Carta em defesa da Terra Indígena Kadiwéu

Nós, pesquisadores e pesquisadoras abaixo assinados, que nos dedicamos ao estudo da história e da cultura do povo indígena Kadiwéu, cujo território se encontra no município de Porto Murtinho, Mato Grosso do Sul, manifestamos preocupação com a demora do processo judicial em torno de uma área de aproximadamente 155 mil hectares no interior da Reserva Indígena Kadiwéu, homologada pelo Decreto de nº 89.578, de 24 de abril de 1984.

A judicialização do processo de demarcação do território kadiwéu se arrasta há décadas, desde sua demarcação, quando pecuaristas impetraram ação colocando em litígio cerca de 30% do território registrado como de usufruto exclusivo dos indígenas. Trata-se de uma porção significativa da área de ocupação tradicional, cuja legitimidade factual é amplamente amparada por fontes históricas e documentais, assim como se encontra igualmente enraizada na memória dos Kadiwéu, que recordam a atuação de seus antepassados na defesa do território, muitas vezes ao custo de suas próprias vidas, e o reconhecimento do Estado brasileiro, que ainda no ano de 1899 deu início ao processo de identificação e demarcação do território kadiwéu.

A extrema morosidade do Poder Judiciário em tratar a questão fomenta um profundo sentimento de injustiça entre os indígenas. Contraria igualmente os ditames do artigo 231 da Constituição Federal e a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho que, em seus artigos 14 e 15, determina que cabe ao governo adotar medidas necessárias para garantir a proteção efetiva dos direitos indígenas, notadamente em relação à posse de suas terras de ocupação tradicional e ao seu usufruto exclusivo.

O sentimento de injustiça e a legítima reivindicação do território homologado e registrado, tanto factualmente quanto segundo o princípio do indigenato (fonte primária e congênita da posse territorial), motivaram os Kadiwéu a reocupar a área reivindicada e a exigir do Poder Público uma solução urgente e definitiva para a questão. O movimento de reocupação pelos Kadiwéu da área em questão, iniciado em 2012 e retomado em novembro de 2017, expressa um novo capítulo de uma longa luta, tenaz, mas pacífica, pelo reconhecimento de seus direitos. A recente expedição de liminar de reintegração de posse em favor de particulares, incorre no risco de acirrar os ânimos e de agravar as relações entre indígenas e não-indígenas.

Amparados em entendimentos jurídicos, sustentamos que, frente à alegação de particulares da expedição de títulos de propriedade em terras de ocupação tradicional pelo antigo Estado de Mato Grosso, cabe ao Poder Público providenciar a devida indenização aos não-indígenas, seguida da desintrusão e da restituição aos Kadiwéu de seus plenos direitos territoriais. Como destacou o atual Ministro, então Procurador, Gilmar Ferreira Mendes:

“As terras do indigenato […] são originariamente reservadas, na forma do Alvará de 1º de abril de 1680 e por dedução da própria Lei de 1850 e do art. 24, §1º do Dec. de 1854. […] À evidência, não pode haver direito adquirido à propriedade de terras habitadas por indígenas, em face da regra expressa no art. 198, da Lei Maior. Como se sabe, é de nenhuma valia a invocação do princípio do direito adquirido contra norma constitucional” (Terras ocupadas pelos índios, In: Revista de Direito Público nº 86, 1988).

Nós, pesquisadores e pesquisadoras, nos manifestamos em defesa do território kadiwéu e de seus limites, conforme o Decreto nº 89.578, de 24 de abril de 1984. Repudiamos a judicialização do processo de demarcação e a expedição de liminares para atender a interesses de particulares em total detrimento dos direitos constitucionais e originários do povo indígena Kadiwéu.

Assinam:

Erik Petschelies, UNICAMP
Filomena Sândalo, Profa. Dra. UNICAMP
Francesco Romizi, Pós-Doutor pela UEL
Giovani José da Silva, Prof. Pós-Dr. UNIFAP
Jaime G. Siqueira Junior, Prof. Titular UEMA
Lilian Ayres, USP
Lisiane Leczsnieski, UFSC
Maria Raquel da Cruz Duran, USP
Messias Basques, Professor – UFES
Mônica Thereza Soares Pechincha, Profa. Dra. UFG

Foto: Mídia Ninja.

Enviado para Combate Racismo Ambiental por Messias Basques.

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