Como se busca eliminar a democracia

Teremos eleições. Estratégia do poder econômico e das máfias parlamentares é esvaziar poderes do presidente eleito, convertendo-o no ocupante de um posto decorativo

Por José Luis Fevereiro*, em Outras Palavras

A democracia tal como o mundo ocidental a conhece desde o pós-guerra está em risco. O desenvolvimento do capitalismo sob hegemonia do capital financeiro, a globalização da produção de mercadorias e dos fluxos de capital, as novas crises de superprodução, o enorme avanço da concentração de renda a partir da apropriação concentrada dos ganhos de produtividade da inovação tecnológica, tornaram a democracia disfuncional para o Capital.

A busca insensata pela redução dos custos do trabalho usando a globalização para desconstruir direitos conquistados por décadas de luta politica e sindical, o desmonte dos sistemas tributários e politicas fiscais que viabilizaram a universalização de direitos sociais nos países centrais e a busca dessa universalização em países de desenvolvimento médio como o Brasil usando como argumento a concorrência industrial asiática, o avanço das isenções tributárias para os mais ricos reduzindo a capacidade de financiamento dos estados e justificando o desmonte de seus mecanismos de seguridade social, não podem conviver com a democracia sem sustos para a elite.

Barragens de propaganda, debates de TV onde todos os debatedores defendem as mesmas teses pseudo cientificas, utilização dos aparatos de formação de consensos, imposição de pautas diversionistas, nada disso tem impedido que aqui e acolá as classes trabalhadoras reajam e coloquem em risco a estabilidade de governos liberais portadores das “verdades cientificas” das politicas de ajuste e corte de direitos.

Desde os anos 90 que é nítido o projeto de esvaziamento de poder das esferas eleitas do Estado. A construção de uma burocracia supranacional em Bruxelas, fora do alcance dos eleitores dos Estados membros da União Europeia, a própria moeda única europeia retirando a politica monetária do controle dos governos eleitos, a defesa mundo afora da “independência” dos Bancos Centrais subtraindo ao controle do povo e de seus representantes eleitos esse importante mecanismo de poder, faz parte da estratégia.

No Brasil, a “Lei de Responsabilidade Fiscal” e as “clausulas de ouro” constitucionalizadas que limitam as possibilidades de ação de governos eleitos, o desmonte acelerado dos aparatos do Estado como o programa de privatizações dos anos 90 e sua retomada após o golpe de 2016, buscam reduzir o poder de fogo na economia dos executivos eleitos da Republica. Reduzir a democracia á eleição de síndicos desprovidos de poder real é a principal iniciativa á escala global das elites.

Nessa mesma linha está o açodamento com que o governo do golpe se apressou a aprovar a lei do teto dos gastos que congela por 20 anos os gastos primários da União, tentando amarrar os próximos governos á condição de gerenciadores do desmonte do Estado.

Em outra linha de ação , a imposição de pautas morais e culturalistas pela via do fortalecimento do fundamentalismo religioso, buscando retirar centralidade á agenda da desigualdade, foi também largamente utilizado já desde os anos 80.Trabalhadores pobres votando em candidatos por serem contrários á legalização do aborto ou ao casamento igualitário e que são os mesmo que reduzirão impostos de ricos e cortarão programas sociais dos pobres. É uma cena que começa nos EUA nos anos 70 e se generaliza pelo planeta, ganhando força no Brasil a partir dos anos 90 quando com apoio da maioria da bancada evangelica, por exemplo, se aprovou a isenção de Imposto de Renda na distribuição de lucros e dividendos.

Mais recentemente uma terceira linha de ação, e que por bom tempo passou despercebida para boa parte da esquerda, é a desmoralização dos dois poderes eleitos da republica, legislativos e executivos, pela disseminação da logica da anti politica e o fortalecimento do poder judiciário, o único dos poderes não eleito, composto pela “meritocracia” tal como a conhecemos com seu perfil de origem nas classes medias e altas e portanto mais confiável aos interesses da elite.

A imposição da pauta da ética como centro do debate nacional foi o primeiro passo e com o qual a esquerda alegremente contribuiu. A defesa despolitizada da Ética na Politica, como se a politica não tratasse de luta de classes foi um erro estratégico. Desde os anos 80 que a esquerda flerta com essa agenda aproveitando-se que conjunturalmente ela atingia seus adversários diretos com mais força dado o fato da burguesia controlar a maior parte dos aparatos do estado. É obvio que a corrupção deve ser denunciada e combatida e que não cabe á esquerda defender representações politicas carcomidas pela corrupção e muito menos deixar de zelar nas suas administrações para que a logica dos “300 picaretas “ que Lula denunciava em 1989 não as invada, como terminou acontecendo com o próprio governo de Lula. Mas também está evidente que a aceitação da centralidade dessa agenda no lugar da denuncia da desigualdade termina por ser uma enorme prestação de serviços á Casa Grande.

O pacote do desmonte das prerrogativas dos poderes eleitos vem bem embrulhado. Lei de Responsabilidade Fiscal em contraposição ás “irresponsabilidades”, Lei do Teto dos Gastos em contraposição á “gastança”, lei da Ficha Limpa em contraposição aos detestáveis “fichas sujas”, fim do Foro Privilegiado em contraposição “ aos privilégios”, e no meio do caminho a rejeição da PEC 37 que buscava restabelecer a separação de atribuições entre as Policias , as Procuradorias e a Magistratura.

Há uma clara conexão nestas agendas, todas elas fortemente impulsionadas pela mídia corporativa e todas elas dentro da logica do esvaziamento dos poderes eleitos da Republica, os únicos que de fato estão submetidos a algum crivo popular. A estratégia é manter as formalidades da democracia eleitoral, mas cuidando de esvaziar de consequências escolhas “insensatas” por parte dos eleitores que vez por outra insistem em eleger candidatos “populistas”, ou seja todos aqueles que não comungam da cartilha de interesses dos mercados e das elites econômicas globais.

É neste cenário que ocorre o golpe de 2016 no Brasil. A corrupção endêmica ao sistema econômico e não apenas ao sistema politico no Brasil é conhecida hà décadas. Circunscrever ao Estado e aos seus agentes o problema da corrupção , é também uma forma de luta politica das elites a favor da sua agenda de redução do papel do Estado , de desmonte da seguridade social e da privatização de suas empresas do setor produtivo, do setor bancário e das suas funções de garantidor de direitos sociais. A Operação Lava Jato não desvendou nada que não fosse de amplo domínio publico há muito tempo, mas se aproveitou do enorme desgaste da Presidente Dilma Roussef junto á sua base social e eleitoral resultado da traição programática cometida em 2015 com a adoção de um programa de ajuste fiscal suicida, para a derrubar do poder e entronizar um governo que fosse a expressão pura e dura dos interesses da elite econômica globalizada. Contribuiu para a desmobilização de qualquer resistência de massa a despolitização construída deliberadamente por Lula que nunca buscou a mobilização da sua enorme base social para pressionar por mudanças estruturais.

Tal qual em 1964 o simulacro de legalidade foi mantido, com o Congresso votando o impeachment com a mesma cara dura de 10 de abril de 1964 ao “eleger” indiretamente Castelo Branco, com o STF também como em 1964 “legalizando” a tramoia. Não faltou a cassação de direitos políticos do principal candidato ás eleições presidenciais seguintes, hoje Lula, antes Juscelino Kubitsheck . Lula está preso como resultado de um processo que jamais tramitaria em um sistema judiciario minimamente sério , Juscelino teve que responder a Inqueritos Policiais Militares durante a ditadura. Tirando os tanques na rua e os coturnos marchando, o modelo não foi muito diferente.

Para a esquerda é fundamental identificar corretamente a estratégia do inimigo para fugir do taticismo que no mais das vezes opera dentro da logica do adversário. É fundamental colocar no centro da agenda a desigualdade, a imperiosa necessidade de superação da crise, de revisão do sistema tributário grotescamente concentrador de renda, desmontar os entraves á ação dos poderes eleitos tanto no campo da condução da economia como da restauração das suas prerrogativas plenas hoje parcialmente encampadas pelo judiciário.

É inacreditável a usurpação crescente de poderes do executivo e do legislativo como vimos no impedimento da posse de Lula como ministro de Dilma, mas também no impedimento da posse de Cristianne Brasil como ministra de Temer. Nessa mesma linha o ministro do STF Luiz Roberto Barroso se outorga poderes para rever o indulto de Natal, função também precípua da Presidência da Republica, e a justiça prescinde da autorização das casas legislativas para prender seus membros, como ocorreu na ALERJ. Se foi correto a esquerda votar a favor da autorização, derrotada em plenário, não compartilho do regozijo dos que comemoraram a justiça ter renovado a prisão dos mesmos prescindindo dessa autorização. Estrategicamente quebrar as prerrogativas dos poderes eleitos submetendo-os á tutela do judiciário é um equivoco enorme ainda que venha embrulhado em boas causas como certamente é a prisão dos deputados Picciani, Paulo Melo e Albertassi. Para os de curta memória vale lembrar que o AI-5 foi editado na sequencia de uma negativa do Congresso Nacional em autorizar o processo contra o Deputado Márcio Moreira Alves. Lei da Ficha Limpa, fim do Foro Determinado, mal chamado de privilegiado, e o inusitado acumulo de funções de investigação e oferecimento de denuncia pela Procuradorias, que a PEC 37 buscava impedir, são operações de esvaziamento da democracia e de submissão dos poderes que emanam do povo ao poder que emana da meritocracia.

Teremos sim eleições em 2018, o golpe não é a total reprodução do golpe de 64,embora algumas características se repitam. A estratégia da elite golpistas é a do esvaziamento das prerrogativas de quem quer que venha a ser eleito, seja pelo desmonte do estado, seja pelos impedimentos ao exercício da politica fiscal constitucionalizados com a EC-95 do Teto de Gastos e pelas tentativas em curso de novas PECs que buscam impedir a emissão de Divida Publica, seja também pela subordinação de suas ações ao judiciário que hoje se sente empoderado para sustar qualquer ação de governo que contrarie interesses. Essa nova logica ascendente não ocorre apenas na esfera federal mas em todas as esferas de poder no país. Prefeitos por exemplo, têm visto aumentos de IPTU votados nas Camaras de Vereadores sendo sustados na justiça. Se permitirmos que essa escalada continue, o Presidente da Republica eleito em 2018, assumirá desprovido de prerrogativas essenciais á governação. Se olharmos o histórico do Brasil no campo dos direitos sociais, os avanços mais significativos que se conseguiram foram por iniciativa de poderes executivos, raramente pelos legislativos e nunca pelo judiciário.

O golpe não tem uma única data marcante, ele é uma agenda politica que passo a passo vai esvaziando de conteúdo real o pouco de democracia que temos.

Identificar corretamente a sua estratégia é essencial para o combater com efetividade.

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Este artigo está publicado também na última edição da revista  Socialismo e Liberdade da Fundação Lauro Campos, do PSOL

*Economista formado pela UFRJ.

Imagem: Mark Vallen, Globalização(2005)

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