo momento, alheios à mobilização que ocorrera no dia anterior na Avenida Paulista. Compartilham o espaço com centenas de cachorros, que vêm da rua ou são abandonados na aldeia, e com o lixo que se acumula ao lado das casas. “O modo de vida guarani não é assim. Queremos expandir o território na intenção de viver melhor”, diz o rapaz, que nasceu no Jaraguá.

Os povos guarani que passavam pela região, ele conta, tinham como principal referência o pico do Jaraguá, o ponto mais alto do parque e de toda São Paulo, com 1.135 metros de altitude. Hoje, mesmo confinados fora desse território originário, os moradores das aldeias ainda fazem incursões dentro da mata para manter e ensinar a cultura para as crianças. Plantam, criam três espécies de abelha nativa para fazer remédio com o mel, revitalizam nascentes, buscam material para o artesanato… “A gente se fortalece ouvindo os mais velhos e fazendo a ocupação do território”, explica Thiago. Sua avó, ele diz, “foi a primeira cacique mulher no movimento indígena em uma época em que só havia homens falando pela comunidade”.

Uma das mulheres que hoje lideram a mobilização pelas terras do Jaraguá é Sonia Ara Mirim, de 42 anos. Ela chegou ao Jaraguá em 2002, vinda de uma aldeia indígena de Parelheiros, na zona sul de São Paulo. Na última quarta-feira, esteve na linha de frente da manifestação na Avenida Paulista e fez o seguinte discurso: “São 517 anos de genocídio. Nós temos que estar aqui mostrando nossa cara, gritando: Jaraguá é guarani! Nós não morremos, estamos aqui. Vivos. Lutando por um pedaço de terra para que nossos filhos possam saber que um dia existiu, existimos. Não vamos parar”. Ao EL PAÍS, explica que a anulação da demarcação traz também o medo, ainda maior, de que os índios que moram fora dos 1,7 hectares demarcados sejam despejados. A sensação de insegurança, ela diz, não é nova. “Quando vamos fazer alguma coisa dentro do parque, os seguranças nos seguem, querem ver o que vamos fazer. É difícil viver assim, né. Mas a gente tenta manter a cultura viva, para que as crianças cresçam sabendo quem são, por que estão aqui, por que a gente luta tanto, por que a terra é tão importante e precisa ser preservada”.

Outro temor é o de que o Governo do Estado conceda para a iniciativa privada a manutenção e gestão do parque. Thiago conta ter participado de seminários com os gestores ambientais da área para debater uma possível gestão compartilhada e ações conjuntas. Apesar de produtivas, não resultaram em nada. Ricardo Salles, que até esta semana era o secretário do Meio Ambiente de Alckmin, admitiu em entrevista que a concessão está nos planos do Governo, mas não anunciou nada de concreto. Também disse, de forma vaga, que a gestão tucana deveria encontrar uma solução para as comunidades indígenas que estão instaladas “de forma irregular” na área. Questionada pelo EL PAÍS, a Secretaria explicou não ter nada para comentar sobre o tema. “É uma decisão ministerial e de também de competência judicial, cujo assunto está sendo conduzido pela Procuradoria Geral do Estado PGE”, finalizou.

Mas Thiago vive com uma certeza: “O que a gente sofre é uma perseguição muito grande. Chamamos os poderosos do Brasil de bandeirantes do presente.”

Aldeia de índios Guarani, em São Paulo. Foto: AFP

 

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