As políticas de assistência para as populações em situação de rua. Desafios e Perspectivas. Entrevista especial com Ivaldo Gehlen

João Vitor Santos e Patricia Fachin – IHU On-Line

“Atualmente cerca de 60% (aproximadamente 1.300 pessoas) da população adulta em situação de rua de Porto Alegre pode ser considerada morador de rua, por não ter local protegido para dormir, não ter privacidade e por se autoidentificar com esse modo de vida”, informa o sociólogo Ivaldo Gehlen à IHU On-Line, na entrevista a seguir, concedida por e-mail. Segundo ele, a principal dificuldade em relação às pessoas em situação de rua é a falta de um acompanhamento sistemático do aumento ou diminuição dessa população. “Os intervalos em geral são de cinco ou mais anos, em razão de sua complexidade”, diz.

Na capital gaúcha, Porto Alegre, afirma, “tem se verificado um crescimento de pessoas em situação de rua relativamente acelerado nos últimos anos. Os diagnósticos recentes mostram que, em geral, no Brasil essa população está aumentando em percentuais relativamente semelhantes. Todos os dias entram e saem pessoas desse universo social”.

Na avaliação dele, em geral a administração pública não consegue manter políticas eficientes para essa população. “As políticas sociais específicas, de responsabilidade das prefeituras, estão incipientes, em casos, apenas esboçadas nas cidades maiores e inexistem nas de menos de 200 mil habitantes”. Na esfera federal, pontua, as políticas públicas desenvolvidas pelo Ministério de Desenvolvimento Social – MDS “estão bastante distanciadas pela desarticulação dos órgãos e entidades responsáveis pelas execuções e pelas dificuldades de informações e de acesso dos beneficiários. (…) Não há uma política estadual integradora, que garanta a isonomia entre a população de rua de todo o estado e que induza os municípios a elaborá-la e implementá-la”.

Ivaldo Gehlen é bacharel em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS, especialista em Educação de Adultos e Desenvolvimento Rural Integral pelo Centro Regional de Educação de Adultos Unesco, mestre em Sociologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS e doutor em Sociologia pela Université de Paris X, Nanterre. É professor titular aposentado da UFRGS e professor do programa de pós-graduação em Políticas Públicas da UFRGS.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – No período de férias, quando normalmente as cidades ficam menos movimentadas, tem-se a impressão de que há um aumento da população de rua. Especificamente em relação à Porto Alegre e região metropolitana, trata-se somente de uma impressão ou, de fato, houve um aumento no número de pessoas que vivem em situação de rua?

Ivaldo Gehlen – Não há acompanhamento sistemático do aumento ou diminuição dessa população. Os intervalos em geral são de cinco ou mais anos, em razão de sua complexidade. Em Porto Alegre tem se verificado um crescimento relativamente acelerado nos últimos anos. Os diagnósticos recentes mostram que, em geral, no Brasil essa população está aumentando em percentuais relativamente semelhantes. Todos os dias entram e saem pessoas desse universo social.

O crescimento deve-se a diversos fatores, como desestruturação familiar e de comunidades, a exposição social ou visibilidade pela consciência de que são cidadãos da cidade resultante de políticas públicas específicas as quais ampliam suas chances, a busca de espaço de anonimato e na perspectiva deles de liberdade. Recentemente têm se organizado melhor e criaram estratégias de defesa e de sobrevivência. Enfim, são muitas as histórias da ida e da permanência na rua.

O período de verão é mais propício para viverem de forma mais visível, menos protegida e em locais de mais recursos, consequentemente de mais movimento nas cidades. Também circulam mais pelas ruas e bairros. Isto contribui para uma impressão de aumento. Portanto, há um aumento, porém não parece haver razão para que seja de um índice maior que a média dos últimos 3 ou 4 anos, mas há também um impacto visual maior no verão pela exposição dessa população, incluindo migração entre bairros, circulação maior pelas ruas.

É importante salientar que de 2004 para cá verificou-se uma fortíssima diminuição de crianças e de adolescentes em situação de rua em Porto Alegre. De mais de seiscentas naquele ano para menos de trinta em 2016. Resultado de eficientes políticas públicas municipais e federais. O Estado do RS recém está produzindo uma política estadual para esta população. Esta deficiência impossibilita políticas regionais e mesmo locais articuladas. A relação direta com o governo federal, que por sua vez discrimina cidades com menos de 200 mil habitantes, não favorece para a criação de uma espécie de cultura de concepção e de tratamento para esse universo.

IHU On-Line – Quem é o morador de rua hoje, especialmente nas capitais brasileiras, como Porto Alegre?

Ivaldo Gehlen – Impossível definir um perfil, pois, no geral, reproduzem a sociedade onde vivem, com algumas especificidades. Discute-se atualmente se haveria uma identidade de morador de rua. Os estudos mostram que há identidade hétero-atribuída, ou seja, o olhar definidor de características sobre eles existe, tem caráter depreciativo (ideológica, portanto) e está sendo fortemente contestada tanto pelos que a ela pertencem quanto por organizações, estudiosos e pessoas que a negam e se solidarizam com outro ou outros olhares. Mas os estudos mostram também que há uma identidade autoatribuída pelos próprios sujeitos sendo forjada. Esta resulta da crescente capacidade de organização, de mobilização com pauta própria, manifestando suas necessidades, também com reorganização do cotidiano de suas vidas pelo agregamento, articulação política, produção e difusão cultural, autorreconhecimento. Eles interagem como “nós” com a cidade.

O Brasil apresenta correlação com os paradigmas de desenvolvimento dos demais países capitalistas, com impactos das transformações socioculturais e econômicas globais, com novos paradigmas de políticas públicas ou sociais que atendem necessidades e universos sociais historicamente pouco ou não reconhecidos. Porto Alegre tem política específica para essa população desde o final dos anos 1990 e início da década de 2000. A existência de uma Fundação, atualmente denominada FASC(Fundação de Assistência Social e Cidadania) foi decisiva para a formulação e evolução dessas políticas.

Em linhas gerais pode-se identificar os chamados “moradores de rua” — entendidos como os que preenchem alguns requisitos, como dormir em local desprotegido (rua, praças, sob viadutos, barracas insipientes, orla do Guaíba etc.) e por seu crescente envelhecimento, diversificada nas origens étnicas, ao seu pertencimento religioso, com declaração de ateísmo superior à média da população de Porto Alegre. A escolaridade é semelhante à população de baixa renda da cidade. A maioria aufere renda (cerca de 70% até um salário mínimo) e cerca de um terço recebe benefícios sociais públicos, como bolsa família. Mais da metade dorme em lugar desprotegido (praças/parques, marquises, pontes etc.) de forma regular. O local de dormida é o que melhor caracteriza a condição de estar na rua, pois os expõe a riscos de saúde e de segurança. Se vestem e se alimentam razoavelmente, porém apresentam-se deficitários, com indicativos de piora.

Houve diminuição do percentual da população feminina de cerca de 20% em 2008 para cerca de 14% em 2016. O tempo de moradia em Porto Alegre aumentou, e o tempo que está na rua, também, revelando diminuição do peso dos imigrantes e aumentando a consolidação de uma identificação pelo modo de vida, ou seja, hábitos e vínculos específicos. Os contatos com familiares tornam-se cada vez mais raros, mais de um terço não mantém nenhum. Em Porto Alegre, há algumas experiências de criação de vínculos societários entre eles, com compromisso, que chamam de comunidade. Incipientes ainda, mas podem estar apontando perspectivas interessantes de substituição da família e ampliação da autodefinição identitária.

IHU On-Line – Quem tem circulado por Porto Alegre nos últimos meses tem percebido um aumento de construção de barracos nas principais avenidas. Quais são as razões disso? Em que medida o aumento desses barracos está associado à postura que vem sendo empregada pela Prefeitura de Porto Alegre às políticas públicas para tratar da população em situação de rua?

Ivaldo Gehlen – As tendas de acampamento ou barracas, como a mídia designa, estão emergindo em vários bairros e locais da cidade e constituem parte de uma nova estratégia de expressar as demandas e de dar visibilidade a elas por essa população. Representam mais um sonho ou projeto de futuro do que do presente. É a manifestação de que, mesmo na rua, querem ter qualidade de vida com as vantagens e um mínimo de conforto e sobretudo de privacidade. A individualidade se afirma.

Atualmente cerca de 60% (aproximadamente 1.300 pessoas) da população adulta em situação de rua de Porto Alegre pode ser considerada morador de rua, por não ter local protegido para dormir, não ter privacidade e por se autoidentificar com esse modo de vida. A postura da gestão municipal nos últimos anos é de omissão frente ao futuro destas pessoas. As políticas adotadas foram parciais e sem garantia de continuidade.

IHU On-Line – Como tem sido feito o trabalho de assistência social junto às pessoas em situação de rua de Porto Alegre? Ainda nesse sentido, que comparações estabelece entre a gestão anterior e a atual gestão da prefeitura no desenvolvimento desse trabalho?

Ivaldo Gehlen – Em Porto Alegre há a FASC, que desde os anos 1990 é responsável, no âmbito da gestão municipal, por essa população. Até recentemente havia um conceito de prestação autocrática de serviços, ou seja, de que essa população deveria ser tutorada e a FASC seria responsável por prover ou dar encaminhamentos para tudo o que se referia a essa população. Mostrou-se muito ineficiente. Na década seguinte (2000 em diante), fruto de um debate nacional de uma política de assistência social para o Brasil, iniciou-se um processo de delegação de responsabilidades entre os diversos órgãos da Prefeitura (saúde, lazer, trabalho etc.). O processo tem sido muito lento e recentemente, há cerca de uma dezena de anos, iniciou-se a distribuição de responsabilidades. Isto significou considerar a população de rua como parte indissociável e de pertencimento de cidadania à cidade, com plenos direitos a todos os serviços e benefícios públicos concernentes. Muitos convênios entre prefeitura e entidades civis ou religiosas foram parte do esforço de viabilizar esta nova proposta, em consonância com uma política nacional de assistência social para este segmento social.

Os resultados ficaram aquém do esperado, sobretudo nas dimensões da saúde, das atividades educacionais, de lazer e de qualificação, do bem-estar quotidiano, como privacidade, higiene, e da segurança, especialmente à noite. Outro aspecto de resultados aquém do esperado foi da postura da população em geral face aos moradores de rua. O preconceito, o desprezo e até escárnio foram precariamente reduzidos.

IHU On-Line – Como avalia as políticas de Estado, em geral implementadas pelas prefeituras das grandes cidades, com relação à população em situação de rua?

Ivaldo Gehlen – A coordenação nacional está no Ministério de Desenvolvimento Social – MDS, que começou há cerca de uma década e meia a interagir e a formular políticas específicas para este segmento. Tentou articular-se com entidades que atuam junto a essa população, através do Movimento Nacional da População de Rua – MNPR. Foram realizadas assembleias e reuniões Brasil afora, sobretudo em cidades com mais de 200 mil habitantes (nunca justificado o porquê desta escolha de caráter demográfico, pois em cidades pequenas também há pessoas nessa condição, configurando-se uma grave distorção ou discriminação, que me parece muito grave para a cidadania), resultando numa política nacional. O Movimento Nacional sempre tencionou por divergir, mas impotente para confrontar, buscou usufruir do possível e continuar as lutas em forma de movimento nacional. Muitos de seus quadros se qualificaram através de formação, inclusive universitária, possibilitando um diálogo altamente qualificado com os órgãos de Estado e com as entidades interagentes.

Houve, sem dúvida, um avanço importante na Assistência Social, cada vez mais como política social ou pública e menos como assistência a desvalidos ou dependentes, conhecido como assistencialismo. Ou seja, iniciou-se um processo de reconhecimento da condição e dos direitos dessa população, com diálogo e discussão em relação ao seu modo e condições de existência.

Há um avanço qualitativo importante nos conceitos e na oferta de serviços a essa população como resposta a direitos de cidadania, elevando-os à condição de igualdade, pelo menos formal, e ao respeito às diferenças culturais e étnicas, como pilares centrais das políticas e da prática dos agentes técnicos públicos e privados.

No entanto, as políticas públicas universais, no geral ainda do MDS, estão bastante distanciadas pela desarticulação dos órgãos e entidades responsáveis pelas execuções e pelas dificuldades de informações e de acesso dos beneficiários. As políticas sociais específicas, de responsabilidade das prefeituras, estão incipientes, em casos, apenas esboçadas nas cidades maiores e inexistem nas de menos de 200 mil habitantes. Não há uma política estadual integradora, que garanta a isonomia entre a população de rua de todo o estado e que induza os municípios a elaborá-la e implementá-la. Compulsório deveria ser a produção de políticas por todos os municípios para essa população, e não sua retirada, como se manifestou o prefeito de Porto Alegre.

IHU On-Line – Além dos órgãos vinculados ao poder estadual e municipal, quem são hoje as principais organizações envolvidas no trabalho de assistência à população de rua, no caso de Porto Alegre e região metropolitana?

Ivaldo Gehlen – Como afirmado, ainda não há uma política estadual para essa população. No entanto, diversas municipalidades e sobretudo muitas Organizações Não Governamentais – ONGs têm foco nessa população, objetivando atender demandas diversas e garantir os direitos da PopRua.

Em 2016 foi instalado pela Secretaria (estadual) da Justiça e Direitos Humanos o “Comitê Intersetorial com a finalidade de elaborar a Política Estadual para a População em Situação de Rua, Enfrentamento à Violência e à Discriminação Institucionais”, o qual reúne diversas entidades que têm interação com essa população. Esse Comitê por ora tem atuação mais forte na Região metropolitana, porém aos poucos tende a ter um olhar e ações de abrangência estadual. Alguns municípios estão criando Comitês semelhantes, com intuito de elaborar, fiscalizar e estimular políticas e práticas. O Comitê Estadual tem atuado fortemente no que se refere à segurança e ao trato da população em situação de rua, especialmente pelos órgãos de segurança.

Integram o Comitê representantes de órgãos públicos estaduais, municipais e entidades da sociedade civil que interagem com a temática. O Comitê tem entre suas atribuições: elaborar planos e estratégias de ação e implementação da Política Estadual para a População em Situação de Rua, se referenciando na garantia dos direitos humanos, educação, moradia, saúde, segurança alimentar, segurança pública e direitos de locomoção, proteção à violência institucional, trabalho, assistência social e participação popular.

A população de rua também tem suas organizações, sendo a principal o MNPR, com sede regional em Porto Alegre. Na Capital funciona o Boca de Rua, organização autônoma que produz o jornal de mesmo nome.

Não há informações agregadas sobre a região metropolitana e nem sobre a maioria dos municípios. Seria fundamental a realização de estudos quanti-qualitativos abrangendo todos os municípios da Região Metropolitana de Porto Alegre.

Em Porto Alegre a Prefeitura possui convênios com entidades civis, sobretudo ONGs, para complementarmente prestarem serviços de acolhimento, de apoio, de alimentação. Muitas dessas entidades pertencem a igrejas ou outras instituições, sobretudo de caráter social. O estudo que realizamos (IFCH-UFRGS através de contrato com a FASC, 2016) analisa detalhadamente estas instituições. A maioria presta serviço como terceirizada e pertence a igrejas, ONGs, entidades filantrópicas etc. A mesma pesquisa fez estudo exploratório sobre os técnicos que atuam ou intervêm nessa realidade. Os resultados apontaram avanços e ao mesmo tempo deficiências, estas, sobretudo, de abrangência e de qualidade ou de dificuldade de interação com a população em situação de rua.

IHU On-Line – O ano de 2017 foi considerado um ano de crise, com índices econômicos negativos e alto número de desempregados. Como esses dados impactam na população em situação de rua?

Ivaldo Gehlen – O censo realizado em 2011 pela FASC (PMPA), com participação minha e da Patrice Schuch (professora do Departamento de Antropologia da UFRGS), constatou uma forte diminuição dos mais jovens, ou menos de 25 anos, no contingente de população em situação de rua, em relação ao censo realizado em 2008. Atribui-se principalmente às políticas sociais federais e municipais e principalmente à demanda de emprego para esse universo, mesmo sem qualificação profissional. Em 2016 confirmou-se o mesmo resultado em relação à idade, ou seja, o crescimento dessa população está nas faixas acima de 35 anos e especialmente acima de 45 anos de idade. Dentre os mais jovens, continua o predomínio de ingresso nessa condição por rejeição familiar, sobretudo ligada ao uso de drogas.

Entretanto, nossos estudos não permitem concluir relação direta entre crise econômica e ida ou permanência na rua. Talvez aspectos sociais, como políticas de apoio. As políticas de apoio podem exercer atrativo para aumento da população nessa condição, visível, porém temporária, durante seu período de atração e chamamento. Em Porto Alegre, aparentemente, está chegando a seu teto e tende a diminuir à medida que estas mesmas políticas produzam os resultados esperados. Isto significa que a criação de políticas benéficas, num primeiro momento, aumenta a demanda, tanto numérica quanto de benefícios e, num segundo momento, atendidas as principais demandas, passam a produzir um efeito benéfico de diminuição ou de equilíbrio. Para se ter resultados eficazes é necessário uma continuidade e aperfeiçoamento, no sentido de acompanhar as demandas e as complexidades crescentes da população de rua. No momento local e nacional que vivemos, corre-se o risco de descontinuidade e, portanto, de inviabilidade das políticas a médio e longo prazo. Voltar-se-ia ao atendimento pontual, desconectado ou parcializado, em geral desestruturante.

IHU On-Line – Quais são as principais dificuldades enfrentadas no trabalho de assistência às pessoas em situação de rua?

Ivaldo Gehlen – Esta é uma questão genérica e somente quem está na ponta da intervenção social pode responder com precisão. Nosso compromisso tem sido com a geração, análise e difusão de conhecimento sobre população de rua, papel precípuo da Universidade. Faço algumas considerações a partir das pesquisas de campo que realizamos e de depoimentos inerentes ou em paralelo. Do ponto de vista institucional, a principal dificuldade levantada é a integração dos serviços de forma sistêmica entre Secretarias, FASC e os demais prestadores terceirizados, entrelaçados com a população de rua, sobretudo através de suas organizações e lideranças. Esse me parece ser o melhor, senão o único caminho, para que essa população tenha as chances de qualidade e disponibilidade dos demais cidadãos de Porto Alegre ou das outras cidades. A discriminação de serviços significa a institucionalização da discriminação dos que vivem nessa condição.

As dificuldades apontadas pelos gestores e profissionais que atuam nessa realidade revelam a complexidade desse trabalho no sentido de priorização diante da carência de recursos, de uso crescente dos serviços de assistência social por uma população que envelhece adoecida. No contraponto se acrescem dificuldades do gerenciamento de forma bastante generalizada, a falta e carência de qualificação de recursos humanos, as condições de infraestrutura dos equipamentos de uso público e nas instituições. A pesquisa mostrou as tensões e os desafios institucionais de serviços díspares e heterogêneos, de objetivos, das formas de trabalho e nas relações funcionais. Essas condições problemáticas afetam tanto os trabalhadores quanto os usuários dos serviços. Daí sua grande importância para que mudanças ocorram.

IHU On-Line – O Sistema Único de Assistência Social – SUAS é uma política pública garantidora dos diretos da população em situação de rua. Mas, nesse contexto de crise e cortes orçamentários, quais os desafios para assegurar e fortalecer o SUAS?

Ivaldo Gehlen – A população de rua se utiliza ainda de forma precária dos serviços de saúde, em razão da dificuldade de acesso ou precariedade de oferta. É um gargalo que, apesar das melhoras, continua distante dessa população, no que se refere à qualidade e facilidade. Estava em curso, até recentemente, um processo de expansão e melhoria para essa população. Esse processo está estagnado e corre o risco de piorar por causa dos cortes de técnicos, de orçamento e por causa da aparente volta das políticas assistencialistas na capital. Perdura a precariedade de oferta de políticas de bem-estar e compensatórias que garantam a cidadania, preservem a diversidade e as oportunidades.

É preciso valorizar as experiências e avaliar suas demandas, mesmo as aparentemente simples como, por exemplo, ter banheiros abertos 24 horas, acesso fácil à água potável, aos serviços de saúde, de estímulo à renda. É preciso, sobretudo, manter abertos canais de diálogo, mesmo que tensos. Esse seria o principal caminho, induzindo à construção de um paradigma inovador na elaboração e implementação de políticas transformadoras para essa população.

IHU On-Line – O senhor está à frente de pesquisas e trabalhos diretos com população em situação de rua em Porto Alegre. Quais as maiores dificuldades para a realização desses estudos hoje? E em que medida os últimos dados têm sido revertidos em políticas de atenção a essa população?

Ivaldo Gehlen – Minha participação como pesquisador de populações em situação de rua remonta a cerca de 15 anos. Foi uma demanda inesperada de pesquisa que me seduziu a relativizar meu foco no universo dos caboclos, dos sem-terra, enfim, dos agricultores familiares. Aceitei este desafio ao constatar a inexistência de estudos desta natureza no Brasil, sobretudo na área de conhecimento da sociologia, e de que instituições como IBGE e FEE não possuíam conhecimento teórico e metodologia sobre o assunto, daí seu não interesse. O conhecimento quanti-qualitativo de uma população é condição sine qua non para formulação de políticas. Foi minha chave. Me pus de cabeça. Faria tudo e pelo mesmo caminho, pois fizemos parte da construção de um marco metodológico e conceitual, no Brasil.

Cada estudo foi registrado em livro, em artigos e, sobretudo, criamos condições para políticas específicas. Em relação à publicação acadêmica, Porto Alegre se tornou referência nacional. Em relação ao uso dos estudos para políticas, Porto Alegre o fez, precariamente a meu ver. Deixou de explorar melhor os estudos e de formular novas políticas ou melhorar as existentes. Porém a população de rua se deu conta da importância dessas informações e passou a utilizá-las e a cooperar conosco e com a FASC na produção de novos conhecimentos através de pesquisas, de observação, de debates, de escrituras. Há um conhecimento sobre esta população em Porto Alegre que ultrapassa em muito os estudos acadêmicos. As publicações, especialmente o último livro (“População de rua: políticas públicas, práticas e vivências”, Editora Cirkula, 2016 – disponível para dowload gratuito na editora), registram em parte os avanços do conhecimento e reflexões sobre este universo social, tornando-o perenizado na literatura e iluminando de alguma forma os debates.

E, neste sentido, a superação de políticas assistencialistas, objeto de esforços nas últimas três décadas em Porto Alegre, não pode esmorecer e ser substituída por métodos de controle social punitivos ou restritivos, mas devem consolidar-se em cultura da cidade para acompanhar suas demandas e as transformações dos complexos processos sociais que as configuram, na sua dramaticidade e luta cotidiana.

IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?

Ivaldo Gehlen – É fato que populações em situação de rua estão presentes em quase todas as sociedades, de forma generalizada na América, nos países da Europa e pelo menos em todos os que estão consolidados ou em consolidação da modernidade trazida pela revolução industrial. Em muitos países como o Brasil, estão presentes também em espaços não citadinos ou rurais, como os trecheiros, andarilhos e biscateiros.

Contudo, há, no Brasil, uma tendência a se observar uma maior concentração destes nas regiões metropolitanas, onde há maior disponibilidade de recursos garantidores de sobrevivência, de invisibilidade ou anonimato. No Brasil, o MDS contempla com apoio a políticas para essa população nas cidades com mais de 200 mil habitantes. Um arbítrio inexplicável, discriminatório, pois burla a isonomia de tratamento entre cidadãos que vivem as mesmas condições.

À guisa de problematização, uma reflexão final. As políticas de assistência para as populações em situação de rua orientam para a priorização valorativa da família, porém a forma de organização dos equipamentos, em Porto Alegre e em geral nas cidades brasileiras, privilegia o indivíduo. As famílias ou outras organizações de vida coletiva não são reconhecidas institucionalmente e, por vezes, pelas regras, estruturas etc atuam no sentido do reforço ao individualismo na vida cotidiana.

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