Número de tribos isoladas dobra na América do Sul, mas maioria está em situação de risco

Por Fernanda Odilla, da BBC News Brasil

Muitos são guerreiros, que se defendem atacando e ainda usam arco e flecha. Outros são caçadores-coletores. Há entre eles nômades, capazes de construir uma moradia em poucas horas e abandoná-la dias depois.

Do pouco que se sabe sobre povos indígenas em situação de isolamento, é possível afirmar que eles estão, em sua maioria, em sete países da América do Sul, em especial na região amazônica. Fora da América do Sul, há registros de grupos isolados apenas na Índia e na Papua-Nova Guiné. Há também, entre indigenistas e indígenas, a certeza de que esses grupos não querem manter contato com outros grupos ou não índios.

Agora, um relatório inédito, elaborado pelo indigenista brasileiro Antenor Vaz, revela também que o número de povos isolados registrados está crescendo na América do Sul.

Num intervalo de quase 15 anos, a região viu dobrar o número de povos indígenas em situação de isolamento, que são classificados como confirmados (com existência reconhecida pelo Estado e/ou sociedade civil) e a confirmar (avistados, mas ainda pendentes de evidências e testemunhos irrefutáveis).

Segundo o levantamento, os registros da presença de grupos isolados saltaram de 84 para 185 entre 2005 e 2019, mas a situação de 119 deles é considerada extremante preocupante.

“Estão encurralados, principalmente, por madeireiros, garimpeiros ou por grupos rivais. De um modo geral, o Estado não consegue ter um sistema eficiente de localização nem de proteção”, afirma o indigenista, emendando que todos os países experimentam uma redução de recursos para políticas específicas para esses grupos.

Segundo ele, há situação de conflito no Peru, no Equador e no Brasil.

Mapa indicando onde estão os grupos isolados na América do Sul (pontos brancos), principais áreas de desmatamento (laranja escuro) e atividades de exploração de gás e óleo (laranja claro) – CORTESIA/ANTENOR VAZ

Ameaças concretas

O indigenista cita o narcotráfico, a grilagem de terra, a exploração de recursos naturais, obras de infraestrutura, agronegócio e o turismo desordenado como ameaças aos indígenas isolados. A intensidade dessas ameaças, contudo, varia a depender do país.

“Os territórios ocupados por esses grupos estão ameaçadas por grandes projetos governamentais e privados, bem como por ações ilícitas, principalmente em regiões fronteiriças, onde a presença protetiva dos Estados é mínima”, observa.

A partir de informes elaborados por organizações indígenas e indigenistas de Brasil, Bolívia, Colômbia, Equador, Paraguai, Peru e Venezuela, Vaz detalha situação de povos indígenas isolados desses países.

Para entender regionalmente a situação dos territórios desses povos com realidades políticas específicas e marcos legais para reconhecimento dos territórios indígenas distintos, diz o indigenista, foi importante contar com um coletivo de profissionais de diferentes áreas do conhecimento dos países envolvidos.

No relatório, Vaz contabiliza aumento de grupos confirmados (51 em 2005 para 66 em 2019) e um salto expressivo no número de povos isolados a confirmar (33 em 2005 para 119 em 2019) – o que, segundo o indigenista, mostra a necessidade de pesquisar e proteger ainda mais esses territórios.

O documento será apresentado à Organização das Nações Unidas nesta semana, no 18ª sessão do Fórum Permanente das Nações Unidas sobre Questões Indígenas.

Trata-se de uma iniciativa da organização não-governamental Land is Life, que pretende usar o documento para tentar assegurar proteção completa e efetiva das terras dos grupos isolados e exigir a garantia de seus direitos ao território.

José Proaño, representante da Land is Life na América do Sul, diz que o relatório cobre uma lacuna sobre o tema: a carência de informações aprofundadas de toda a região.

“Após várias análises percebemos que a maioria dos trabalhos realizados anteriormente eram panorâmicos, ou seja, demonstravam situações urgentes sobre saúde, políticas de proteção, e falavam de maneira geral sobre as ameaças contra a vida desses povos. Juntamente com as organizações indígenas, identificamos que uma parte substancial de suas lutas é pelo território e essa também é a identidade dos povos isolados. Por isso optamos por aprofundar a análise dessa situação em cada um dos países”, explica Proaño.

“Agora sabemos quantos hectares foram reconhecidos por grupos isolados, quantos estão envolvidos em litígios legais, cujos projetos se sobrepõem às suas terras. Temos vários objetivos com este relatório, alguns são locais e outros internacionais”, complementa.

O primeiro relatório regional, que segundo Antenor Vaz foi usado como marco temporal e base de comparação para o atual, foi feito em 2005 pelo belga radicado no Brasil Vincent Brackelaire.

No documento elaborado 14 anos depois dessa primeira iniciativa, Proaño destaca como novo o enorme aumento de atividades ilegais, como mineração na Colômbia e Venezuela, extração ilegal de madeira na fronteira entre o Peru e o Equador, e a presença de grupos armados irregulares.

Qual é a situação dos povos isolados na América do Sul

Em entrevista à BBC News Brasil, Vaz detalha a situação de cada um dos países, salientando os principais desafios a serem superados.

Físico de formação, Vaz se dedica às questões indígenas desde os anos 1980. Ex-servidor da Funai (Fundação Nacional do Índio), ele começou como educador e já chefiou a Frente de Proteção Etnoambiental do órgão no Vale do Javari (AM), uma das maiores terras indígenas demarcadas do país. Há décadas acompanha, de perto, a questão dos povos isolados.

Brasil

Com 114 povos isolados registrados (28 confirmados e 86 a confirmar), o Brasil é o país com maior número de povos indígenas em situação de isolamento e também com o maior número de territórios definidos para esses grupos – apenas um não está na Amazônia, pontua o indigenista.

Antenor Vaz diz que o Brasil é pioneiro em desenvolver metodologia e práticas de proteção bastante eficientes que resultaram em uma quantidade grande de registros de povos isolados.

A partir de 1987, conta Vaz, o país protagonizou uma mudança importante, optando por uma política de ‘não contato’ – a não ser que seja extremamente necessário ou que a iniciativa parta dos grupos isolados.

Além de o contato apresentar, potencialmente, riscos de doença e morte dos indígenas, o indigenista explica que passou a prevalecer no Brasil o entendimento de que a proteção dos isolados passa por respeitar a decisão do isolamento e instituir um sistema protetivo que garanta o território desses povos.

Por isso, o indigenista classificou como arriscada a operação organizada este ano pela Funai para realizar o contato com um grupo de índios Korubo, no sul do estado do Amazonas. Apesar de viverem isolados na selva amazônica, corriam risco de serem vítimas um massacre. Eles estavam em confronto com uma etnia vizinha, os Matis.

A operação para contatar os índios era pedida há mais de quatro anos pelos Matis, que chegaram a invadir uma base da Funai na região, em 2016, na tentativa de pressionar o órgão.

No início de abril, a Funai divulgou o resultado da maior expedição do órgão dos últimos 20 anos para se aproximar de grupos isolados. Até o momento, diz a Funai, os encontros foram pacíficos e reduziram as tensões na Terra Indígena Vale do Javari. Também permitiu aplicar vacinas e conferir a saúde dos korubos.

Korubos que já haviam sido contatados anteriormente fizeram festa ao encontrar com seus parentes ainda isolados.

Apesar das iniciativas bem sucedidas do Brasil, que conta um sistema de proteção de índios isolados desde 1988, os grupos isolados em território brasileiro ficam em situação vulnerável não apenas pela ação ilegal de garimpeiros e madeireiros, mas também por atividades que contam com aval e financiamento do Estado, como extração mineral e construção de rodovias e hidrelétricas.

Vaz ressalta também que o arcabouço jurídico no Brasil para os grupos de situação de isolamento ainda é frágil. “Ainda falta um marco jurídico consistente. Existe apenas um conjunto de atos administrativos, que podem ser facilmente revogados.”

Venezuela

Um dos países onde a situação, nas palavras do indigenista, é a mais dramática é a Venezuela.

Oficialmente, o país não reconhece nenhum grupo em situação de isolamento, ainda que indígenas e indigenistas afirmem existir três grupos confirmados e um a confirmar.

O governo alega que são todos integrados e, consequentemente, não há necessidade de medida protetiva. Ativistas, no entanto, têm tentado sensibilizar órgãos do governo e pleiteado que a nova Constituição do país crie um dispositivo específico para esses grupos.

Empreendimentos de petroleiras e mineradoras ameaçam os grupos localizados em território venezuelano assim como ação de grupos armados e de narcotraficantes, diz o relatório da Land for Life.

Colômbia

Em 2018, a Colômbia aprovou uma lei específica para o caso dos indígenas isolados.

“O país se destaca porque a legislação foi discutida por três anos”, diz Antenor Vaz, observando que a nova lei prevê um conjunto de programas, ações e atividades para proteção do povos em situação de isolamento.

A nova legislação ainda está na fase de implementação no país que tem dois povos confirmados e 16 a confirmar, segundo o levantamento da Land for Life. “O novo presidente (Iván Duque Márquez) tem esse desafio (de tirar a lei do papel)”.

Na Colômbia, a principal ameaça vem dos empreendimentos expansionistas, entre eles, o cultivo de coca e a mineração.

Peru

No Peru, há divergência entre o número de povos isolados contabilizados pelas autoridades do governo e pelas entidades representante dos indígenas. São 17 povos confirmados pelo Estado e 26 pelas organizações indigenistas.

O país conta com uma legislação específica, inclusive para demarcação de terras para povos isolados, mas enfrenta problemas com a ação de petroleiras e com a exploração de madeira nas florestas.

Bolívia

A situação dos povos isolados que ocupam o território boliviano é, nas palavras de Antenor Vaz, “difícil”.

Há dois grupos confirmados e sete a confirmar. Mas, ainda no governo de Evo Morales, uma empresa chinesa foi autorizada a fazer prospecções com explosivos em busca de petróleo.

“Apesar de possuir um marco jurídico amplo, que possibilitaria a formulação de instrumentos legais para a consolidação de procedimentos, a Bolívia não conta com nenhum marco jurídico específico para a definição territorial. Em 2013 aprovaram uma lei, mas ficou só no papel, nunca foi implementada”, afirma Vaz.

Paraguai

São dois grupos confirmados e cinco a confirmar no Paraguai, numa região que não é coberta pela floresta amazônica, mas que sofre com o desmatamento. Os dois grupos confirmados transitam também em território boliviano, mas não há uma política conjunta dos dois países para protegê-los.

O agronegócio é, segundo o relatório, um dos grandes vilões na região.

Equador

Em 1999, o Equador, por meio de um decreto, aprovou a criação do território chamado de Zona Intangible Tagaeri Taromenane, destinada aos povos Tagaere e Taromenane. Quase 20 anos depois, incluiu na Constituição um artigo específico sobre povos em isolamento voluntário.

Mas, segundo Antenor Vaz, muito pouco foi feito na prática no país que registra três grupos confirmados e quatro a confirmar.

Os três grupos confirmados – Tagaere, Taromenne e Dugakairi – compartilham território com os Waorani. “A principal ameaça é a atividade petroleira promovida diretamente pelo Estado equatoriano”, diz o indigenista, destacando a influência chinesa na extração de matéria-prima no país e os riscos de contaminação da terra e dos rios onde estão os índios isolados.”

Respostas

O indigenista faz questão de destacar que as ameaças aos povos isolados não vêm apenas das atividades ilegais nas áreas onde eles vivem mas também de ações que contam com o aval ou financiamento público.

“Sendo assim, é extremamente urgente que as políticas protetivas saiam do ‘isolamento’ e dialoguem com as instâncias responsáveis pela concepção e implementação das políticas de desenvolvimento de cada Estado”, diz, avaliando que além do Executivo, o poder Legislativo e a sociedade, em geral, precisam também participar das discussões.

“Em todo esse processo devem participar as organizações indígenas e aliadas. Nesse campo, os organismos multilaterais têm papel fundamental de mobilização e convocação.”

Para José Proaño, “é imperativo que Estados e governos entendam que a melhor maneira de proteger os povos isolados é reconhecer e proteger seus territórios por meio de políticas eficazes que garantam que esses territórios tenham uma natureza intangível para a extração de recursos naturais e planos de desenvolvimento”.

“A grande maioria dos casos, os territórios dos isolados e recentemente contatados, são territórios compartilhados que devem estar sujeitos a regimes especiais de proteção e uso de recursos”, avalia Proaño.

Imagem: Registro de povos indígenas em situação de isolamento saltou de para 84 para 185 entre 2015 e 2019 – BRUNO JORGE/IBAMA

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