Antropólogo estima que cerca de 500 índios Kiriri morreram lutando ao lado de Antônio Conselheiro
Rodrigo Esteves Lima, O Estado de S.Paulo
O fim da guerra de Canudos completa 120 anos neste mês de outubro, marcando o aniversário do que foi o maior massacre da história da nossa república. O conflito, que foi travado entre 1896 e 1897 teve entre homens, mulheres e crianças, cerca de 35 mil mortos, dos quais pelo menos 500 seriam índios pertencentes à etnia Kiriri.
De acordo com o antropólogo Edwin Reesink, professor da UFPE, há relatos até mesmo de índios vindos da vila de Mirandela lutando com arcos e flechas. Segundo o pesquisador, os índios já haviam sido convertidos ao cristianismo no século XVII pelas missões jesuítas, mas acabaram se juntando à luta de Canudos devido tanto ao carisma de Antônio Conselheiro quanto aos problemas sociais que enfrentavam: “Os kiriri estavam no ponto baixo de sua história, com problemas com os brancos, sofrendo opressão e discriminação.”
Um episódio que teria sido crucial para a adesão dos Kiriri a Antônio Conselheiro seria a expedição em busca de madeira ao sul do território indígena para a construção da igreja de Canudos. Com grande número de homens saído de Belo Monte, o próprio conselheiro, a quem os indíos conheciam como “Bom Jesus”, teria atravessado mais de 100 quilômetros para buscar a madeira. O evento seria marcado por um dos poucos “milagres” que Antônio Conselheiro teria operado: quando tiveram dificuldade para carregar a madeira, pesada demais para ser levada sem auxílio de animais, o peregrino teria empunhado o cajado que sempre portava e com ele, tocado toda a madeira. Ao término do processo dissera “podem levar já”, ao que a madeira tornou-se leve.
O pesquisador afirma que além da madeira, os índios enviaram para a igreja de Belo Monte a imagem da Nossa Senhora da Assunção, santa padroeira de sua aldeia, indo ficar junto à imensa galeria de santos que Antônio Conselheiro colecionava. “Havia um contágio de religiosidade para ir a belo monte”, disse o professor. Foi “a maior alegria do mundo” quando conselheiro passou por ali, “um contágio de entusiasmo”, acrescentou.
Segundo relatos da tradição oral Kiriri reunidos pela pesquisadora Maria Lúcia Mascarenhas, os índios tiveram papel importante no conflito, pois os pajés da tribo à época – que acredita-se terem sido dos mais poderosos – afirmavam terem descoberto o ponto fraco do coronel Moreira César: devia-se mirar seus olhos, estes seriam seu calcanhar de Aquiles, não adiantando atingir outras partes do seu corpo. Moreira César faleceria no dia 4 de março de 1897 após ter sido alvejado em seu ventre, contrariando porém a teoria dos pajés.
Nem todos os Kiriri participaram do conflito, entretanto para os que sobreviveram os danos sofridos foram incalculáveis: os últimos xamãs que falavam seu idioma foram mortos no conflito, enfraquecendo sua relação com os encantados, entidades sobrenaturais com as quais os índios creem se relacionar e acreditam ser capazes de influenciar suas lutas políticas, sociais e de defesa territorial. Além de dificuldades para suas concepções religiosas e cosmológicas, ao retornarem para suas aldeias muitos dos índios descobriam que suas terras haviam sido ocupadas na sua ausência, algumas delas não retornando à sua posse até hoje.
Confirmando a máxima profética do filósofo francês Frédéric Bastiat, de acordo com a qual “Se bens não cruzarem fronteiras, tropas o farão”, a guerra de Canudos começa em junho de 1896, após Antônio Conselheiro ter encomendado madeira na cidade de Juazeiro, para a construção da sua igreja. Apesar de Conselheiro ter pago a encomenda, o material não foi entregue, o que gerou pavor em autoridades da república, que temiam que o beato fosse buscar a madeira à força, usando jagunços como escolta.
O que acontece então é a pior chacina da história do Brasil: mais de 35 mil pessoas mortas em conflito. Os jagunços rendidos, mulheres e crianças que resistiam em Belo Monte eram degolados. A cidade inteira fora devastada, sem nenhuma edificação deixada de pé. Nas palavras de Euclides da Cunha, “Decapitaram-nos. Queimaram os corpos. Alinharam depois, nas duas bordas da estrada, as cabeças, regularmente espaçadas, fronteando-se, faces volvidas para o caminho.”
Não à toa Mario Vargas Llosa, peruano vencedor do Prêmio Nobel de Literatura, chamou o episódio de “A Guerra do Fim do Mundo”, título do seu primoroso livro que parafraseia a guerra de Canudos. O vilarejo foi até mesmo encoberto pelo Açude de Cocorobó, como que para suprimir qualquer esperança de recomposição do povoado.
Belo Monte sofreu uma guerra total, tipo de conflito típico da alta modernidade, em que não basta somente derrotar o inimigo: trata-se de exterminá-lo, fulminá-lo, eliminá-lo da face da terra. O conceito, inicialmente cunhado pelo general prussiano Carl von Clausewitz em seu seminar tratado militar Da Guerra (Von Kriege) seria replicado por diversos conflitos ao redor do mundo. É apenas de se espantar que sejamos o único país a tê-lo aplicado contra nós mesmos: não precisamos de invasões bárbaras, somos nossos próprios hunos.
A guerra de Canudos tornou-se conhecida nacional e internacionalmente graças à cobertura realizada por Euclides da Cunha, culminando na publicação do clássico Os Sertões, em que narra o conflito. Ainda que tivesse formação inicial de engenheiro, Euclides sempre deu grande importância às lutas sociais, escrevendo críticas sociais desde 1888 em A Província de S. Paulo (hoje O Estado de S. Paulo), sob o pseudônimo de Proudhon, nome de um filósofo teórico do anarquismo. Contrastando com a sociedade monarquista, o escritor também se declarava abolicionista muito antes da promulgação da lei áurea.
Na redação d’A Provícia, Euclides é convidado pelo diretor Julio Mesquita para cobrir as expedições de Canudos, onde testemunha os piores horrores perpetrados pela jovem república. O livro que sairia das reportagens, Os Sertões, foi muitas vezes comparado à Ilíada: fundador de uma cultura, iniciador de uma literatura, inventor de uma nacionalidade. Talvez o preço de ter uma obra tão rica fosse o ônus de termos nossa própria Tróia, ver nossa civilização em ruínas. Em artigo ao jornal, o escritor chama Canudos de “nossa Vendéia”, em referência à guerra contrarrevolucionária francesa, de destruição sem precedentes.
Nascido em Cantagalo, interior do Rio de Janeiro, Euclides estuda na Escola Militar da Praia Vermelha, onde é aluno do principal nome do positivismo no Brasil, Benjamin Constant. A doutrina positivista adquirida ali encontraria eco mais tarde em suas obras literárias, destacando-se a influência de Hippolyte Taine, presente na epígrafe de Os Sertões. Devido a isso, a sociologia euclideana seria muito criticada, sobretudo pela crença no racialismo.
Se a sociologia de Euclides é marcada pelo positivismo, sua literatura será, ao menos em um primeiro momento, caracterizada pelo romantismo. É o que defende o pesquisador Francisco Foot Hardman, professor de literatura da Unicamp. Leitor de Taunay, Araripe Júnior e José de Alencar, nos primeiros poemas de Euclides figuram citações de escritores como Castro Alves e Gonçalves Dias. “A questão da poesia é algo que atravessa sua vida toda”, diz o pesquisador. É notória também a influência que sofre de Victor Hugo, escritor francês, autor de Os Miseráveis.
O romantismo da primeira fase de seus escritos, todavia, se transforma, se transfigura. Após presenciar a calamidade que se passa em Belo Monte, a escrita euclideana torna-se expressionista, denunciando a monstruosidade das atrocidades cometidas pela república. “Euclides faz parte de uma geração de desilusão da república”, diz Hardman. O escritor havia sido expulso da Escola Militar da Praia Vermelha ao quebrar seu sabre num desfile militar, protestando contra a monarquia. Fora defensor da república, mas não era capaz de defender o indefensável. Em Os Sertões, Euclides “denuncia o crime da nacionalidade”, afirma Hardman. Após a catástrofe de Canudos, a crença no progresso, no positivismo, parece recrudescer: “Não é o bárbaro que nos ameaça, é a civilização que nos apavora”, lê-se nas páginas do livro.
O débito que a cultura e a literatura brasileira têm com a obra euclideana é incalculável. Além da óbvia influência na obra magna de Guimarães Rosa, Grande Sertão: Veredas, “toda a literatura nordestina como Graciliano Ramos, José Lins do Rêgo, foi direta ou indiretamente influenciada por Euclides”, afirma o professor da Unicamp.
Traído pela monarquia, traído pela república, Euclides seria ainda traído pela mulher. O autor chegou a assumir os dois filhos que sua esposa Ana Ribeiro tivera com seu amante Dilermando de Assis, mas não pôde suportar a mudança da sua mulher para a casa do amante. Em 15 de agosto de 1909, Euclides da Cunha dirige-se armado à casa de Dilermando, “disposto a matar ou morrer”. Dispara três tiros contra Dilermando, que no entanto sobrevive e desfere quatro tiros contra Euclides, lhe matando. De maneira similar ao povoado de Belo Monte, a triste vida do escritor chega ao fim.
Canudos, apesar disso, sobrevive. Sobrevive não somente no imaginário popular, mas infelizmente faz parte de nossa vida cotidiana. Ao ponderar sobre o atual cenário político, sobre as barbaridades que ocorrem diariamente em nossas favelas, Hardman analisa que “os sertões estão aqui, os sertões estão entre nós.” Talvez seja necessário acrescentar, com Guimarães Rosa, que o sertão está em toda parte. Talvez de certa forma todos procuremos um Antônio Conselheiro. Esperemos ao menos não ter de enfrentar o que narrou Euclides sobre os quatro últimos resistentes de Belo Monte, quando apontados por fuzis: “Canudos não se rendeu.”
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Imagem: Mulheres e crianças em Canudos antes do fim da guerra Foto: Flávio de Barros.