Bruno Milanez*, estudioso da economia da mineração, diz que empresas não conseguem avaliar o risco de suas obras
Por Ana Carolina Amaral, Folha de S. Paulo
Mariana anunciou Brumadinho ainda em 2015, segundo o doutor em política ambiental da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) Bruno Milanez. “A gente não discutia se haveria outros rompimentos, mas quando eles aconteceriam.”
Para ele, a visão de mundo do setor mineral impediu que os alertas da academia e do Ministério Público fossem levados a sério. “Eles acreditam que barragens são seguras, de verdade. Se não acreditassem nisso, não colocariam o refeitório da mineradora embaixo de uma.”
A licença a jato concedida em dezembro para ampliação de obras em Brumadinho mostra, de acordo com Milanez, que o licenciamento já está sendo flexibilizado na prática, como balão de ensaio para a mudança na lei.
Ele afirma que, quando cai o preço do minério, as primeiras áreas a sofrerem cortes são manutenção e monitoramento e defende mais participação da comunidade nas decisões de como usar o território. “O modelo de mineração que o Brasil adotou é um mal. E não é necessário.”
A Vale havia conseguido em dezembro uma licença “express” para ampliar atividades na região da barragem que se rompeu em Brumadinho. Isso significa que a flexibilização do licenciamento ambiental aventada pelo governo federal já acontece na prática?
As mineradoras testam brechas para flexibilizar o licenciamento. O Executivo dá uma certa autonomia para “inovar”, vamos dizer assim, e quando essas práticas passam a ser repetidas, são tomadas medidas legais para institucionalizar. Aí, o que era exceção vira regra. Elas vão fazendo balões de ensaio. Alguns pegam, outros não.
Desta forma as empresas não estão elevando o risco de seus projetos?
As mineradoras não associam licenciamento com risco. Existe uma visão de mundo dentro do setor de que barragens não rompem. Eles acreditam que elas são seguras, de verdade. Se não acreditassem nisso, não colocariam o refeitório embaixo de uma [como era em Brumadinho]. Algumas pessoas passaram 20 anos almoçando e jantando lá dentro achando que ela nunca iria cair.
A tragédia de Mariana anunciou a de Brumadinho?
Já estava avisado que Brumadinho iria acontecer lá em 2015. A universidade sugeriu, em documentos técnicos, uma série de operações de monitoramento da barragem; o Ministério Público também. O projeto de lei “Mar de Lama Nunca Mais” tinha feito recomendações; pedimos o fim do automonitoramento.
Em 2015, a gente não discutia se teria outros rompimentos, mas quando aconteceriam. Temos uma série histórica em Minas Gerais: de 2002 para cá tivemos um rompimento a cada dois anos. Se não mudar, a média se mantém.
Quais os desafios na avaliação dos impactos ambientais e do potencial de dano das barragens?
Na prática a obra está licenciada antes da avaliação. Preocupado com crescimento econômico, o governante está de antemão disposto a aprová-la. Hoje o estudo de impacto ambiental é feito por empresa contratada pela empreiteira. Existe um interesse, para garantir o contrato, de reforçar aspectos positivos da obra e ignorar negativos. Isso já pode ser um autolicenciamento, caso haja projeto de lei que equipare o estudo de impacto ambiental à concessão de licença. É preciso mudar como as empresas são escolhidas.
O que mais precisaria mudar?
Estabelecer distâncias mínimas, como 10 km, entre barragens e comunidades. E impor limite ou proibir barragens construídas com a técnica à montante, o tipo mais comum, mais barato e o menos seguro, usado em Mariana e em Brumadinho.
Além da técnica, quais outras semelhanças nos desastres de Mariana e Brumadinho?
As duas foram licenciadas como barragens menores, mas foram alteradas, ficando com mais degraus. A de Brumadinho foi construída com 18 metros de altura e, quando caiu, tinha mais de 85 metros. Com isso, vão dosando homeopaticamente o licenciamento.
Nenhuma das duas tinha um plano de emergência que funcionasse. Fundão tinha um capenga. Em Brumadinho, nem sirene tocou. Alegar que foi rápido não é motivo. Poderia ter salvado moradores mais distantes.
Como os impactos socioambientais devem se desdobrar em Brumadinho e região?
Aprendi com o caso de Fundão que qualquer cenário que a gente trace de imediato subestima impactos.
É preciso uma pesquisa conduzida por órgão independente e não financiada pelas mineradoras. O acesso a essas informações também precisa ser público.
Boa parte do licenciamento de obras compete ao estado. Como avalia a atuação dos órgãos de MG na concessão e fiscalização das licenças?
Existe total captura do estado pelas grandes mineradoras. O Legislativo estadual eleito em 2014 era diretamente financiado por mineradoras. Órgãos de licença e fiscalização estão precarizados e sucateados.
Os conselhos que fazem licenciamento também têm ocupação estratégica. Os assentos das empresas são controlados pelo setor mineral, o governo normalmente é pró-mineração e os assentos de ONGs são ocupados por aquelas com projetos financiados por mineradoras. Não é por acaso que o licenciamento feito em dezembro na região de Brumadinho só teve um voto contrário.
O que poderia explicar a vulnerabilidade desses territórios?
As cadeias são globais —a tomada de decisão não está no território. A Vale tem pouco poder de pressão sobre clientes, porque vende commodity. Ela obedece o preço que a China impõe, não captura valor na venda.
Se não pagar dividendo suficiente, o investidor compra ação de outra empresa. Então o que a mineradora faz? Reduz o custo na operação. Como as operações da Vale são concentradas no Brasil, os impactos acontecem mais aqui.
E como o setor de mineração tem estabelecido relações com o governo federal?
Ficou claro no governo federal e é forte em MG o fenômeno da porta giratória: empresas contratam pessoas com cargos no governo e representantes de empresas passam a ocupar esses mesmos cargos. Quando entrou o governo Temer, todo o segundo escalão do Ministério de Minas e Energia veio dos quadros da Vale. O Código Mineral foi aprovado nesse contexto.
Deve haver continuidade dessa relação no governo Bolsonaro?
Acho que ele ainda não tem posição clara. Há uma discussão sobre terras indígenas mais ligada ao agronegócio. Acredito que até o final do governo, o setor vai tentar emplacar lei complementar à Constituição para mineração em terras indígenas. Não agora, porque está todo mundo atento por conta do desastre.
Seus artigos ligam o preço do minério ao rompimento de barragens.
Normalmente, na alta dos preços do minério, as obras são feitas às pressas. Quando o preço cai, empresas cortam custos de manutenção e monitoramento. Um estudo americano mostra uma tendência de pico na frequência de rompimentos entre 18 e 24 meses depois do pico do preço do minério.
Ainda não há dados sobre essa correlação no caso de Brumadinho, mas o modelo cai como uma luva no caso da barragem de Fundão [em Mariana].
O que pensa sobre a afirmação de que a mineração é um mal necessário?
Ela é necessária, mas é não má. A armadilha é a dependência do poder das mineradoras. Precisamos reequilibrar essa correlação de forças, para que trabalhadores e comunidades tenham voz e capacidade de tomar decisão sobre o que ocorre no seu território. O modelo de mineração que o Brasil adotou, sim, é um mal. E ele não é necessário.
Raio-X
Bruno Milanez, 43
É coordenador do núcleo de pesquisa Poemas – Política, Economia, Mineração, Ambiente e Sociedade, da UFJF (Universidade Federal de Juiz de Fora) em parceria com a Uerj (Universidade Estadual do Rio de Janeiro). Engenheiro de produção e doutor em política ambiental pela Lincoln University (Nova Zelândia), foi pesquisador do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) e atualmente faz parte do Comitê Nacional em Defesa dos Territórios frente à Mineração.
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Imagem: Ao fundo, a barragem 6 do complexo da Mina do Córrego do Feijão, cujo sistema de alarme apontou risco de rompimento em 27 de janeiro –