Tensão, violência e medo marcam relação entre índios e não-indígenas no Morro dos Cavalos

Leonardo Thomé – Diário Catarinense

A convivência entre índios e não-indígenas da reserva do Morro dos Cavalos, em Palhoça, é marcada por episódios tensos, que aumentaram desde maio deste ano. No dia 26 daquele mês, oito famílias de guaranis que vivem na Terra Indígena (TI) retomaram parte de seu território na região da Enseada de Brito, declarado quase 10 anos atrás. A demarcação foi feita pela portaria assinada pelo então ministro da Justiça, Tarso Genro, em abril de 2008, e considerou 1.988 hectares da região como área dos índios. Em 2010 foram fixados os marcos físicos da reserva. Mas faltava, como ainda hoje, a homologação por parte da Presidência da República. 

A área, estopim de uma disputa na terra e nos tribunais, fica no limite da TI às margens do Rio do Brito (Norte) e BR-101 (Leste), vizinha ao bairro Enseada de Brito, o mais antigo de Palhoça. Chamada Tekoá Yakã Porã (Rio Bonito), a aldeia se localiza numa região de mata em território dentro dos limites da demarcação, e apesar de ser a menor das três aldeias guaranis do Morro dos Cavalos, sua ocupação reavivou entre índios e não-indígenas episódios que remetem a séculos e cujas feridas teimam em não cicatrizar.

Cicatriz que Ivete de Souza, 59 anos, matriarca de uma família de lideranças indígenas do Morro dos Cavalos, carrega na pele. No dia 2 de novembro, ela foi atacada com golpes de facão e teve a mão esquerda decepada, dentro de sua própria casa. De volta à aldeia, depois de 20 dias no hospital, ela prefere não falar das agressões, mas afirma que nunca viu tamanha “tensão entre índios e não-índios na região”.

Mesma opinião tem a procuradora da República Analucia Hartmann, do Ministério Público Federal (MPF) em Santa Catarina, que visitou as lideranças guaranis e ouviu que as agressões e ameaças contra os indígenas não pararam. Geralmente à noite, pessoas não identificadas disparam tiros e xingam os índios de “vagabundos” e outros adjetivos pejorativos na entrada da aldeia. Conforme relato à procuradora, a comunidade, onde moram cerca de 300 pessoas, continua apreensiva e se sente abandonada em relação à apuração dos crimes. Vigílias, com apoio de voluntários, têm sido feitas diariamente.

Na madrugada de 19 de novembro, pessoas armadas dentro de três carros atiraram simultaneamente contra as aldeias Yakã Porã e Itaty e o Centro de Formação Tataendy Rupá, todos no Morro dos Cavalos. Não houve feridos.

— A Polícia Federal está investigando os últimos fatos, dos tiros disparados nas aldeias. A investigação também vai apurar se lideranças políticas insuflaram essa questão. Já a investigação do ataque à Ivete está com a Polícia Civil, mas vamos solicitar que seja repassado à PF — diz Analucia.

A polícia chegou a prender dois adolescentes indígenas pelo ataque com facão contra Ivete. A investigação está a cargo da Delegacia de Proteção à Criança, ao Adolescente, à Mulher e ao Idoso de Palhoça. A delegada Eliane Chaves explica ter comprovado, até o momento, apenas a participação dos menores no caso.

— O resto são conjeturas, suspeitas, mas nada de confirmado — resume a delegada.

O promotor Alexandre Carrinho Muniz, da 8ª Promotoria de Justiça de Palhoça, classifica as investigações sobre os motivos e a autoria das agressões a facão contra Ivete como “um mistério”. Para ele, que está investigando a suposta participação de adultos no crime, são necessárias novas diligências para elucidar o caso. Muniz afirma que a Polícia Civil chegou a expedir um mandado de prisão contra um maior de idade, também indígena, que teria confessado ser o mandante. O promotor, contudo, explica que a confissão “estava estranha”.

— Tinha uma confissão dele, só que estava muito estranha. A gente até achou que essa confissão foi obtida por meio de pressão de alguém que estava querendo que ele assumisse aquilo ali. Houve a desconfiança porque a confissão dele não estava batendo com os outros depoimentos. Então, pedimos uma série de diligências e a revogação do pedido de prisão contra ele — conta Muniz.

O pedido de revogação de prisão foi aceito pela Justiça.

Expectativa pela homologação da demarcação

Nos tribunais, a disputa ocorre entre índios e o Estado de SC, que pedem a anulação da portaria declaratória da TI. A desavença chegou ao Supremo Tribunal Federal (STF).

Na semana passada, a cacica Elizete Antunes e outros índios de Morro dos Cavalos foram recebidos em Brasília pelo ministro Alexandre de Moraes, do STF, relator da ação do governo de SC que pede a anulação da portaria. De acordo com Elizete, Moraes se mostrou atencioso e ouviu sobre as ocorrências de ataques, mas não fez promessas nem definiu sobre quando a ação será analisada.

— Queremos que a ação seja julgada porque sabemos que a demarcação foi correta, que há provas de que a terra é indígena, mas falta só homologar — afirma Elizete.

Se de um lado o Estado de SC pede, desde 2014, a anulação da demarcação da TI, do outro, a Procuradoria Geral da República (PGR) reitera que a portaria que delimitou a área deve ser mantida por “estar dentro da lei e embasada em estudos antropológicos anteriores à Constituição de 1988”.

Sub-procurador geral da República, Rogério Navarro, que participou da audiência pública no Senado em 28 de novembro para tratar do assunto, afirma que a TI Morro dos Cavalos “é uma terra que goza de presunção de legitimidade pela demarcação”. Ele diz que o índio “é um protetor do meio ambiente” e cita “interesses minerais” na região.

Navarro lembra que o processo de homologação se encontra no gabinete do presidente Michel Temer (PMDB). Sobre a tese do governo catarinense, que argumenta que o estudo antropológico para demarcar a terra é inválido porque levou em conta a presença indígena encontrada no local em 2002, e não em 1988, Navarro é taxativo:

— Laudos antropológicos garantem a ocupação das terras pelos indígenas bem antes de 1988. E não se pode falar em marco temporal, mas sim em marcos temporais, tanto que quando da criação do Parque Estadual da Serra do Tabuleiro, em 1975, já havia documentos da presença indígena — destaca.

“Querem incriminar o branco por isso”

A reportagem circulou por bares, restaurantes e postos de gasolina às margens da BR-101, na região do Morro dos Cavalos, e ouviu de quem trabalha nesses estabelecimentos e não é indígena “que os índios brigam entre eles”. Em agosto, a Câmara de Vereadores de Palhoça realizou uma audiência pública para discutir a questão. Um dos solicitantes do encontro, o vereador Nirto Artur da Luz, o Pitanta (DEM), diz que pediu investigações dos atos de violência e deu seu entendimento:

— A procuradora não está falando a verdade. Querem incriminar os brancos por tudo. Querem incriminar o branco por ter colocado fogo nas canoas (episódio que também ocorreu na aldeia na Enseada de Brito), por ter cortado a mão da mulher. O que tem de fazer é decidir de uma vez se a terra é indígena ou não, porque homologada ela não foi.

Como trecho do conteúdo da portaria declaratória da TI Morro dos Cavalos, há previsão de o Estado de SC cumprir sua parte nos processos de indenizações de títulos e realocação de posseiros que moravam dentro da área em 2008, tornada reserva indígena. A Comissão de Direitos Humanos do Senado, que esteve no Morro dos Cavalos em 2016 e coletou diversos relatos de violência contra indígenas em anos anteriores, sugeriu por ofício que

SC retire a Ação Cível Ordinária 2323 do STF e pague as indenizações pelas benfeitorias feitas pelos posseiros antes da terra ser demarcada.

Para a cacica Elizete, “o Estado não quer fazer sua parte”. Ela credita isso também a pressões de “pessoas importantes” que seriam contra a presença dos indígenas em área tão valorizada do litoral. Ouve-se, diz Elizete, que há projetos especulativos de empreendimentos imobiliários e minerais na região, já bastante povoada inclusive dentro do parque da Serra do Tabuleiro.

— Sempre se fala de interesses econômicos na nossa terra, sabemos que esses xingamentos e agressões também acontecem por causa disso — lamenta Elizete.

O que diz o Governo do Estado

A Procuradoria Geral do Estado (PGE) foi procurada pela reportagem, por meio da assessoria de imprensa, para comentar a questão, e afirmou que em seu site lista motivos que embasam a solicitação de revogação da portaria que demarca as Terras Indígenas no Morro dos Cavalos. Entre os argumentos, estão:

– Em abril de 2013, diante das ilegalidades registradas no processo de demarcação da terra indígena, a PGE requereu ao Ministério da Justiça a declaração de nulidade da portaria, bem como a garantia de participação efetiva do Estado em todas as etapas do processo administrativo demarcatório. Não houve resposta do Ministério da Justiça.

– Em fevereiro de 2014, o Estado de SC, através da PGE, pediu a anulação da demarcação da terra indígena no Supremo Tribunal Federal (STF), para tornar sem efeito a portaria.

– O Estado argumenta que o estudo antropológico para demarcar a terra é inválido porque levou em conta a presença indígena encontrada no local em 2002. Para embasar a hipótese da inexistência de índios no local em 1988, a PGE apresentou uma série de documentos. Entre eles, um trabalho desenvolvido pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) que descreve a existência, na década de 1970, de uma única família de índios de origem paraguaia da etnia Guarani Nhandéva, um grupo de “13 pessoas, sendo oito Guaranis, um branco e quatro mestiças”.

– A PGE também sustenta que a demarcação não teve a participação efetiva do Estado de SC em todas as suas fases, contrariando o que determinou o STF, em 2009, durante o julgamento da delimitação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol. Para a PGE, o fato de a área do território estadual ser transferida para a União, em favor da comunidade indígena, torna necessário o conhecimento do Estado de todos os atos e fases do processo administrativo, sendo que a falta de comunicação gera nulidade no processo, por violar o contraditório, a ampla defesa e o pacto federativo.

Índia agredida. Foto: Betina Humeres / Diário Catarinense

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