Por Sabrina Felipe – Vias de Fato
Em 11 de dezembro do ano passado, a Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Recursos Naturais do Maranhão (SEMA) informou ao Vias de Fato que abriria processo administrativo para apurar “possível irregularidade ambiental” cometida pelo DNIT (Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes) em obras de duplicação da BR 135 nos trechos em que o empreendimento afeta territórios quilombolas. A informação foi dada depois que o jornal questionou a SEMA sobre o início das obras em terras de quilombos do município de Itapecuru-Mirim. Quilombolas daquela região afirmaram não terem sido consultados sobre a duplicação em nenhum momento por qualquer órgão federal ou estadual, como mandam a legislação federal e a resolução 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) – veja primeira reportagem sobre o assunto publicada pelo jornal. Ainda assim, afirmaram os moradores, as obras já estavam acontecendo dentro de suas terras, inclusive com desmatamentos.
Naquela ocasião, o Vias de Fato também perguntou à SEMA se o DNIT havia apresentado o documento de manifestação favorável à instalação do empreendimento emitido pela Fundação Cultural Palmares (FCP). Em resposta, a SEMA disse que até aquela data – 11/12/2017 – não havia recebido o documento, mas que oficiaria o DNIT para que este o apresentasse em até 30 dias. A Fundação Cultural Palmares é o órgão federal responsável pela interlocução com as comunidades quilombolas em empreendimentos como a duplicação da BR. Cabe ao Departamento de Proteção ao Patrimônio Afro-Brasileiro da FCP (DPA-FCP) analisar, manifestar-se contra ou a favor e acompanhar processos de licenciamento ambiental que afetam direta ou reflexamente terras quilombolas. A SEMA concedeu ao DNIT duas licenças de instalação das obras que compreendem a totalidade do trecho da BR 135 a ser duplicado – o empreendimento vai de Bacabeira a Miranda do Norte. As licenças colocam como condicionantes das obras, entre outros itens, a apresentação da manifestação favorável emitida pela Fundação Cultural Palmares em um prazo de até 90 dias. A condicionante ainda ressalta que o empreendedor – o DNIT, no caso – só poderá iniciar as obras de posse do referido documento.
“Conforme a Portaria Interministerial nº 60/2015, em caso de licenciamento ambiental com EIA/RIMA [Estudo de Impacto Ambiental/Relatório de Impacto Ambiental], o órgão ambiental licenciador tem que aguardar a manifestação do órgão interveniente (FCP) em um prazo de até 90 (noventa) dias, a contar do recebimento da solicitação pela FCP. Transcorrido o prazo o órgão licenciador pode dar prosseguimento no licenciamento ambiental”, explicou a secretaria ao jornal Vias de Fato em 11/12/17. “Informamos que a SEMA oficiou a FCP de tal licenciamento e aguardou os 90 (noventa) dias, sem que houvesse, no entanto, o respectivo retorno do órgão interveniente dentro do prazo citado. Ainda assim, conforme atendimento da legislação mencionada, a SEMA condicionou que somente fosse executada a obra, no trecho onde há a interferência direta em terra quilombola, somente se o empreendedor estivesse de posse da manifestação favorável da FCP”, completou o órgão.
Passados 24 dias desde que a SEMA anunciou que apuraria possível irregularidade ambiental cometida pelo DNIT, a reportagem questionou o órgão sobre os resultados da apuração. “A SEMA afirma que durante a ação de fiscalização constatou que até o momento a execução dos serviços da duplicação da BR 135 ainda não tinha afetado diretamente a comunidade quilombola de Santa Rosa dos Pretos”, respondeu a pasta. O Vias de Fato também perguntou se o DNIT já havia se manifestado a respeito da notificação para apresentar a manifestação favorável da Fundação Cultural Palmares. “Como dissemos anteriormente, a SEMA notificou o DNIT para que o mesmo apresente, no período de 30 dias, a manifestação do órgão interveniente, ou seja, ainda não venceu os 30 dias. A notificação ainda está em validade”, disse a SEMA.
Evidências de irregularidade
Evidências apresentadas pelos quilombolas e apurados pela reportagem mostram uma realidade diferente da constatada pela secretaria. Em fins de outubro do ano passado, um grupo de moradores do território Santa Rosa dos Pretos flagrou trabalhadores operando máquinas nos quilombos Picos I e Picos II, que fazem parte do território de Santa Rosa. As fotos feitas na ocasião pelos quilombolas mostram uma grande área já desmatada por funcionários de uma empresa a serviço do DNIT. Na ocasião, o grupo de moradores convenceu o supervisor da obra a paralisá-la em função da ausência da consulta obrigatória aos quilombolas. O funcionário da empresa admitiu que a obra estava irregular.
Em meados de novembro e início de dezembro, a reportagem esteve no quilombo Santa Rosa dos Pretos, que faz parte do território homônimo e que a SEMA diz não ter sido afetado ainda pelas obras da duplicação. Lá, foi constatado que dezenas de árvores – inclusive um pequizeiro centenário – receberam uma placa de metal com um número. A marcação, de acordo com o que moradores ouviram de funcionários do DNIT, significa que a vegetação será removida para dar lugar às obras de duplicação. A repórter conversou com três trabalhadores de uma empresa a serviço do DNIT que pintavam marcações numéricas no acostamento direito da pista. De acordo com um deles, a numeração – que ele também chamou de estaqueamento – é etapa fundamental e prévia da duplicação.
Além da paralisação das obras irregulares em suas terras, moradores do território, por meio da Associação dos Produtores Rurais Quilombolas de Santa Rosa dos Pretos, protocolaram junto ao Ministério Público Federal (MPF), em São Luís, uma denúncia contra o DNIT por violação de direitos quilombolas.
Supressão da vegetação
Em um dos documentos do Estudo de Impacto Ambiental (EIA) da duplicação ao qual a reportagem teve acesso, consta que durante a fase de implantação do projeto haverá a necessidade de supressão de vegetação nativa. O EIA, produzido pela empresa Zago Consultoria e com data de março de 2016, diz que o desmatamento acarretará possíveis mudanças na qualidade do ar e do solo “devido ao revolvimento do solo e por haver interferência no local (…), além da depreciação da qualidade do ar, pela emissão de partícula sólidas e gases de combustão.” O estudo afirma também que a supressão da vegetação afetará diretamente a vegetação nativa, “reduzindo a presença de comunidades florestais e/ou indivíduos arbóreos, ambientes altamente relacionados ao componente fauna. Esta perda de habitat possibilita a colonização do ambiente por espécies exóticas, tanto vegetais como animais, alterando por sua vez a dinâmica ecológica das áreas naturais próximas ao empreendimento.”
As duas licenças de instalação concedidas pela SEMA ao DNIT em 29/08/2017, e que compreendem a totalidade do trecho duplicado, trazem a seguinte condicionante: “Esta licença NÃO contempla: I – Supressão de Vegetação.” A reportagem entrou em contato com a SEMA por e-mail para saber a que tipo de vegetação as licenças se referem, e se a supressão de vegetação já realizada – inclusive em áreas de quilombo – estão em conformidade com o que foi determinado pela secretaria. Em resposta, a SEMA disse “que as empresas licitadas para a execução do serviço na BR 135 possuem Autorização de Supressão de Vegetação (ASV), de acordo com a legislação ambiental vigente.” A secretaria não deu detalhes sobre as ASVs e nem explicou por que as concedeu se uma das condicionantes da licença de instalação era justamente a não supressão de vegetação. A SEMA também se absteve de responder às duas questões específicas apresentadas pelo Vias de Fato.
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DNIT desmata área no quilombo Picos II, dentro do território Santa Rosa dos Pretos, em Itapecuru-Mirim. A imagem é de fins de outubro de 2017. Foto: Elias Pires Belfort
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