Edward Luz, conhecido por questionar territórios indígenas, pode ser o segundo homem mais poderoso da Funai. Antropólogo trabalha para latifundiários no oeste do Pará ao questionar demarcações de terras indígenas e quilombolas, o que agrava o conflito na região
Por Antônio Carlos, de Santarém, e Ana Magalhães, do Repórter Brasil
Edward Luz, que ficou conhecido nos últimos anos como o “antropólogo
dos ruralistas”, é o nome cotado pelo governo Bolsonaro para assumir o
segundo cargo mais alto da Funai, conforme apurou a Repórter Brasil.
Considerado um dos maiores inimigos do movimento indígena brasileiro,
ele é famoso por fazer laudos pagos por fazendeiros contra a demarcação
de terras indígenas e quilombolas no Brasil, uma atuação quem vem
agravando o conflito agrário no oeste do Pará. Apesar de não haver
vice-presidência na fundação, a tendência é tornar Luz o segundo homem
mais poderoso na instituição.
Luz diz que ainda não recebeu o convite do governo Bolsonaro, mas
confirma que seu nome chegou às instâncias mais altas em Brasília por
indicação de “uma ministra”. Para aceitar o cargo, o antropólogo assume
que terá que checar se não haveria conflito de interesses, já que
presta consultorias particulares para fazendeiros e representantes do
agronegócio que contestam a identidade de indígenas e quilombolas. “Na
Funai ou na Justiça, tenho cerca de 19 contestações de terras
indígenas”, disse em entrevista à Repórter Brasil.
Luz foi desligado da Associação Brasileira de Antropólogos em janeiro de 2013 por ter “postura não compatível com a ética profissional” e por atuar “em direta sintonia com os interesses das redes políticas das quais participa, de forte viés conservador e autoritário”, segundo a organização. Ele, porém, afirma que pediu o desligamento da instituição “ao perceber em 2012 que o clima de patrulhamento ideológico promovido pela militância engajada tornara o ambiente tóxico à livre manifestação e ao livre exercício da profissão de antropólogo no Brasil”.
Atualmente, o antropólogo é disputado por fazendeiros e empresários
da região de Santarém, no oeste do Pará, para preparar ações judiciais e
administrativas contra territórios indígenas e quilombolas demarcados.
Luz contesta a autodenominação de alguns povos e quer criminalizar o que
seriam “autodeclarações fraudulentas”. Ele afirma que as comunidades
mentem sobre sua identidade – o que ele chama de “fraude étnica” –,
acusações que geram forte reação de indígenas e quilombolas e até do
Ministério Público Federal de Santarém, que já contestou os argumentos
do antropólogo.
“A própria nomenclatura equivocada do território indígena [feita por
Luz] denota a completa ausência de informações seguras acerca da
reivindicação. Como resultado, um número bem superior de pessoas são
envolvidas desnecessariamente no conflito, acirrando ainda mais a
animosidade entre as partes, e a hostilidade contra os indígenas”,
informou o MPF em ação civil pública.
A coordenadora-executiva da Apib (Articulação dos Povos Indígenas do
Brasil), Sonia Guajajara, afirma que criminalizar a autodeclaração é uma
prática colonial. “Para propor um novo indigenismo no Brasil, requer-se
necessariamente reconhecer a autodeterminação dos povos à sua
identidade e aos seus territórios”, diz Guajajara.
As acusações de fraude feitas por Luz recaem também sobre o Incra,
como no episódio da contestação do Tiningu, reconhecido como território
quilombola em outubro de 2018, mas onde ele alega ocorrer “fraude
étnica”. Quando questionado se o Incra, órgão do governo federal, também
cometeria fraude nesses reconhecimentos, Luz afirma que o problema da
instituição é a “ditadura do politicamente correto”. “Chega no ponto em
que o órgão público, muitas vezes desconfiando da narrativa [das
comunidades], não consegue ou não tem vontade política de falar por
causa da ditadura do politicamente correto”, afirmou.
A Funai não confirma a indicação de Luz e lembra que algumas nomeações têm sido realizadas diretamente pela Casa Civil.
Guerra étnica em Santarém
Contratado no início de 2018 por fazendeiros ligados ao Sindicato
Rural de Santarém (Sirsan), Luz tem feito mais do que contestar os
laudos antropológicos nos processos demarcatórios. Ele tem articulado e
fortalecido os fazendeiros e produtores de soja da região – e parece
estar executando muito bem o seu trabalho.
O conflito por territórios está tão acirrado no Planalto Santareno
que tanto moradores quanto Luz concordam que há o prenúncio de uma
“guerra étnica”, nas palavras do antropólogo. “Está sendo tramado, sendo
preparado um confronto étnico. As sementes já foram plantadas lá atrás,
há uma década”, afirma Luz.
Foi no Planalto Santareno, em 8 de novembro de 2018, que membros da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA foram intimidados ao tentarem visitar uma comunidade indígena. Dez dias antes, um quilombola fora brutalmente assassinado a golpes de chave de fenda. E, em 11 de dezembro, a Câmara Municipal votou o plano diretor de Santarém, com manobras de última hora, abrindo caminho para a construção de mais um porto na cidade para ampliar o escoamento da soja.
O tumulto com a OEA
Foi Luz o responsável pela tensão durante a visita dos membros da OEA,
que visitaram a comunidade indígena de Açaizal. O antropólogo seguiu a
comitiva na estrada, desceu do carro com a câmera ligada, disse algumas
palavras em portunhol e levantou o dedo para um membro da corte: “ONGs
usam as minorias étnicas contra nossa capacidade produtiva”, gritou.
“Isso está prestes a acabar, ano que vem teremos um novo presidente”,
concluiu, fazendo referência a eleição recente do presidente Jair
Bolsonaro
A OEA emitiu nota
e disse que se sentiu intimidada. O antropólogo nega que tenha causado
tumulto e afirma que queria apenas dialogar. “Queríamos só dizer à OEA
que aquela não era uma comunidade indígena. Não levantei a mão ou a voz
de maneira ofensiva, fui apenas firme nas minhas convicções”. O
antropólogo, porém, reconhece que sua estratégia de ter seguido de carro
a comitiva “não foi a mais inteligente, pois gerou margem para uma
má-interpretação”.
Também há articulação de Luz na mudança do plano diretor de Santarém, que abre caminho para a construção do porto Maicá nas margens do rio Amazonas. Foi após reunião com os membros do Sirsan que os vereadores decidiram aprovar a mudança. Os vereadores contrariaram decisão popular de um ano antes, em que a população, em assembleias, não quis o porto.
“Não só participei [do encontro], como promovi a reunião. Fui um dos
principais articuladores”, afirma. O novo plano diretor foi sancionado
pelo prefeito de Santarém em 17 de dezembro. A construção do Porto de
Maicá, porém, ainda depende de licenciamentos ambientais – que estão suspensos por decisão da Justiça Federal até que haja consulta às comunidades tradicionais que vivem ali.
Se, por um lado, Luz teme “guerra étnica” na Amazônia paraense, por
outro ele é o primeiro a disparar petardos. Ele acusa organizações como
CPT (Comissão Pastoral da Terra) e Cimi (Comissão Missionária Indígena)
de serem financiadas por grupos internacionais para promoverem a chamada
‘fraude étnica’.
A CPT rebate as acusações. “Não sei como um antropólogo pode se posicionar contra a identidade indígena. Não tem como ocorrer uma ‘fraude étnica’”, diz Isolete Wichinieski, da coordenação nacional da comissão. “As comunidades se autorreconhecem, mas você tem todo um estudo antropológico que prova isso. Se ele questiona isso, ele está questionando critérios científicos usados para comprovar se é ou não é uma comunidade indígena”. Procurado, o Cimi não se posicionou até a publicação desta reportagem.
Prioridades na Funai
Caso assuma o cargo na Funai, Edward Luz interviria para acabar com a
parceria da fundação com ONGs. “A Funai precisa ser revista. A primeira
é rever a parceria com as organizações não governamentais porque elas
têm uma agenda própria que não necessariamente é a agenda dos
indígenas.”
Apesar de ser apoiador de Bolsonaro, Luz diz que o presidente não
usou as palavras corretas ao dizer que “não haveria mais demarcações de
terras indígenas no Brasil”. Ele também critica o presidente da Funai, o
general Franklimberg de Freitas. “O atual presidente da Funai precisa
urgentemente de uma outra orientação”.
Luz defende a manutenção das demarcações, caso assuma o cargo, mas
revendo os critérios da autodeclaração. Desde a posse do presidente
Bolsonaro, porém, a demarcação de terras indígenas deixou de ser
competência da Funai e passou para a Secretaria de Assuntos Fundiários
do Ministério da Agricultura.
Outra medida que ele assumiria na Funai seria a de “buscar o diálogo” e permitir mineração em terras indígenas. Antes de ser cotado para a Funai, o antropólogo disse que pretendia propor projeto de lei ao Congresso para criminalizar o que ele chama de autodeclaração “fraudulenta”.
‘Luz veio para tumultuar’
Enquanto Edward Luz diz temer uma “guerra étnica” no Oeste do Pará, Raimundo Benedito da Silva, presidente da associação comunitária do Tiningu, lamenta a tensão na região. “Luz veio para tumultuar. Eles falam que o povo daqui é preguiçoso, que aqui não tem quilombola, que não tem índio”, diz. “Em 1844, seis escravos fugiram de uma senzala e vieram para cá. Todos somos descendentes desses fugitivos”.
Bena, como o líder Tiningu é conhecido, fica triste com as acusações
que vem escutando de Luz e de fazendeiros. Ele, porém, promete não ficar
acuado. Se o oeste do Pará avança rumo a uma guerra étnica, os
quilombolas do Tiningu dizem estar preparados para defender suas terras.
Edward Luz nega que provoque tumultos ou que agrave os conflitos por terras no Pará. “Condeno qualquer forma de manifestação violenta. Mas sou muito incisivo nas posturas que tenho”.
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Imagem: Criança Munduruku. Foto de Rachel Gepp (Nov/2014).