Carne Fraca: Frigoríficos do país deveriam parar de nos envergonhar lá fora, por Leonardo Sakamoto

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Quando a primeira fase da Operação Carne Fraca, que detectou fraudes no controle de qualidade de frigoríficos foi deflagrada, em março do ano passado, muita gente lembrou que esse setor é um dos mais problemáticos do país, com incidência de trabalho análogo ao de escravo, aposentadoria precoce forçada e morte de operários em unidades de processamentos, violência contra populações tradicionais, crimes ambientais, roubo de terras públicas, contaminação de água e de solo, sofrimento desnecessário de animais, fraudes na garantia da qualidade dos produtos e, é claro, corrupção.

Na época, houve uma dura resposta por parte de setores do mercado ou mesmo de alas mais nacionalistas da esquerda ou da direita. Afirmaram que quem apontava problemas na cadeia produtiva da carne queria destruir uma área estratégica, a de produção de proteína animal, na qual o país conta com empresas líderes globais. Afinal, muitos desejam ver a derrocada dessas empresas. Ou seja, quem apoiava as investigações da Polícia Federal – como este que vos escreve – era entreguista a serviço a favor do capital estrangeiro e inimigos da soberania brasileira.

A salmonella discorda disso, claro.

Desta vez, na terceira fase da operação, setores que analisam a qualidade das amostras de carne da BRF, proprietária das marcas Sadia e Perdigão, tanto internamente quanto em laboratórios credenciados junto ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, foram acusados de fraudar resultados de exames no processo industrial. De acordo com a Polícia Federal, informações que chegariam ao Serviço de Inspeção Federal seriam mais ficção do que o roteiro de The Walking Dead.

O objetivo era encobrir os níveis de alguns tipos de salmonella que dificultavam a exportação de produtos para países com controle sanitário mais rigoroso. O Ministério da Agricultura alega, mesmo assim, que não há risco para o consumo humano.

Culpar as investigações que flagram os problemas ao invés de cobrar das indústrias que, em nome do lucro, os causam é uma inversão completa do debate. Pois a questão da soberania não envolve apenas o interesse de industriais e de grandes produtores rurais, mas do conjunto dos trabalhadores e da sociedade. E não é de hoje que o setor de produção de proteína animal, por sua natureza, influência política e forma de atuação, tem causado os problemas citados no início deste texto.

O Brasil segue premiando um modelo de desenvolvimento que, sob a justificativa da soberania nacional, a mesma usada pela ditadura civil-militar, passa o rolo compressor por cima de famílias do campo. Que não só impossibilita o combate à desigualdade, como leva a mais concentração de riqueza, financiando tudo isso com dinheiro público – basta ver o quanto o setor de frigoríficos recebeu na política de ”campões nacionais” do PT/PMDB.

O nosso capitalismo de periferia, que ignora regras do jogo e as reclamações da sociedade, não é menos truculento que o capitalismo dos países desenvolvidos. É inocência pensar que empresas brasileiras atuam, necessariamente, em nome de um ”interesse nacional”. Pelo contrário, é mais provável que sigam a cartilha do ”Cada um por si e Deus por todos”. Quem duvida pode perguntar porque a família Batista pretendia migrar o controle da JBS para o Atlântico Norte mesmo após ter sido pesadamente financiada com capital público nacional.

Como já disse aqui, os programas de desenvolvimento nacionais privilegiam apenas uma camada pequena da população. Os lucros advindos da implantação de grandes empreendimentos agropecuários, extrativistas e industriais permanece concentrado na mão de poucos, enquanto o prejuízo social e ambiental é dividido por todos.

Para crescer rapidamente e atingir nosso ideal de nação, vale qualquer coisa, passando por cima de regras e de qualquer um. E, da mesma forma que na ditadura, os críticos são chamados de “arautos do atraso” e acusados de fazer o jogo do ”inimigo externo”. Não é à toa que esse discurso esteja em consonância com este momento em que tanques e soldados do Exército são colocados nas ruas para ”garantir a ordem”.

Desenvolvimento a todo o custo para produzir e, assim, exportar, gerar divisas, pagar juros de empréstimos, e assim poder contrair mais empréstimos e investir na produção. Não sem antes destruir outro lugar e outra comunidade. Que pode ser indígena, mas também ribeirinha, camponesa, quilombola, caiçara ou mesmo moradores pobres das periferias das cidades. Ou enganar compradores, reduzindo o controle sanitário por eles demandado.

Como já disse aqui, momentos como este são excelentes para colocar sobre a mesa as demandas da sociedade. Que não podem ser apenas a certeza de que ninguém vá comprar comida imprópria para consumo, mas também que o seu próprio consumo não vá financiar crimes e irregularidades detectados na cadeia produtiva da carne, como já citado aqui.

Já passou da hora de alguns de nossos grandes empreendimentos agropecuários e industriais seguirem um mínimo de regras para a compra e venda da força de trabalho, para o respeito ao meio ambiente, para a garantia de direitos a comunidades tradicionais e, claro, quanto à qualidade do produto que eles entregam ao consumidor final. E operar dentro de limites éticos, sem comprar políticos.

Ou seja, de parar de nos envergonhar. Tanto aqui, quanto lá fora.

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