Com recomendação do MPF para que seja suspenso, licenciamento do Complexo Hidrelétrico do rio Cupari prossegue sem consulta a indígenas e comunidades afetadas
Tiago Miotto – Cimi
Vendo mais uma vez o seu direito à Consulta Prévia, Livre e Informada ser desrespeitado por projetos que podem impactar seus territórios, os Munduruku protestaram na manhã desta quarta (7) durante a audiência pública sobre o Complexo Hidrelétrico do Rio Cupari, em Rurópolis (PA). Com faixas, cerca de 30 indígenas acompanharam a audiência, parte do processo de licenciamento do projeto.
Dias atrás, o Ministério Público Federal (MPF) já havia recomendado à Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Sustentabilidade (Semas) do Pará a suspensão do licenciamento do Complexo Hidrelétrico e da audiência prevista para hoje, em função da precariedade dos estudos ambientais e do desrespeito ao direito de consulta prévia das comunidades afetadas, previsto pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da qual o Brasil é signatário.
“Repudiamos esse licenciamento ambiental falso, feito por baixo dos panos. Já tem um ano e meio que a SEMAS e a Cienge realizam audiências públicas, fazendo de conta que não existe legislação nacional e internacional que determina a consulta livre, prévia e informada sobre projetos que possam afetar nossos modos de vida”, afirma carta da associação indígena Pariri, dos Munduruku do Médio Tapajós.
O Complexo divide-se em dois projetos – braços Leste e Oeste – e prevê a construção de sete pequenas centrais hidrelétricas (PCHs) e uma Usina Hidrelétrica (UHE) ao longo do rio Cupari, um dos afluentes do Tapajós, além de linhas de transmissão e subestações de energia.
Tanto no Relatório de Impacto Ambiental (Rima) do projeto do Braço Leste quanto no do Braço Oeste, a Cienge, empresa responsável pelo empreendimento, cujas investidas na região iniciaram em 2008, afirma que “não existem unidades de conservação ou terras indígenas impactadas diretamente”.
Para os Munduruku, isso não é verdade. “A Cienge diz que o complexo hidrelétrico não vai afetar indígenas, mas é mentira”, afirmam na carta. “É impossível os efeitos de todas essas obras não chegarem até nós”.
O MPF também questiona esse ponto. Para o órgão, os estudos não levaram em consideração o impacto e nem sequer a existência de comunidades tradicionais, de projetos de desenvolvimento sustentável e de florestas nacionais na área de abrangência do Complexo.
“Estamos aqui porque não fomos consultados, aliás, o estado nunca nos consulta, como se ele fosse nosso dono. A gente sempre fala que o rio é nosso corpo, e o Cupari faz parte do Tapajós também. Se machucar um dedo, um braço, a cabeça e o coração sentem”, afirma Alessandra Korap Munduruku, da Associação Indígena Pariri.
Os Munduruku também protestaram ao microfone, questionando a empresa responsável pelo empreendimento e o governo do Pará. “Estamos repudiando essa audiência, porque vai impactar a nossa vida. A Semas está matando o nosso rio. A Semas está destruindo a nossa floresta!”, disse Alessandra ao público presente no ginásio em que ocorreu a atividade pública.
“Não sabemos como tantos complexos hidrelétricos vão afetar as comunidades que vivem na beira do Tapajós e dos outros rios ligados a ele, porque vocês dividem tudo, fazem estudos separados, mentindo e reduzindo os impactos que vão causar”.
O MPF aponta ainda que os estudos desrespeitaram, também, uma determinação da Justiça Federal segundo a qual todas as análises de impacto na bacia do rio Tapajós devem levar em consideração o impacto agregado em toda a região.
“Não houve avaliação ambiental integrada relativa à bacia do rio Cupari, o que torna inviável a continuidade do licenciamento de qualquer das pequenas centrais hidrelétricas do empreendimento”, aponta a recomendação do órgão.
A audiência pública de hoje, inicialmente marcada para o dia 26 de janeiro, já havia sido adiada a pedido do Ministério Público Estadual (MPE) do Pará, em função da falta de esclarecimento dos impactos do empreendimento às populações locais.
Boa parte das comunidades afetadas pelo projeto, explica a procuradora estadual Lilian Braga, localizam-se às margens da BR-163 e da Transamazônica – ambas em péssimas condições de trânsito, agravadas ainda mais durante o período de chuvas.
Por isso, o MPE pediu novamente o seu adiamento – solicitação negada pela Semas. “Para nós, é muito estranho a designação de data da audiência para esse momento, porque parece que não dá importância à participação popular, inviabilizada por conta das condições da rodovia”, afirma.
Violações à Consulta Prévia
Visto por empresários e políticos alinhados a seus interesses como um entrave para a concretização de projetos de infraestrutura e exploração de recursos naturais, o direito à Consulta Prévia foi objeto de um recente e controverso decreto do governo estadual do Pará. Sob a justificativa de criar um grupo de estudos sobre o tema, o Decreto 1.969 foi publicado em janeiro e desde então é criticado por organizações da sociedade civil, povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais.
Em fevereiro, o MPF, o MPE e as Defensorias Públicas do Pará e da União solicitaram a revogação do decreto estadual, apontado como inconstitucional por violar a Convenção 169 da OIT. No final do mês, mais de 30 organizações repudiaram a medida e se somaram ao pedido dos órgãos públicos.
Publicado sem nenhum diálogo e, ironicamente, sem consulta aos povos e comunidades tradicionais do estado, o decreto é por eles definido como um “desrespeito à Convenção 169 e aos protocolos de consulta elaborados por diversas povos indígenas e comunidades tradicionais do estado do Pará”.
Para os indígenas, a falta de consulta prévia no licenciamento do Complexo Hidrelétrico no Cupari é “mais uma tentativa de boicotar o nosso direito a consulta, que já foi atacado pelo governo do estado com o Decreto nº 1.969”.
Os Munduruku, assim como outros povos e comunidades da bacia do Tapajós, tem um protocolo de consulta elaborado, no qual indicam, de acordo com a Convenção 169 da OIT, como devem ser feitos os procedimentos para a consulta prévia a seu povo.
Apesar disso, desde o início da luta contra as hidrelétricas na região, esses protocolos vêm sendo constantemente desrespeitado. No final do ano passado, por causa da violação ao seu direito à consulta prévia, indígenas e ribeirinhos barraram uma audiência sobre a Ferrogrão, em Itaituba.
Leia a nota da Pariri, na íntegra:
Mais uma vez governo e empresas tentam fazer audiência pública sobre projetos que afetam toda a bacia do nosso rio Idixidi (Tapajós) sem consultar os povos indígenas, comunidades ribeirinhas e pescadores. Desta vez é sobre um complexo hidrelétrico no rio Cupari, no município de Rurópolis, a só 150 km de Itaituba.
Mesmo com a recomendação do Ministério Público Federal para que suspenda o licenciamento do “complexo cupari braço leste” e a audiência pública do dia 7 por causa da falta de consulta e da insuficiência dos estudos de impactos ambientais integrados das hidrelétricas previstas para o rio Tapajós e seus afluentes, a Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Sustentabilidade (SEMAS) e a empresa Cienge acham que podem seguir com mais esses projetos de morte.
Soubemos dessa audiência menos de uma semana antes, sem tempo de informar as comunidades e mobilizar nossos guerreiros. Para nós, essa omissão é inaceitável: é mais uma tentativa de boicotar o nosso direito a consulta, que já foi atacado pelo governo do estado com o Decreto nº 1.969, no dia 24 de Janeiro 2018.
Repudiamos esse licenciamento ambiental falso, feito por baixo dos panos. Já tem um ano e meio que a SEMAS e a Cienge realizam audiências públicas, fazendo de conta que não existe legislação nacional e internacional que determina a consulta livre, prévia e informada sobre projetos que possam afetar nossos modos de vida. E fazendo de conta que não sabem da existência dos nossos protocolos de consulta. A SEMAS tem nome de Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Sustentabilidade, mas só serve mesmo pra liberar licença para acabar com o nosso rio e nossa floresta.
O povo Munduruku, as comunidades de Montanha e Mangabal, Pimental e São Francisco, cada um tem o seu próprio protocolo de consulta, construído segundo a Convenção 169 da OIT e reforçando o nosso direito à autodeterminação. E o governo sabe disso, entregamos cópias, apresentamos pro governo. Isso significa que nenhum procedimento pode ser tomado antes dos povos impactados serem consultados. Não sabemos como tantos complexos hidrelétricos vão afetar as comunidades que vivem na beira do Tapajós e dos outros rios ligados a ele, porque vocês dividem tudo, fazem estudos separados, mentindo e reduzindo os impactos que vão causar. Esses rios são como as veias dos nossos corpos e não vamos deixar que vocês impeçam que suas águas corram livres. É nosso direito participar das decisões que dizem respeito aos planos para toda a bacia do tapajós, porque esse rio foi criado por Karosakaybu, a partir dos caroços do tucumã. As marcas de nossos ancestrais estão aqui, por toda a parte.
E nós vamos falar. A Cienge diz que o complexo hidrelétrico não vai afetar indígenas, mas é mentira. Querem construir quatro pequenas centrais hidrelétricas (PCHs), além de subestações e linhas de transmissão. É impossível os efeitos de todas essas obras não chegarem até nós. Governo e empresas também gostam de dizer que PCHs não causam impactos importantes, mas sabemos que não é bem assim. Vai desmatar as nossas florestas, vai transformar o rio em lago, vai poluir as águas e o ar. Os bichos vão sofrer e nós também vamos sentir os impactos. Só quem vai se beneficiar com isso são outras obras, como as grandes hidrelétricas, a mineração ou portos, já que é pra isso que essas PCHs são feitas.
Na região de Itaituba vivemos o impacto de seis portos já construídos, e com a ameaça de virem pelo menos mais vinte. Sabemos que de pouco em pouco essas empresas estão chegando na nossa região. Estamos lutando há muitos anos contra o complexo hidrelétrico do Tapajós e sabemos que se fizerem PCHs no rio Cupari, será pra alimentar São Luiz do Tapajós. É contra todos esses projetos que lutamos. Se barrarem o rio Cupari, logo vão querer transformar o Tapajós em lago e trazer mineradora e mais portos, grandes hidrelétricas, ferrovias, hidrovias ou qualquer projeto que possa destruir nossa terra, nosso rio e nosso modo de vida. Querem chegar sem fazer barulho porque sabem que os olhos de todo o mundo estão no Tapajós.
Nós não permitiremos. E vamos exigir sempre o nosso o direito a consulta, a sermos consultados segundo os nossos próprios protocolos.
Sawe! Sawe! Sawe!
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Foto: Barbara Dias