Pesquisadores e população alertam para perigo de rompimento da barragem da empresa Anglo American
por Marcio Zonta, em Brasil de Fato
O tempo parece passar lentamente para a família de dona Idelclir da Silva. Tempo que ela divide entre os afazeres domésticos, entre a preparação de uma deliciosa comida no fogão de lenha ou assando os biscoitos de polvilho no forno de barro.
Vivem numa casa aconchegante, próximo a um rio, chamado de Passa Sete, rodeado de montanhas. Galinhas, uma bonita horta e um fio d’água que escorre de uma ladeira verde preenchem o cenário do quintal.
Há também a égua Possilda, de seu Jaime da Silva, marido de dona Idelclir. O animal é o seu principal meio de transporte. Possilda, quando não está trabalhando, vive mansa no quintal abaixo da parte da frente da casa, que lhe favorece uma sombra.
Tem horas que a égua parece olhar meio desconfiada para a moto que divide lugar com ela no quintal, meio de transporte de Júnior da Silva, filho mais velho do casal. Como se a moto fora sua concorrente.
A jovem Ildete completa a família Silva, que gosta de artes e teatro.
Quem os visita são recebidos por uma extrema bondade e cordialidade e tem vontade de ficar. Típica família do interior mineiro que gosta de prosear tomando um cafezinho quente e pitando e que no final da tarde toma uma cachacinha para abrir o apetite antes do jantar.
Entretanto, o dia a dia da família Silva não é nem tão tranquilo e nem tão seguro. Há problemas com o vizinho.
Vizinho mortal
“Corre mãe, corre mãe! Grita Ildete, desesperada. “A Barragem de rejeito estourou, a água do rio está transbordando, olha a lama!”, completa a garota trêmula e pálida que deixa sua negritude em suspensão.
Dona Idelclir apressada, com um ritmo atrapalhado perante o perigo da inundação de sua casa, recolhe num saco apenas as roupas íntimas. Ildete, recolhe em outro saco apenas as coisas que mais gosta na vida.
A água continuava a transbordar pelo rio, não dava tempo de recolher mais nada, apenas a vida se ainda fosse possível. Ao sair se deparam com Junior arrancado velozmente com a moto. Mal deu tempo de lhes dizerem algo. Por sorte Possilda e seu Jaime estavam fora.
Conseguem depois de bons minutos chegar esbaforidas na casa do cunhado de dona Idelclir em outra comunidade e por lá passam a noite, sem saber ao certo o que havia acontecido.
“Me lembro com pavor de 3 de março de 2018. Um barulho ensurdecedor de água. O rio subindo, as veias do pescoço da Ildete saltadas parecia que ia explodir de tanto gritar”, relembra pavorosamente dona Idelclir.
A família Silva mora ao lado do empreendimento minerário Minas Rio, da empresa Anglo American, que explora minério de ferro em Conceição do Mato Dentro (MG), onde em sua fase 3 de expansão do projeto, construiu uma barragem acima da casa da Família Silva e de tantas outras famílias que vivem na comunidade Passa Sete.
A barragem construída pela Anglo American, que ainda está em fase de alteamento – ou seja, aumento de tamanho – é sete vezes maior que a Barragem de Fundão, que rompeu em 2015 em Mariana, da empresa Samarco.
Sirenes
O que ocorreu em 3 de março, relatado acima por dona Idelclir foi ‘apenas’ um processo de escape utilizado pela mineradora para soltar rejeito via rio Passa Sete, para esvaziar um pouco a barragem.
“Foi o que explicou um funcionário da mineradora no dia seguinte, quando voltei para casa e eles estavam aqui me esperando para pedir desculpas, pois disseram que tinham esquecido de avisar o procedimento deles”.
Desculpas que não foram aceitas, embora a casa não tenha sido inundada.“Eu não posso desculpar não, eu queria falar com o presidente da empresa. E se eu tivesse morrido ontem do susto que passei, com a pressão alta, nem para minha alma você poderia pedir desculpa”, bronqueou dona Idelclir com o rapaz da empresa.
A vida dos Silva, que parecia tranquila, se reverteu em luta contra as violações da empresa Anglo American nos territórios atingidos por ela. Além da comunidade Passa Sete, que está a 1 quilômetro da barragem de rejeitos, outras 21 comunidades rurais localizadas nos municípios de Conceição do Mato Dentro, Alvorada de Minas e Dom Joaquim deixariam de existir com o rompimento da mesma.
Em muitas dessas localidades a mineradora instalou sirenes para avisar sobre o rompimento da barragem. No Passa Sete a comunidade não aceitou.
“Ah falei: vocês não vão querer ficar aqui no meu lugar para ouvir o barulho da sirene, eu não assino autorizando a sirene aqui não, porque ela só vai servir para anunciar a minha morte”, reproduz Idelclir a reposta dada ao funcionário da mineradora.
A argumentação de Idelclir faz sentido. Pela proximidade da barragem (1 km) as famílias da comunidade Passa Sete estariam numa área de autossalvamento, o que significa que são regiões a jusante da barragem de rejeitos, que não teria tempo hábil para uma intervenção das autoridades competentes em caso de rompimento. Na mesma situação estão as comunidades do São José do Jassem e Água Quente.
Para Larissa Vieira, advogada, que integra o Coletivo Margarida Alves de Assessoria Popular e colabora com o Movimento pela Soberania Popular na Mineração (MAM), a empresa é obrigada a elaborar um Plano de Ações Emergenciais – PAE, cujas sirenes também constam, mas não somente.
“De acordo com a Lei 12.334/2010 (Política Nacional de Segurança de Barragens), a instalação de sirenes e outras medidas faz parte de tal plano. Dentro das etapas do PAE ainda está a elaboração do Dam Break, que é um Estudo de Ruptura Hipotética”, explica Larissa.
Logo após o rompimento da barragem em Mariana, foi aberto inquérito civil pelo Ministério Público da Comarca de Conceição do Mato Dentro para fiscalizar e monitorar as medidas de segurança da barragem de rejeitos da Anglo American, do Projeto Minas Rio. A advogada menciona que no âmbito do inquérito foi apresentando o PAE e o Dam Break “identificando pelo menos 400 pessoas vivendo na zona de autossalvamento, dentre elas, pessoas com mais de 80 anos, crianças e deficientes”, denuncia.
É o caso do senhor José Maria da Silva, morador do São José do Jassem que é deficiente físico. “A sirene nunca salvou a vida de ninguém e nunca vai salvar, como as pessoas deficientes vão correr? E os idosos?”, indaga.
Perigo de rompimento?
A constar pelo próprio Estudo de Impacto Ambiental (EIA) da empresa Anglo American, o alteamento da barragem estaria sendo feito com um material não muito apropriado para garantir a prevenção do rompimento.
Tadzio Peters Coelho, pesquisador do Grupo de Pesquisa Política, Economia, Mineração, Ambiente e Sociedade (PoEMAS) e do Centro Ignácio Range explica: “existe uma série de inconsistências e insuficiências no Estudo de Impacto Ambiental no stepe 3. Alguns exemplos: Em análise de 2013 acreditava-se ter material argiloso suficiente para o alteamento da barragem. Todavia, o Estudo de Impacto Ambiental acusa não haver mais esse material de melhor qualidade para o alteamento, por isso eles utilizariam um material de pior qualidade”.
Fora isso, na construção da barragem não foi levado em consideração a localização das comunidades, segundo o pesquisador. “Quando se debate as alternativas locacionais da barragem de rejeito para justificar a escolha atual, se ignora a segurança dos elementos sociais, se ignora as comunidades do Passa Sete, Àgua Quente e São José do Jassem”, determina.
A advogada Larissa caracteriza a escolha do local de construção da barragem, pela mineradora, por um procedente racista. “É importante destacar ainda a composição étnico-racial das comunidades que residem nesta zona a jusante da barragem de rejeitos. Tratam-se de comunidades negras rurais, compostas majoritariamente por pessoas negras, o que demonstra prática de racismo ambiental por parte da empresa Anglo American”, acusa.
Diversos impactos
A barragem seria mais um dos componentes do complexo minerador da Anglo American a prejudicar as várias comunidades rurais ao seu envolto. Tadzio elenca que depois que o projeto foi implantado, há oito anos, houve uma série de transformações na região de âmbito ambiental e econômico, pesquisados e comprovados por ele conjuntamente com outros estudiosos, dos impactos da atividade da Anglo American em Conceição do Mato Dentro.
“A queda de produção de laranja, mandioca, feijão e arroz e também queda da área de cultivo. Isso provavelmente foi causado por uma menor disponibilidade de água e por uma queda na oferta de terras para plantação”, afirma.
Por conta disso, a população em torno do projeto minerador ficaria mais vulnerável ao que ele chama de “minero dependência”, “na qual a atividade da mineração se torna central na economia local e não se cria alternativas”, elucida.
Larissa destaca mais duas questões centrais e prejudiciais à vida da população que passou a conviver com o projeto da empresa. “Processos de depressão foram desencadeados devido à desterritorialização e ao rompimento dos laços familiares, fruto da forçosa e violenta forma como a empresa se instalou no território”, alerta.
Além da vida das mulheres, que passaram a viver em perigo. “Estupros e gravidez na adolescência também foram alguns dos impactos na vida das mulheres, principalmente as do campo”, atenta.
Pela janela da cozinha, dona Idelclir olha o mundo e parece procurar uma vida não mais possível com o imponente vizinho. O rio que antes era lazer e sobrevivência hoje virou sinônimo de medo. “Só espero que por essa janela não veja um aguaceiro de lama vindo por esse rio invadir a minha casa e a minha vida”, conclui.
Procurada pelo Brasil de Fato, a Anglo American afirmou, em nota, que a barragem localizada no município de Conceição do Mato Dentro é segura e devidamente monitorada. Também diz que tem “compromisso com a mitigação de impactos ambientais e sociais de seus empreendimentos, mantendo um rigoroso sistema de monitoramento ambiental e um programa de relacionamento transparente com as comunidades em sua área de atuação.”
Edição: Daniela Stefano