Um menino manchado de petróleo

Em 2016, depois de um vazamento de 500 mil litros de petróleo na Amazônia peruana, a empresa Petroperú pagou a indígenas para recolhê-lo. Numa comunidade tão pobre, muitas famílias viram no desastre uma oportunidade para melhorar sua vida

Por Joseph Zárate, Agência Pública

Se Deus pudesse lhe conceder um desejo, Osman Cuñachí, um menino indígena awajún, pediria um smartphone. Ou uma bola de futebol. Ou trocar seus chinelos de plástico por umas alpargatas fosforescentes. No entanto, se ele pensasse um pouco mais, pediria uma casa de cimento e tijolos como as que viu uma vez em Lima, capital do Peru, mais resistentes às tormentas que as cabanas de madeira e teto de folhas que abundam em Nazareth, onde vive. Por isso Osman, 11 anos, magrinho como um cabo de vassoura, camiseta desbotada do Homem-Aranha, pensa em se mudar para a capital para estudar arquitetura, ter uma esposa e um só filho, pois sabe que criar três, quatro ou cinco, como é comum em sua aldeia, significa passar fome e necessidade. Isso foi o que lhe disse seu pai, um professor aposentado que alimenta cinco bocas com a sua aposentadoria mensal de 400 soles, uns US$ 130: nem a metade do salário mínimo. O pai prefere que Osman seja engenheiro químico para que saiba tudo sobre petróleo e assim tenha um futuro melhor que ele. Porque, desde que um enorme oleoduto corroído derramou cerca de 500 mil litros desse combustível aqui, neste pedaço na selva úmida e montanhosa do Amazonas, a segunda região mais empobrecida do país, alguns adultos dizem que um mês limpando o petróleo do rio paga sete vezes mais que um mês cultivando a terra. Apesar de temerem estar envenenados.

É uma tarde chuvosa de junho de 2016, seis meses depois de ter mergulhado em um rio cheio de petróleo, e Osman Cuñachí, membro da nação indígena mais numerosa da floresta ao norte do Peru, faz uma careta e se sente esquisito ao ver o seu rosto em um enorme cartaz pendurado no muro da casa comunal. É o lugar onde os awajún discutem assuntos importantes sobre a vida da aldeia: eleger uma autoridade, construir um caminho, castigar um ladrão. O letreiro anuncia uma campanha de saúde, realizada pela Coordenadora Nacional de Direitos Humanos e outras ONGs, para avaliar 25 meninos e meninas que asseguram estar doentes por haver recolhido petróleo em troca de dinheiro. Na imagem, Osman, metro e meio de estatura, tem manchados de negro o rosto, os braços, os pés, a camiseta vermelha que leva em letras brancas a palavra “Peru”. O menino sorri enquanto carrega um balde sujo.

– Você saiu bem feio – zomba um amigo, de cabelos espetados, bola debaixo do braço, camiseta do Barça, e Osman esconde o rosto com as mãos.

A foto que o envergonha e os peruanos e a imprensa internacional comentariam com indignação foi tirada por uma vizinha com o seu celular no dia em que Nazareth deixou de ser a maior comunidade do estado de Bagua, com seus 4 mil habitantes, seu rio marrom e milhões de árvores altas rasgando o céu, para protagonizar “o pior desastre ecológico da última década”, como descreveram os jornais.

Trabalhadores, principalmente do grupo étnico Awajún, observam a área do vazamento em Chiriaco, Peru – Omar Lucas/Revista5w

Os engenheiros

Na tarde em que se manchou com petróleo, Osman Cuñachí praticava tiros livres com um amigo, quando dois engenheiros da Petroperú, a companhia estatal mais rentável do país, chegaram a Nazareth em uma caminhonete branca 4×4. Desde cedo um vapor ácido se expandia desde a margem do rio Chiriaco e se colava às cabanas de madeira como uma nuvem invisível de gasolina. Uma fissura de 11 centímetros em um trecho corroído do Oleoduto Norteperuano – uma serpente de cobre que transporta petróleo da floresta para a costa ao longo de mais de 800 quilômetros – havia derramado em uma ravina próxima petróleo suficiente para encher quase meia piscina olímpica. Nativos contratados pela Petroperú improvisaram uma barreira de troncos e lonas de plástico que conteve o óleo por alguns dias, mas ninguém calculou que a violência de uma tormenta durante a madrugada faria com que transbordasse rio abaixo, espalhando-se como um catarro negro que no caminho tragava insetos, raízes de árvores, canoas, cultivos de banana, cacau e amendoim. Os animais fugiam da corrente. As mães se lamentavam junto às suas chácaras arruinadas. Cadáveres de peixes flutuavam sobre a água escura. Catorze vazamentos de petróleo contaminaram a selva peruana em 2016 devido a essa cobra metálica que se dessangrava com regularidade. Nazareth era só o primeiro elo de uma cadeia de desastres.

No seu livro de ciências de sexta série, Osman Cuñachí havia lido que o petróleo é uma substância pré-histórica, feita do mesmo material que os fósseis de dinossauro. E, em algum episódio de Tom e Jerry, ele o havia visto brotar das profundidades da terra como um jorro negro e irrefreável que fazia saltar de alegria o sortudo que o encontrasse. Só soube recentemente que o petróleo valia dinheiro, na tarde do derramamento, quando os engenheiros da Petroperú chegaram em seu jipe para anunciar às famílias que pagariam a quem ajudasse a recolher o combustível do rio.

Se um agricultor de banana ganhava normalmente uns 20 soles diários – U$$ 6 –, agora, juntando petróleo em um balde, podia ganhar 150 soles, o dobro do salário de um médico da região Amazonas. Em uma zona onde sete em cada dez pessoas são pobres, onde não há água potável nem banheiros, onde as mulheres ficam doentes de anemia por desnutrição crônica, onde é mais frequente que uma criança menor de 5 anos morra de malária do que pela picada de uma cobra, onde ventanias frias e secas inesperadas tornam mais difícil encontrar terra fértil para cultivar, o valor oferecido pela Petroperú era mais do que qualquer awajún jamais tinha imaginado ganhar em uma semana.

Os engenheiros não avisaram que seria perigoso. Não deram trajes especiais nem disseram quem podia fazê-lo e quem não podia. Naquela tarde houve famílias que foram ao rio recolher todo o petróleo possível.

Quando Osman Cuñachí e seus três irmãos chegaram ao rio contaminado, viram crianças, mães grávidas, avós e meninos submersos na água ou montados em canoas juntando o petróleo em baldes e garrafas de plástico. O mesmo rio onde costumavam banhar-se e em cujas margens construíam castelos de barro, onde haviam aprendido a nadar e a pescar bagres e curimatãs agora emanava um odor metálico que lhes dava náuseas. Coçava a garganta. Os olhos choravam. Roycer, seu irmão de 4 anos, se rendeu primeiro. Depois Omar, o de 7, e Naith, sua irmã de 14. Submerso na corrente, Osman decidiu ficar até encher o seu balde, ignorando que esse líquido inflamável que grudava nas suas mãos é o que permite que as cidades funcionem.

Quase nunca prestamos atenção ao petróleo, exceto pelo cheiro acre que flutua nos postos de gasolina quando enchemos o tanque do carro. Mas o petróleo não é algo que possamos separar de nós mesmos ao sairmos de perto da bomba de gasolina e tapar o nariz. Graças ao petróleo e às indústrias derivadas, durante o último século construímos todo o nosso sistema de vida baseado em seu poder. Esquentar nossos prédios e fazer funcionar nossas máquinas e veículos – pensemos em uma fábrica de televisões ou no avião que tomamos para sair de férias – consome 84% do petróleo que se extrai anualmente no mundo. Os 16% restantes se transformam em insumos para fabricar milhões de coisas. Sem o ouro negro – e essa alquimia moderna chamada petroquímica –, seria impossível mascar um chiclete ou dirigir um carro, não existiriam as alpargatas, nem a pasta de dentes, nem o desodorante, nem as lentes de contato, nem as estradas asfaltadas, nem os pneus, nem a mala com rodinhas, nem os perfumes, nem o batom, nem os óculos de sol, nem o detergente, nem o enxaguante bucal, nem o creme hidratante, nem as próteses dentárias, nem as meias de náilon, nem as panelas de teflon, nem o gel de cabelo, nem o esmalte de unhas, nem o bloqueador solar, nem o guarda-chuva, nem o saco de lixo, nem as válvulas cardíacas, nem as aspirinas, nem os remédios para câncer, nem os fertilizantes agrícolas, nem os conservantes de alimentos, nem os copinhos de poliestireno, nem o lubrificante íntimo, nem as vitaminas em cápsulas, nem a fibra ótica, nem o cimento, nem a escova de dentes, nem o xampu, nem as cortinas de chuveiro, nem as mangueiras, nem os laptops, nem o papel fotográfico, nem o sabonete, nem a tinta de cabelos, nem as canetas, nem a tinta impressa nos livros, nem os aparelhos de raio X, nem as garrafas de água mineral, nem as flores artificiais, nem as toalhas de mesa, nem os tapetes, nem a cola, nem as perucas, nem os fósforos, nem os extintores, nem o colete salva-vidas, nem a dinamite, nem os cílios postiços, nem a tampa do vaso sanitário, nem os CDs de música, nem os fones de ouvido, nem as banheiras, nem os botões da camisa, nem o papel higiênico, nem os preservativos, nem quase tudo que é feito de plástico: desde peças de naves espaciais até uma Barbie; desde as bolas de futebol até qualquer dos quase 3 bilhões de smartphones que existem no mundo, como aquele que Osman Cuñachí, criança awajún, pensava em comprar com o dinheiro que os engenheiros da Petroperú haviam lhe prometido pelo seu balde de petróleo.

Era noite quando Osman e seus irmãos regressaram à sua casa de madeira. Ao vê-los, a mãe brigou com eles por terem saído sem permissão. Então correram para o pátio, onde as roupas são estendidas para secar e as galinhas cacarejam, e tentaram tirar o petróleo do corpo com água e sabão, mas não conseguiram. Usaram detergente e não funcionou. Esfregaram o rosto, os braços, as pernas com um esfregão e sabão em pó. Mas nada. Até que um primo, que também havia estado no rio, disse que se lavassem com gasolina de moto. Naquela noite, Osman não pôde dormir bem pela coceira e o ardor de tanto ter esfregado o corpo. Na manhã seguinte, os engenheiros da Petroperú voltaram a Nazareth no seu 4×4. O ar ainda fedia a gasolina. Uns 30 awajún esperavam com seus baldes cheios de petróleo ao lado da estrada. Haviam oferecido a eles 150 soles, US$ 46, por recipiente. Mas no final, apesar das reclamações das pessoas, os engenheiros só pagaram 20 soles, ou US$ 6. Osman se lembra de que um engenheiro perguntou a sua idade, anotou seu nome em uma caderneta e lhe deu 2 soles, sessenta centavos de dólar, como gorjeta pelo balde que ele tinha juntado: o recipiente, disse o engenheiro, tinha mais água que petróleo. Osman, cujo nome significa “aquele que é dócil como um pombo”, não protestou como as outras crianças. Quando voltou à sua casa, deu uma moeda para a sua mamãe e, com a outra, foi com amigos comprar uma Pepsi e uns biscoitinhos com desenhos de animais.

Virou notícia

E um dia, de repente, você é uma criança que vira notícia. Todo mundo se interessa por você, mas quase nada sabe sobre você.

Jornais, canais de TV e comitivas de ONGs viajam 26 horas por estrada desde Lima, cruzam os Andes, percorrem curvas vertiginosas e vales quentes ladeados por muralhas de vegetação até chegar a Nazareth, a comunidade indígena onde você nasceu. Querem conhecer você. Olham, perguntam: “Teve medo? Como mergulhou no rio? Onde está a sua roupa manchada de petróleo? Pode mostrar?”.

Parecem competir para ver quem conta algo mais terrível, sabendo que essas tragédias interessam sobretudo a quem não as viveu, a quem mora nas cidades viciadas em plástico, aliviado por não ser você. O menino manchado de petróleo.

– Meu papai diz que as pessoas só vêm aqui quando acontecem coisas ruins –, diz Osman Cuñachí enquanto olha a sua foto no cartaz da campanha de saúde na aldeia. – Eu quero que me vejam defendendo gols, não quero que tenham pena de mim.

Os irmãos Cuñachí – Osman, Omar e Segundo – trabalharam para a Petroperú coletando petróleo bruto sem qualquer proteção – Omar Lucas/Revista5w

Às seis da tarde o céu sobre Nazareth se aproxima do púrpura mais escuro. Dizer que chove seria pouca coisa: a chuva aqui acontece como jatos de água irrefreáveis que, misturados com trovões, estremecem os jambos. Na casa comunal, gotas grossas se filtram pelo teto de chapa metálica e formam pequenas poças no chão. Por um defeito no gerador, não há luz elétrica, mas nessa penumbra o médico Fernando Osores, um quarentão alto e robusto, força a vista: recolhe amostras de sangue e urina e corta mechas do cabelo de 25 meninos e meninas awajún, de 6 a 15 anos, que recolheram petróleo no rio.

Enquanto os pais assinam autorizações, seus filhos passam, um a um, a uma barraca de campanha levantada dentro da casa. O médico de Lima recolhe as amostras que logo enviará ao laboratório do Instituto Nacional de Saúde Pública do Quebec, no Canadá, onde serão analisadas. De acordo com as leis de saúde, médicos do Estado peruano deveriam ter feito esse trabalho no dia seguinte ao vazamento. Já se passaram seis meses – em breve passará um ano e mais outro – e nada. “Com certeza estão muito ocupados”, me diz o médico Osores, que dá um sorriso fingido. Logo um menininho esquálido foge do consultório, horrorizado pelas agulhas. Seu pai grita algo em awajún e sai correndo atrás dele. O médico, empapado em suor, pede que alguém ilumine com a lanterna de um celular para que ele possa continuar o trabalho.

Osman Cuñachí não é do tipo de menino que espera sentado. Quando a chuva para, aguarda a sua vez junto aos amigos e seu cachorro negro, Lucky, em um descampado de terra caçando escorpiões e outros bichos, que logo queimará vivos com um fósforo. A alguns metros dali, Jaime Cuñachí, pai de Osman, de 66 anos, passa o dia sentado em um banco de madeira, tecendo uma rede de pesca. Um chapéu cinza cobre a calvície. Suas calças verdes curtas deixam ver um toco onde antes havia a perna direita. Faz dois anos que a amputaram por uma gangrena agravada pela diabete, uma doença frequente entre os awajún e difícil de tratar devido à dieta pobre e à falta de remédios.

– Não tenho perna, mas sim uma boa memória – ri o senhor Cuñachí, antigo chefe de Nazareth, com os poucos dentes que lhe sobram, enquanto espanta os mosquitos do rosto com um trapo.

Diz que o campo de futebol onde agora o filho está brincando é um antigo cemitério de máquinas e tubos usados no final dos anos 1960 para construir o Oleoduto Norteperuano, umas das maiores obras de engenharia da história do Peru. A ditadura militar do general Juan Velasco Alvarado investiu cerca de US$ 1 bilhão e o trabalho de 2 mil homens no projeto que levaria o Peru ao Primeiro Mundo, essa promessa de sempre.

Em Nazareth, alguns anciãos awajún já conheciam o petróleo de tempos passados. Respeitados pelo seu caráter guerreiro – os primeiros cronistas os chamavam de jíbaros “redutores de cabeças” –, foram uma de tantas nações amazônicas que nem os incas nem os soldados espanhóis puderam conquistar. Permaneceram isolados durante centenas de anos até que, em meados do século 20, as indústrias extrativas e os apach muun, homens brancos, chegaram com máquinas gigantes para perfurar o subsolo.

O senhor Cuñachí era um menino que não sabia castelhano quando chegou o oleoduto por ali. Nazareth era então um punhado de cabanas de madeira e folhas espalhadas entre a floresta e um rio marrom que se precipitava por um leito de pedras lisas e enormes. Os awajún vestiam túnicas marrons de algodão e colares de sementes. Pintavam o rosto com a tinta vermelha das sementes de urucum. Tomavam ayahuasca para comunicar-se com os espíritos da selva. A gente dos Andes, desde séculos atrás, os chamava “aguarunas”: do quéchua awajruna, “homem que tece”. Mas eles, no seu idioma, sempre se definiram como liaénts: “os verdadeiros homens”.

“Eu me banhei no rio Chiriaco e tudo bem”

Um dia uns engenheiros chegaram com suas famílias e levantaram um acampamento para construir um trecho do oleoduto. O senhor Cuñachí costumava caçoar dos forasteiros com os seus filhos: as crianças brancas. Trocava mamões por carrinhos de plástico, zarabatanas de caça por estilingues de borracha. Aprendia castelhano. Quando a construção do oleoduto começou, helicópteros militares vinham todos os dias carregando enormes tubulações. Enquanto os adultos abriam trilhas a facão para dar passagem às máquinas, as crianças awajún corriam e brincavam de esconde-esconde dentro das tubulações ainda por instalar.

Quando as obras terminaram, a empresa estadunidense Williams, a cargo da construção, decidiu sepultar todo o material restante debaixo do campo de futebol onde agora brincam Osman e os amigos, pois ficava mais barato enterrá-lo do que transportá-lo. Um dia os engenheiros se foram. Então, um grupo de famílias deixou o monte para assentar-se no acampamento abandonado, repleto de formigas negras que devoravam ratos e afugentavam as cobras. Ali fundaram a sua primeira escola.

Logo chegariam a estrada, a luz elétrica, a televisão a cabo, o posto médico e centenas de indígenas e forasteiros atraídos pela aparente prosperidade.

Quase meio século depois, Nazareth é uma aldeia de pescadores, agricultores, pequenos comerciantes e mototaxistas que fazem a sua vida ao redor do rio Chiriaco. Agora mesmo, como qualquer criança awajún, Osman Cuñachí poderia estar pescando ou banhando-se ali. Mas não deve. Desde o vazamento, as autoridades ambientais proibiram essa atividade pela quantidade de chumbo e cádmio que há nas águas e nos peixes. O chumbo é um veneno que, mesmo em níveis baixos de exposição, pode afetar o desenvolvimento do cérebro das crianças e causar anemia, hipertensão e efeitos irreversíveis no sistema nervoso central. O cádmio pode danificar os rins, ossos e pulmões e causar câncer.

Os awajún dizem que esses metais tóxicos provêm do petróleo. A Petroperú diz que o petróleo tem quantidades ridículas desses metais. Germán Velásquez, comandante aposentado da Polícia Nacional, assessor de empresas e por esses dias presidente da companhia, assegura que os metais são provenientes do esgoto e do lixo – garrafas de plástico, fraldas descartáveis sujas, baterias usadas, óleo de motor – que os povos próximos jogam nas margens do rio Chiriaco.

– Se alguém ali tem a opção de receber algum tipo de indenização econômica, dirá que o petróleo lhes faz chorar – me disse Velásquez, um cinquentão grisalho, numa tarde em um café de Lima, enquanto acomodava meio sorriso abaixo dos seus óculos tartaruga. – Eu investiguei: para que o petróleo contamine, você teria que ter estado metido em um barril por três ou quatro dias. Eu me banhei no rio Chiriaco e tudo bem.

A versão oficial, a empresarial, é otimista. A da ciência não.

– Quem disser que o petróleo é inofensivo mente – me diria semanas depois o médico Fernando Osores, enquanto descansava, depois de atender durante dez horas seguidas meninos e meninas das comunidades afetadas.

Osores é especialista em toxicologia ambiental e doenças tropicais. Há 20 anos trata casos de contaminação causada por minas e empresas de gás e petróleo no Peru. Quando ocorre um vazamento – explica –, milhões de moléculas de hidrocarbonetos evaporam e se expandem rapidamente como gases venenosos. Basta que alguém as respire durante uns minutos para ter dor de cabeça, tontura ou dor no abdômen. Se alguém se expõe ao petróleo sem proteção durante dias, é ainda pior: aparecem alergias na pele, irritação na garganta, dificuldades para respirar. O petróleo é uma mistura complexa de centenas de hidrocarbonetos. Alguns deles, como o benzeno e o xileno, podem danificar o sistema nervoso e, com o passar dos anos, causar câncer. O petróleo derramado na correnteza de um rio é outro problema. Ele se divide em gotas minúsculas que se misturam com partículas de barro e se sedimentam no leito do rio. Assim começa a reação em cadeia: as partículas contaminadas alimentam as bactérias; as bactérias contaminam minúsculos organismos aquáticos chamados plânctons; os plânctons, os peixes; os peixes, os humanos. Quando passa o tempo, a contaminação pelo petróleo é imperceptível à vista. Não tem forma, nem cheiro, nem som. É incorpórea como átomos invisíveis. Os nossos sentidos não servem para perceber o dano.

O médico Osores pode resumir tudo em uma frase:

– Estamos diante de um desastre químico.

“Esterco do demônio”

Os últimos 150 anos de consumo global de petróleo são apenas o presente e o passado imediato de um vínculo tão antigo como os mitos pré-hispânicos. O petróleo – do latim petroleum, óleo de pedra – foi descoberto e aproveitado em muitas épocas e lugares com fins práticos, festivos, religiosos ou mágicos. Na América, a substância teve pelo menos dois nomes com genealogia registrada. Os astecas o chamaram choppotli. O segundo nome nasceu dos poços de breu, um petróleo viscoso, que existiam na costa norte do Peru. Os antigos peruanos chamavam copé essas poças fedidas e perdidas nos confins do deserto, cuja origem remontava a uma era ainda mais antiga, a idade dos gigantes, personagens que, segundo as lendas, haviam escavado esses poços inexplicáveis.

O historiador Pablo Macera destacou essa visão supersticiosa do petróleo: substância misteriosa, desconhecida, quiçá por isso maligna. Era chamada de “esterco do demônio”.

Hoje, vários séculos e guerras e avanços científicos depois, nossa dependência do petróleo alcança uma dimensão tão escandalosa que se tornou um tema de debate frequente entre políticos e ambientalistas. Em 2007, durante o Congresso Mundial de Energia, se anunciou que a Terra armazenava reservas de petróleo para mais um ou dois séculos. “O mundo não tem que se preocupar por muito tempo com o fim do petróleo”, assegurou Abdallah S. Jumah, então presidente da Saudi Aramco, companhia petrolífera estatal saudita, a maior do planeta.

Apesar de toda essa confiança empresarial, a Agência Internacional de Energia, que monitora as reservas energéticas da Terra, prognosticou que o mundo necessitará do equivalente às reservas petrolíferas de seis Arábias Sauditas para cobrir a demanda até 2030. Fatih Birol, especialista em energia e diretor executivo da agência, implora: “Devemos abandonar o petróleo antes que ele nos abandone”.

O Peru foi pioneiro na América Latina em explorar o ouro negro comercialmente. Em 1924, quando a Venezuela debutava como nação petroleira, o Peru já era líder na região. Quase um século depois, a Venezuela produz 1 milhão e meio de barris diários, informa a Organização de Países Exportadores de Petróleo. O Peru gera quase 3% dessa quantidade. O sonho nacionalista de ser uma potência petrolífera acabou em fiasco: hoje o Oleoduto Norteperuano funciona com 10% de sua capacidade. O petróleo disponível – que se extrai da Amazônia peruana onde vivem os awajún e outras etnias, e que é mais denso e caro de refinar do que o do Oriente Médio – se esgota, mas a população aumenta e, com ela, o consumo de combustível. O Peru está entre os 20 países “mais viciados” em petróleo, segundo a publicação Relatório Estatístico da Energia Mundial, publicada pela British Petroleum. E é o quarto país de América mais vulnerável aos danos causados pelo aquecimento global e o uso de combustíveis fósseis. Com o petróleo ocorre o mesmo que com a indústria da carne: os países ricos ganham muito mais por consumi-lo do que os países pobres por produzi-lo.

É uma necessária obviedade dizer que a multimilionária indústria do petróleo é uma das mais sujas que existem. Mas que a sua energia tenha substituído a tração humana e animal é uma melhora extraordinária, um dos grandes inventos deste mundo. Os cientistas, no entanto, insistem: se, para a segunda metade do século 21, os países não mudarem suas fontes de energia para outras menos destrutivas para o planeta, é muito provável que a natureza e o sistema econômico atual colapsem.

A razão vai além do tema ecológico e está condicionada pela força da realidade: o petróleo que nos sustenta acabará e não poderemos evitar.

Os amigos não queriam brincar com ele

Osman Cuñachí entende pouco de política ambiental e nunca escutou o senhor Birol, mas sabe como é difícil tirar o petróleo do corpo quando se fica manchado com ele. Pouco depois de ter recolhido o óleo e arrancá-lo da pele com gasolina de motocicleta, Osman desmaiou enquanto marchava em um desfile escolar. Sua professora contou aos pais que o menino estava deitado na carteira e dormindo na aula. Durante dias ele vinha sentindo intensas dores de cabeça e enjoos. Tinha irritações nos braços e nas pernas, e não parava de se coçar. Por esses dias tinha viralizado nas redes sociais a sua foto. “O pior desastre ecológico da última década”, diziam. A Petroperú lamentava o ocorrido, mas negava ter contratado crianças para esse trabalho. Mas a foto de Osman era uma prova que afundava a empresa no escândalo.

Um dia, dois engenheiros dessa companhia foram buscá-lo em casa. Com autorização do senhor Cuñachí e acompanhado pela tia, levaram Osman a uma clínica privada de Piura, região da costa norte do país, sede da principal refinaria da Petroperú. Analisaram seu sangue. Tiraram radiografias. Levaram-no para passear pela praça. Para comer frango na brasa. Hospedaram-no em um hotel que tinha um computador no qual ele podia jogar Zumbis vs. Plantas, um de seus games favoritos. Uma semana e meia depois, ele voltou para casa com umas vitaminas, umas cartelas de paracetamol, um unguento para a erupção cutânea e um certificado de saúde. O menino, dizia o médico, só tinha anemia.

De volta a Nazareth, Osman procurou os amigos, mas não queriam mais brincar com ele.

– Por que a empresa só atende você? – um reclamou. – Nós também recolhemos petróleo e ninguém vem nos buscar. Com certeza te deram dinheiro.

Osman esteve triste por vários dias. Até que Yolanda, sua mãe, lhe deu umas moedas e ele comprou doces para os amigos. Assim se reconciliaram.

Yolanda Yampis tem uns 30 anos, o cabelo negro longo até a cintura, e sorri toda vez que fala, como se estivesse com vergonha. Como a maioria dos awajún, Yolanda tem uma risada aguda, rítmica, contagiante – jijijijiiiii –, como se cantasse ou imitasse o canto de uma ave desconhecida. Ela conta que, durante os dias seguintes ao vazamento, vários adultos de Nazareth e de outras comunidades próximas abandonaram suas chácaras para trabalhar para a Petroperú.

Yolanda também trabalhou. O ano escolar estava por começar e ela necessitava do dinheiro. Depois de a terem contratado, os engenheiros da Petroperú a vestiram como nos filmes de catástrofes radioativas: um macacão branco de plástico, um capacete laranja, óculos protetores, botas de borracha, luvas e uma máscara dessas que os enfermeiros usam, mas que não evitava que respirasse os gases tóxicos que emanavam do petróleo. Durante um mês, junto a dezenas de homens e mulheres, Yolanda escavou com uma pá a terra contaminada. Arrancou os restos da vegetação manchada de petróleo e guardou em sacos. Assim ela ganhou quase 4 mil soles, US$ 1.500, dez vezes a aposentadoria que recebe o marido. Com o dinheiro comprou uma geladeira para vender refrigerantes e cervejas, material escolar para os quatro filhos, um tronco de árvore para construir mais um quarto na sua casa e pagou peões para colher a banana da sua chácara, de quase meio hectare.

– Mas o dinheiro termina – me disse ela, a voz fininha, o castelhano com sotaque.

Yolanda estava de pé na casa comunal junto com outros pais, com os braços cruzados. O riso de antes tinha virado um gesto duro de lábios apertados. Observava nervosa o médico Osores, na penumbra, que tirava amostras de sangue de Osman, o segundo dos seus filhos.

– O derramamento me deu oportunidade, mas para quê, se ao final você fica contaminada? Talvez meus filhos estejam doentes. Talvez eu também. Nós não sabemos.

Por juntar petróleo em um balde, diz a mãe, Osman Cuñachí tem irritações nas pernas e nos braços. Seu irmão Omar, o terceiro de quatro, tem dores de cabeça e diarreia. Assim como eles, várias crianças de Nazareth começaram a sentir mal-estar depois de terem recolhido petróleo do rio. Em uma assembleia convocada uma semana depois do vazamento, a comunidade enviou um comunicado ao então presidente Ollanta Humala e ao ministro da Saúde reclamando atenção imediata. Incluía uma lista com os nomes das crianças que se encontravam doentes depois de terem recolhido petróleo. Somente nesta comunidade eram mais de 50. A Petroperú doou toneladas de víveres e água engarrafada e começou campanhas de saúde para atendê-los. No entanto, até janeiro 2017, um ano depois do vazamento, ninguém neste pedaço de floresta tinha um certificado médico do Estado que provasse se tinha sido contaminado ou não pelo contato com petróleo. O governo nunca foi até Nazareth ou às outras comunidades afetadas para examinar rigorosamente a saúde das famílias.

– Parece que as autoridades estão esperando que passem dez, 20 anos, até que as pessoas morram, para vir averiguar o que aconteceu de fato – me disse o médico Osores enquanto fechava em caixas com gelo seco as amostras de cabelo, sangue e urina a serem enviadas de avião a um laboratório no Canadá naquela mesma noite.

Essas provas seriam a primeira tentativa de averiguar o nível de contaminação dos meninos de Nazareth. Porém, com o passar dos meses, o petróleo derramado afetaria não só a saúde das pessoas, mas também os pensamentos de alguns. Sobretudo desde quando, para além de espalhar temor, o desastre lhes ofereceu a possibilidade de ganhar algum dinheiro.

“Um salário que nunca na vida vão encontrar”

Um homem awajún sem o braço esquerdo vigia o acampamento da Petroperú, próximo à ravina onde ocorreu o vazamento. Se trata de uma fila de barracas azuis e verdes plantadas ao lado de uma estrada asfaltada que leva até o centro de Chiriaco, o maior povoado da região, a dez minutos de Nazareth em mototáxi. Dentro das barracas há operários consultando mapas, algumas engenheiras analisando arquivos de Excel nos seus laptops, uma médica novinha muito maquiada e entediada morrendo de calor diante de dois ventiladores elétricos a toda velocidade. Essa é a equipe que planeja a limpeza do vazamento. A maioria é de Lima ou de outras cidades da costa.

Na entrada, um enorme letreiro vermelho com letras brancas, garrafais, adverte:

PROIBIDA A CONTRATAÇÃO DE MENORES DE IDADE

É uma medida da companhia, explicam, para evitar “o falatório na imprensa”.

– Aqui na Petroperú nós fazemos as coisas direito.

O engenheiro da Petroperú que supervisiona a limpeza do derramamento em Chiriaco é um cinquentão de nariz afilado e fala eloquente, que me lembra a cada 20 minutos de não mencionar seu nome nessa história porque tem medo de perder o emprego. Viajamos em uma furgoneta cheia de sacos de arroz, feijão, latas de atum e garrafas de água. São doações da empresa para algumas escolas de dez comunidades que, antes, se abasteciam das águas do rio agora contaminado.

É uma manhã calorenta que provoca uma preguiça úmida, agoniante. O engenheiro anônimo me conta que fizeram todo o possível para deixar tudo como era antes e que os trabalhos de limpeza estão para terminar.

– Demos trabalho a mais de 800 pessoas, com um salário que nunca na sua vida vão encontrar.

Sentada ao meu lado, Yesenia Gonzales, a assistente do engenheiro, diz que é verdade e me conta tudo o que conseguiu trabalhando para a Petroperú. Yesenia vive em Chiriaco, mas nasceu em Piúra, cidade da costa norte do Peru, de onde vieram homens e mulheres nas últimas décadas para trabalhar nas roças e nos comércios da selva peruana. Ela tem 24 anos, o corpo esbelto por causa do trabalho físico e um rosto no qual brilham dois olhos negros e vigilantes.

Quando ocorreu o derramamento, Yesenia vivia em um quartinho alugado com o marido pedreiro e as duas filhas. Trabalhava em um carrinho de sucos e ganhava 20 soles, US$ 3, por 12 horas de trabalho. Uma tarde, uma amiga avisou que a Petroperú estava contratando operários para limpar o vazamento. Durante dez dias, ela e o marido se levantaram de madrugada para ir ao acampamento onde meia centena de pessoas, entre nativos e forasteiros, esperavam uma oportunidade.

Já faz três meses que ela está trabalhando na empresa e já fez de tudo: recolheu petróleo submersa no rio, carregou sacos com terra contaminada, limpou pedra por pedra com jatos de água a pressão. Às vezes, por curiosidade, colhia um pouco de petróleo entre os dedos: observava sua cor estranha, sentia a sua viscosidade, como a de um chiclete negro derretido pelo sol. Para cada dia de trabalho, das sete da manhã até as seis da tarde, ganhou 150 soles, US$ 46, e o dobro aos domingos. Yesenia ganha mais que um professor da região.

– Ninguém paga assim aqui – diz, abrindo os olhos. – Eu estou muito agradecida à Petroperú porque trabalhando no petróleo consegui ganhar meu dinheiro.

Tesouro nas entranhas

Não foi a primeira vez que essa ideia do petróleo como um generoso barril sem fundo aparecia nesta região. O entusiasmo de Yesenia lembra outro entusiasmo mais antigo: de quando se imaginava a selva peruana como o espaço onde a promessa de prosperidade se cumpriria graças ao recurso que escondia nas entranhas.

Na primeira vez que se explorou um poço de petróleo na Amazônia peruana, em 17 de novembro de 1971, a capa do El Comercio – o principal jornal do país, na época expropriado pelo governo militar – anunciava:

“Banharam-se em petróleo”

500 operários que trabalham na região Trompeteros [na floresta de Loreto, norte do Peru] com equipamentos pertencentes à empresa petroleira do Estado, cantaram, dançaram e se banharam com petróleo, arrebatados pela alegria de haver realizado (às 7h15 da manhã, precisamente) uma descoberta de importância transcendental para a economia do nosso país. Durante toda a manhã houve uma grande festa em Trompeteros […]. A par do sucesso, o presidente da República, general da Divisão EP Juan Velasco Alvarado, expressou telefonicamente suas felicitações a quem havia tornado possível o referido jorro petrolífero.

Em um surto de confiança, o presidente da Petroperú de então, Marco Fernández Baca, general do regime, jurava: “O futuro econômico do Peru está garantido”.

Desde a metade do século 20, com o auge sangrento da borracha, a selva peruana nunca havia sido tão cobiçada. As sociedades amazônicas sempre haviam produzido tudo o que necessitavam: caçavam, pescavam, coletavam, faziam a terra germinar. Não dependiam do exterior para seu sustento. Nem podiam ter acesso a produtos que não produziam. Anos mais tarde, a corrida do petróleo e a construção do Oleoduto Norteperuano causaram uma enorme demanda por mão de obra. Com os salários das empresas, os índios compravam rádios, espingardas, remédios. Não eram poucos os que gastavam tudo com cerveja e prostitutas. Comunidades nativas inteiras deixaram de ser autossuficientes para depender do dinheiro ganho das companhias de petróleo. Mudaram-se para as cidades, para os acampamentos de trabalhadores em busca de um futuro melhor. Alguns esqueceram sua língua e seus costumes. Na cidade, acreditaram, poderiam ser alguém.

Quatro décadas depois dessa explosão petroleira, enquanto caminhamos nas ruas encharcadas de Chiriaco, se escutam os sons de um povoado em movimento. Motores de ônibus buscando passageiros. Vozes de garotas com jeans justos vendendo comida na rua. Discos piratas de reggaeton tocando em barracas de camelô, na TV a cabo. Louvores à porta de uma igreja evangélica. Golpes secos de trabalhadores sem camisa partindo pedras para construir uma casa. Bebês chorando nos braços das mães enquanto fazem fila fora de um banco. Autofalantes anunciando a cada dez minutos: “Precisa-se de duas pessoas para descarregar um caminhão. Apresentar-se à loja Rosita”. Desde o dia do vazamento, Chiriaco se parece com qualquer bairro popular de Lima: cada vez mais barulhento, cada vez mais cheio de cimento. “Trabalhar no petróleo” duplicou o número de mototáxis, lojas e barracas de comida. Encheu de clientes as lanchonetes, pensões e puteiros. Há trabalhadores que, enquanto bebem cerveja em um bar, brincam com a ideia de “fazer um furo no oleoduto” para que o emprego não acabe. O trabalho que centenas de nativos e camponeses conseguiram aqui limpando o petróleo pôs dinheiro nos bolsos de todos. Ou quase.

Yesenia Gonzales conta que vários de seus amigos trabalharam recolhendo petróleo e resolveram seus problemas. Um deles operou a vista. Uma amiga levou a filha a Lima para operar o coração. Outra, mãe solteira, comprou um apartamento em Chiclayo, uma das cidades mais povoadas da costa, famosa por suas praias de cartão-postal.

– Apesar dos danos, tem gente que se sente feliz pelo que passou.

Alguém poderia pensar que é oportunismo.

Um economista diria “externalidade positiva”.

Mas não, me diz Gonzales: é sobreviver.

Ao meio-dia o calor esmaga tudo neste pedaço da floresta amazônica. A furgoneta da Petroperú na qual percorremos o povoado faz sua última entrega de víveres. Estacionamos às margens do rio, em frente à comunidade awajún de Wachapea, uma das dez que o Estado apontou como afetadas pelo derramamento. Para a limpeza, além da coleta manual e extração com motobombas, os operários usam um produto biodegradável chamado Orange – pelo cheiro que tem da fruta – que faz com que o petróleo restante se dissolva sobre a superfície do rio, aparentemente. O engenheiro anônimo me diz que por isso toda esta zona que vemos já está limpa, que quiçá há “ligeiras manchas inofensivas, como se uma gota de óleo caísse em todo o rio”.

Na margem do rio Chiriaco, uma mulher branca e grisalha nos recebe com um crucifixo de madeira no peito. É Rosa Villar, diretora do colégio Fe y Alegría 62 San José, um internato para meninas mestiças e filhas de famílias awajún. Ela pergunta se suas alunas já podem se banhar e brincar no rio.

– É que algumas tomam banho de qualquer jeito – diz a religiosa. – Imagine, são mais de 500 jovenzinhas. Depois do almoço, lá vão. O rio é o seu mundo.

– Isso eu não posso dizer, você já sabe – responde o engenheiro.

– Há algum tempo, eu teria mergulhado 40 vezes no rio! Agora, se ainda há partículas de petróleo nas raízes das árvores, que mais eu posso fazer? Virar a ravina de ponta-cabeça?

A religiosa, preocupada, contorce a boca. Não diz nada. O engenheiro tenta convencê-la com boas intenções corporativas. Mas não tem dinheiro que conserte um ecossistema ferido de um dia para o outro. Seria necessário esperar décadas e décadas, segundo especialistas, para um vale contaminado por um vazamento se recuperar naturalmente. Seria necessário esperar para saber como e quanto a saúde das pessoas seria afetada no futuro. Esperar e esperar. Só que a vida humana é mais curta.

Dez anos de salário em quatro meses

Depois da entrega de víveres, regressamos por uma avenida de terra até o acampamento da Petroperú. Yesenia Gonzales, a assistente do engenheiro, aponta uma casa enorme de cimento e telhado de duas águas.

– Olha, essa é a minha casa! As pessoas me dizem que, se aos 24 anos já tenho casa própria, mais para a frente o que não vou ter!

Em quatro meses de trabalho na Petroperú, Yesenia e o marido construíram a sua casa. Receberam juntos cerca de 30 mil soles, cerca de US$ 9 mil. Para ganhar o mesmo no carrinho de sucos no mercado, ela teria que trabalhar dez anos seguidos e guardar cada centavo. Com o salário do petróleo pagaram também as dívidas, compraram uma tevê de tela plana, um som, um congelador, um mototáxi. Compraram bonecas e scooters para as duas filhas. Agora ela tem sua própria barraquinha de suco.

Quando a visitei, me contou que um amigo de seu marido acabava de avisar de um derramamento em outra área do Oleoduto Norperuano que cruza a ravina de Uchichiangos, outra comunidade awajún a duas horas de distância. Um relatório da Organização de Avaliação e Fiscalização Ambiental, encarregada de investigar a causa do vazamento, avaliou que havia sido provocado “por terceiros”, com um corte de motosserra. Yesenia pensava que, como já tinha experiência, podia conseguir trabalho ali e assim economizar para terminar o quintal da casa.

– As pessoas me dizem: “Não vá até o petróleo, ali você vai morrer. Esperem quatro ou cinco anos e verão, vão morrer!” – me disse Yesenia com seu sorriso tímido. – Eu os escuto, mas não tenho medo. Ao contrário, estou contente. Olhe para mim, estou sadia, nada dói! E agora tenho tudo o que sempre sonhei.

Terra arrasada

Edith Guerrero, amante dos bambus e professora de nutrição, diz que jamais esquecerá da vez que um engenheiro da Petroperú tentou convencê-la de que o petróleo era bom para sua plantação.

Ela está de pé debaixo da chuva, sobre a desembocadura da ravina Inayo, onde o petróleo manchou o Chiriaco, o rio dos Awajún. Até o dia do derramamento, Edith tinha aqui 800 pés de bambu, vacas pastando, ameixeiras e altos louros, e um riacho limpo onde os awajún também pescavam. Mas quatro meses após o acidente seu sítio de 40 hectares parecia ter sido arrasado por uma dúzia de escavadeiras. As árvores mais altas foram cortadas pelos trabalhadores para fazer pontes. Todas as mudas de bambu foram arrancadas durante o processo de limpeza do solo. Seu plano para plantar arroz foi arruinado. Ele teve que levar suas vacas para outras pastagens vizinhas. A água da ravina, que costumava irrigar e dar de beber ao seu gado, está contaminada. Vista do céu, a ravina se estende como uma cicatriz profunda e oleosa em meio aos seus domínios.

– Os nativos não são os únicos afetados – reclama a agricultora de pernas longas e olhos saltados, nascida na serra de Cajamarca, enquanto caminhamos pelo barro. – A chuva transformou o terreno nu em um enorme charco laranja, onde as botas afundam, atolam. Os trabalhadores arrancaram meus bambus sem permissão. Me diziam: “Não se preocupe, senhora, a Petroperú vai pagar”.

Edith conta que, apesar das suas reclamações, e diferentemente de outros agricultores que foram indenizados, a empresa até este momento não reconheceu o seu prejuízo.

Um dia de fevereiro, uma semana depois de o petróleo derramado ter arruinado sua chácara, Edith foi ao acampamento da Petroperú pedir explicações. Mas a engenheira que a atendeu disse não saber de nada.

– Também não sabe onde estão recolhendo o petróleo? – preguntou Edith com ironia.

– Na ravina – respondeu a engenheira. – E a ravina é do Estado.

Edith engoliu a raiva. Saiu do acampamento e subiu na sua motocicleta. Ao chegar ao seu terreno, gritou com todos os trabalhadores da empresa. No dia seguinte, regressou muito cedo com o marido. Fecharam o caminho com arames farpados. Quando os trabalhadores chegaram, Edith os esperava com um pau e galhos de urtiga, longos como chicotes. Depois de uma semana, um engenheiro da Petroperú a visitou. Ela insistiu que ele assinasse um documento no qual a empresa prometeu pagar todas as despesas, embora não especificasse valor ou data.

Agora, sobre o terreno cheio de poças, há 800 cilindros com o óleo recolhido da ravina, cobertos com lonas de plástico azul. Alguns homens com botas de borracha e capacetes laranja vêm e vão recolhendo o pouco que ainda restou do petróleo. Há uma pilha de sacos de terra e mato contaminado. Umas barreiras amarelas de plástico atravessam o canal e retêm os restos do petróleo: são como películas de azeite na superfície da água.

Edith se lembra de que, quando as autoridades ambientais chegaram para ver o dano, recolheram amostras do solo contaminado com luvas especiais. Usaram máscaras porque diziam que o cheiro era tóxico. Não era a primeira vez que enfrentavam um caso assim. Entre 2011 e 2018, os últimos sete anos de vida do oleoduto, houve 61 vazamentos de petróleo e outros hidrocarbonetos: cerca de 60% deles causados por corrosão ou falhas operativas e 40% por sabotagens. Só em 2016, contando o desastre de Nazareth, ocorreram 14, segundo o Organismo de Avaliação e Fiscalização Ambiental. Naquele ano, o ministro do Meio Ambiente, Manuel Pulgar Vidal, denunciou que a Petroperú continuava bombeando petróleo quando estava proibido que fizesse isso, enquanto fazia manutenção do sistema. “O oleoduto está obsoleto”, criticou o ministro na televisão. Dias depois, o presidente da Petroperú apresentaria sua renúncia e um balanço amável da sua gestão: a empresa havia faturado US$ 5 bilhões no ano dos vazamentos. No informe, não havia uma só linha sobre a catástrofe ambiental.

Segundo os peritos da agência estatal que fiscaliza o oleoduto, este não recebe manutenção integral e adequada desde 1998. A empresa diz que isso se deve a “políticas de austeridade”, que não convém mudar todo o duto porque seria muito caro. Em um cenário turvo e fedorento como o do petróleo, não é despropositado pensar que vá ocorrer outro derramamento.

Naquela vez que fui visitá-la, Edith me contou que a Petroperú havia ligado para negociar com ela. A empresa necessitava construir uma estrada que atravessaria a sua chácara para tirar os 800 barris que estão armazenados ali. Os nativos de Yangunga, a comunidade awajún localizada na frente de suas terras, na outra margem do rio, tentaram convencê-la: construir a estrada lhes traria emprego, poderiam colocar um ponto de mototáxis e inclusive transportar mais rápido suas bananas para vender na cidade. Mas Edith lhes disse que não ia permitir que a estrada passasse pelas suas terras se a Petroperú não pagasse 70 mil soles, mais de US$ 21 mil, que é o que ela está pedindo pelo que perdeu.

– Do contrário, sou capaz de atirar os barris no rio, para ver se assim eles entendem, esses sem-vergonha!

– E o que o último engenheiro que veio te buscar falou? – perguntei.

– “Não sabe, senhora, que o petróleo é fertilizante para o seu arroz?”

Inauguração de banheiros

Enfeitado com um colar de sementes e o rosto pintado com linhas vermelhas, Tatsuya Kabutan, embaixador do Japão no Peru, segue o ritmo dos tambores com lerdeza. Cercado por mulheres e crianças awajún com saias e coroas de penas, o sr. Kabutan – empertigado e arrumadíssimo, de camisa branca e calça preta – acaba de chegar a Epemimu, uma região montanhosa da comunidade de Nazareth, na outra margem do Chiriaco.

Nesta manhã de julho, sete meses depois do vazamento, a ira do sol não impede que seja um dia de festa: a rua de terra está adornada com flores alaranjadas, folhas de palmeiras, globos brancos e vermelhos por causa do mês patriótico, em que o Peru celebra sua independência da Espanha. Cerca de cem pessoas – moradores, funcionários, policiais – acompanham o sr. Kabutan e Francisco Dumler, ministro de Habitação, até um pequeno palco para inaugurar uma obra que suas instituições construíram em equipe: mais de cem banheiros com privadas novinhas, chuveiros e uma rede de canos que transportariam a água de um córrego para cada uma das 180 famílias que moram aqui. A comparação com a cidade era inevitável: os nativos não teriam mais que andar longas distâncias para coletar água em baldes ou garrafas de plástico. Agora bastava abrir o cano para beber água, lavar roupa ou tomar banho.

– No começo deste governo, apenas um em cada três peruanos em comunidades indígenas ou áreas rurais tinha acesso a água potável – informa de cima do palco o ministro Dumler, robusto, com um rosto largo e um bigode bem cuidado. Sua voz retumba por alguns autofalantes. – Agora acabaremos o ano com dois em cada três!

Palmas e mais palmas. Minutos depois, baixam para cortar uma faixa rubro-branca, o ato de inauguração. Depois, ao lado de algumas crianças, o ministro bebe água potável do novo encanamento. “Está deliciosa”, diz. O embaixador Kabutan, ao seu lado, seca o suor do rosto com um lenço. Olha para o ministro, mas não se anima a beber. Sorri, isso sim, para a foto oficial. Palmas e mais palmas, por favor.

Quando o evento termina, pergunto ao ministro sobre o rio contaminado, se ele sabe quando poderá ser usado de novo. “Deixe eu conversar com o ministro da Saúde, vou fazer chegar a ele essa preocupação”, responde de passagem, e um de seus guarda-costas o leva ao seu jipe, onde o espera o sr. Kabutan. A assessora de imprensa – com o cabelo tingido de loiro, óculos de sol, botas negras – marca meus dados no seu iPhone com uma capa da Starbucks. Antes de ir, promete enviar a resposta do seu chefe por WhatsApp. Nunca chegou.

A enfermeira Janet Tuyas, que observava o ato do outro lado da rua de terra, protegida do sol por um guarda-chuva, me dirá que “Tudo é encenação”, que desconfia das obras do governo. Janet é uma awajún de olhos rasgados e figura atlética que trabalha no centro de saúde de Nazareth. Para ela, que vive aqui desde adolescente, é preocupante que até agora ninguém saiba quando voltarão a usar o rio.

– Podemos ter tudo isso, água, esgoto encanado, mas o nosso rio está praticamente morto – diz a enfermeira, com tristeza. – Faz meses que ninguém toma banho aqui… bom, quase ninguém.

Janet tira da sua mochila um caderno de controle e confirma: alguns meses depois do derramamento de petróleo, atendeu 35 pacientes com febre, problemas para respirar, inflamação nas amígdalas, ardor na garganta, urticária, fungos. Ela tratou também de três garotas cujos corpos estavam cheios de pontos vermelhos, como picadas de mosquitos. Quase todos admitiram ter mergulhado e comido peixes do rio.

Doença de petróleo

Nesta tarde, Janet deve cumprir a sua ronda de vacinação de bebês e crianças. Vamos em um mototáxi que chacoalha por um caminho íngreme de terra e pedra. Enquanto subimos a montanha, a cada tanto aparecem entre as cabanas e arbustos grupos de três ou quatro meninos descalços, com roupas empoeiradas, brincando com paus ou bolas ou garrafas plásticas. Alguns, ao me verem, me apontam – ¡apach muun, apach muun! – e riem de mim. Por muito tempo, a comunidade parece habitada apenas por crianças. Ou por jovenzinhas trazendo bebês nos braços ou amarrados às costas com uma manta, como se fossem uma mochila. Na selva peruana, três de cada dez mulheres ficam grávidas ou têm um filho antes de ter um documento de identidade.

– Eu quis outra coisa para mim – diz Janet, de 39 anos, sem filhos. – Nem todas têm essa opção.

Em Nazareth, me conta, os homens awajún se recusam a usar camisinha e também não deixam as parcerias usarem contraceptivos. Dizem que não querem que suas mulheres os traiam. “Não precisamos disso” – brincam quando a enfermeira insiste –, “nós vamos cuidar melhor”. Mas para Janet isso nem é o mais grave: desde o dia do vazamento, além dos casos de doenças como dermatite, febres e diarreias, aumentaram os casos de HIV.

A região do Amazonas onde está Nazareth tem a maior população indígena infectada por esse vírus: segundo dados do Ministério da Saúde, de 35 casos em 2011 passou para 240 em 2017. Entre eles, 46 eram mulheres adolescentes. Janet diz que, além da falta de informação, isso se deve a que muitos homens, quando têm mais dinheiro no bolso, vão a bares e bordéis da cidade ou de comunidades vizinhas. Ali se contagiam e, ao voltar, contagiam as suas mulheres. O problema é mais grave porque há homens infectados que desconfiam da ciência: não estão doentes, juram, foram alvo de bruxaria.

Um colega de Janet, enfermeiro em Lima, contou que, depois de ele ter revelado o diagnóstico, um casal não aceitou o tratamento com retrovirais e ainda o ameaçou de morte: pensaram que era um bruxo que tinha “jogado feitiço”. O enfermeiro teve que pedir transferência para outro centro de saúde. Por isso, diz Janet, agora são muito cuidadosos com as explicações. Por precaução, protegem a identidade dos pacientes, usam nomes-chave.

Os enfermeiros chamam isso de Código Branco.

Os awajún dizem jata susamu, o que está enfeitiçado.

Assim como os vírus, invisíveis no seu ataque, o mal que deixou o petróleo também não se pode ver. “É como se algo se tivesse metido na terra, na água, no ar.” Alguns anciãos awajún, diz Janet, acreditam que se trata de “um espírito mau”. Nas suas revelações com ayahuasca viram: são seres negros que se movem sobre a água, como uma mancha de óleo.

– Na cosmovisão amazônica, o espírito do petróleo sempre existiu – me explicou o antropólogo italiano Emanuele Fabiano, que passou seis anos convivendo com indígenas urarinas na selva do rio Corrientes, no norte do Pero, para estudar o impacto dos derramamentos nessas aldeias. – Esses espíritos eram “bons vizinhos” quando ninguém os importunava. Mas com as atividades das petroleiras e os derramamentos, esses acordaram, ficaram bravos, saíram dos seus territórios tradicionais. Agora vivem nas comunidades.

Os urarinas – que, como os awajún, têm sido mão de obra barata para limpar os derramamentos de petróleo do Oleoduto Norteperuano – dizem que o espírito do petróleo se enrosca no corpo como uma serpente. Se trabalhar limpando o combustível do rio, ele seguirá você até a sua casa. Então adoecerá a sua mulher e seus filhos, vai fazer surgirem erupções na pele, sua cabeça vai doer, você não será capaz de respirar bem. Com o tempo você perderá a vontade de trabalhar, de estar em família. Você pode ter dinheiro, alertam os urarinas, mas ficará doente de tristeza.

Deus é grande

Em Nazareth, o mototaxista que nos leva, Asterio Pujupat, pai de nove filhos, que rejeita os contraceptivos, me diria depois que tem vários conhecidos assim e que é fácil reconhecer aqueles que fizeram bom proveito do salário da Petroperú. Diante de sua cabana feita de folhas e paus, me mostrou uma casa três vezes maior, de dois andares, feita com tábuas de madeira novas e folhas de flandres. Uma pequena antena de televisão a cabo coroava o telhado. “Esse trabalhou com petróleo”, disse Asterio com o pouco castelhano que sabe. Lamentava-se por não haver conseguido um posto nos trabalhos de limpeza porque tinha perdido seu documento de identidade. Outros awajún que conheceria com o passar dos dias – uns 60 adultos de Nazareth foram contratados pela Petroperú – teriam mais sorte. Ou talvez não.

– Meus filhos agora vão estudar na cidade. E estou construindo a minha casa, já comprei o piso – diz Américo Taijín, pedreiro, que passou três meses limpando a ravina com mangueiras de pressão.

– Antes fazia só uns trabalhinhos, de repente chega o vazamento e nos deu oportunidades. Se mais tarde eu vou ficar doente, não sei – duvida Abel Wanputsang, soldador, que montou um bar com luzes de discoteca, um aparelho de som e uma geladeira para vender cervejas.

– Deus é grande porque aqui estávamos sofrendo, não tínhamos trabalho. O cacau não dava bem e a banana tampouco – lembra Nino Cuñachí, agricultor, que com o que ganhou fez em sua casa uma loja de roupas que trouxe do Gamarra, uma loja de Lima.

– Não chamaria isso de oportunidade, não é um trabalho saudável. Disse para meu filho não ir, mas ele não me ouviu –lamenta-se Salomón Awanansh, dirigente awajún e admirador de Che Guevara. Seu filho agora tem um mototáxi, refrigerador e uma tevê de tela plana de 36 polegadas.

– Limpamos o petróleo com um produto especial, mas meus professores dizem que o óleo só se assentou no rio. Eu parei porque comecei a sentir enjoo, fraqueza – conta Lenin Taijín, estudante do 5º ano de engenharia ambiental, que assim pagou a universidade e terminou de construir um quarto para seu futuro filho.

– O derramamento nos deu trabalho, mas agora quero fazer um exame médico, quero saber se eu tenho algo. Eu vi dois amigos desmaiarem – preocupa-se Leonardo Pujupat, agricultor de bananas, que comprou sementes, uma motosserra, pintou sua casa de azul e fez o teto com folha de flandres.

– Meu companheiro não tinha trabalho, mas agora ganha bem – me conta a enfermeira Janet Tuyas, enquanto avançamos pela picada na sua ronda de vacinação. – Agora construímos uma casinha. O problema é que teve que chafurdar lá.

No começo, quando o marido regressava do trabalho de juntar petróleo no rio, Janet notava que o traje de proteção dado pela Petroperú não servia para nada: sua roupa estava toda manchada de negro. Assim, para não se sujar, ele começou a usar a roupa de proteção sem nada por baixo, apenas a cueca. Todas as noites chegava em casa cheirando a combustível. Janet diz que agora o marido quer ir limpar outro derramamento, em Morona, na selva de Loreto, a alguns dias de barco. Cerca de 300 mil litros de petróleo contaminaram esse vale pelo desgaste de outro trecho do oleoduto. O marido quer juntar dinheiro para pôr portas e janelas na casa deles.

– Só espero que ele não tenha algo genético por estar todo dia no petróleo – suspira a enfermeira, que não desistiu do desejo de ser mãe em alguns anos. – Imagina, e se meu filho nasce doente?

Depois das seis da tarde, a lanterna de nossos celulares apenas serve para evitar as poças do caminho. Assim, depois de termos visitado algumas famílias, Janet e eu chegamos à última casa: a de um Código Branco.

Dentro da cabana de madeira coberta de folhas, um par de velas ilumina tudo desde um canto e projeta sobre o chão de terra nossas sombras distorcidas. Há um fogão a lenha. Há uma estante enferrujada com pratos e panelas. Há uma mala com comprimidos em uma mesa de plástico vermelha. Há uma plataforma de madeira com um colchão e, sobre ela, uma menina. Uma cortina de gaze branca nos separa e protege dos mosquitos. Um recém-nascido dorme ao lado do peito. Algumas mulheres cuidam dela, suas vizinhas, que conversam em awajún com a enfermeira. Na penumbra, apenas dá para ver o rosto abatido da jovem, seu corpo pequeno. Sua voz é um sussurro. Faz cinco dias que deu à luz, me diz Janet. Tem 17 anos. Não devo escrever seu nome.

Antes de chegarmos, a enfermeira me contou do seu caso. O marido, um awajún que trabalhou limpando o petróleo, deixou-a grávida e contaminada. Depois de ter pegado o salário da Petroperú, desapareceu. As amigas da jovem juram que ele fugiu com outra mulher para a cidade. Janet diz à jovem mãe que não dê de mamar ao bebê para não contagiá-lo. Mas, alguns minutos depois de falar com ela, a enfermeira lamenta.

– Já deu o peito ao neném. Ela diz que não tem nada mais para dar a ele.

De noite, quando caminhávamos de volta ao centro de saúde onde deixaria a mochila com as vacinas, Janet pensava nas alternativas existentes para ajudar o seu povo. Com o vazamento de petróleo, muitas coisas haviam mudado, algumas para melhor, mas os problemas que já existiam somente se agravaram. Diante da precariedade de muitas famílias e da indiferença do Estado, na selva de Nazareth estavam alteradas até mesmo as formas de amar e sobreviver.

Da última vez que a vi, Janet me contou que algumas vezes, quando visitava mães e avós awajún, elas lhe davam bagres ou curimatã assado, que pescavam no Chiriaco, o rio contaminado. Para não ser mal-educada, a enfermeira mentia: prometia comer o peixe em casa, mas o jogava fora. Antes, pedia que elas esperassem que o rio estivesse limpo de novo, até que uma delas, cansada, disse: “E o que vamos comer então se não temos dinheiro?”. Desde então a enfermeira Janet, que ganha pouco, mas o suficiente para comprar peixes na cidade, decidiu calar-se.

Meninos envenenados

O Chiriaco é uma extensa estrada de água cor de barro. Preocupa que oito meses depois do derramamento, em um domingo ensolarado de setembro, haja alguns moradores pescando aqui, que ainda possam viver de peixes aqui, neste rio contaminado. Pessoas lavam roupa, se banham ao largo dos seus mais de 10 quilômetros. O Chiriaco serpenteia imperturbável e sobre ele correm canoas, algumas manchadas de negro, e deslizam pedaços de troncos e sacos plásticos e o corpo morto de algum pequeno animal.

Osman Cuñachí, criança awajún, olha para o rio e admite que tem saudade, mas desde o dia do vazamento não se atreve a mergulhar. À primeira vista, não há rastro do petróleo na água. Mas até que as autoridades o anunciem de maneira oficial, seu pai proibiu. Ou vai castigá-lo.

– Alguns comem o peixe porque não têm onde comer. Na minha casa não se come isso, mesmo que seja de presente. Agora tenho que comer mais verduras, e não gosto.

“Comer mais verduras”, diz Osman, é uma recomendação entre tantas outras que o médico deu essa manhã para sua mãe, depois de ter explicado a ela o que estava acontecendo com seu corpinho magro de 11 anos por ter tido contato com o petróleo.

Como tinha prometido, o médico Fernando Osores regressava a Nazareth com uma comitiva de Coordenadora Nacional de Direitos Humanos e o Centro Amazônico de Antropologia e Aplicação Prática para dar os resultados dos exames analisados em Quebec, Canadá: as amostras de sangre, urina e cabelo de 25 meninos e meninas que recolheram petróleo no rio.

As análises do laboratório revelaram o que Osores, especialista nesse tipo de desastre, suspeitava: os menores avaliados tinham cádmio, chumbo, arsênico e mercúrio no organismo. Em uma assembleia reservada somente para famílias awajún, Osores explicou a situação: o normal é que nenhum ser humano tenha no sangue uma partícula sequer desses metais tóxicos, mas esses resultados indicam que essas crianças têm mais do que a Organização Mundial da Saúde estabelece como limite máximo.

– Agora o Estado deve fazer um acompanhamento profundo e determinar se a nossa conclusão é uma exposição pontual ou persistente – me explicaria Osores mais tarde. – Se é persistente, então essas pessoas estão envenenadas.

Se se comprovar a hipótese do médico, quando se tornarem jovens, talvez em cinco ou dez anos, essas crianças – sobretudo os debilitados pela anemia e a desnutrição – poderiam sofrer danos em seu sistema nervoso e na sua capacidade para aprender, ter hipertensão, insuficiência renal e também câncer ao chegar à idade adulta. Diante dessa possibilidade, o Estado deveria avaliar o perigo e tomar medidas imediatas. Mas o passar dos meses demonstraria que pouco ou nada se faria para atender a essa emergência.

Enquanto isso acontecia em Nazareth, a mais de mil quilômetros dali, em sua sede – um edifício brutalista no centro financeiro de Lima, que imita a forma de uma plataforma de petróleo –, os diretores da Petroperú tentavam dar explicações à imprensa. Em comunicados oficiais, a empresa afirmava que dos 14 vazamentos ocorridos na Amazônia em 2016 – a maior quantidade da última década –, nove foram causados por sabotagens de terceiros. Sugeriam a possibilidade de que nativos gananciosos fossem os responsáveis por causar rupturas no oleoduto com serras.

Mas uma comissão do Congresso que investigou esses derramamentos em 2017 concluiu, entre outras coisas, que não existiam indícios razoáveis para responsabilizar as comunidades indígenas pelos derramamentos. Ao contrário: havia evidência de “possíveis delitos e atos de corrupção ou pelo menos uma inadmissível incapacidade dos funcionários da Petroperú”. O relatório final – enviado ao Ministério Público para ser investigado – reconhecia que a raiz do problema era a falta de manutenção do oleoduto.

E dava um dado: nos últimos nove anos, essa serpente de óleo havia derramado pelo menos 4 milhões de litros de petróleo na Amazônia. É como se tivessem esvaziado duas piscinas olímpicas desse combustível nos rios e nos vales onde vivem milhares de famílias como os awajún.

Que perverso esse paradoxo do desenvolvimento: que algo tão terrível como um vazamento de petróleo e a morte de um rio se converta em algo temporariamente proveitoso para uma comunidade. É uma realidade que não costuma aparecer nas notícias, que causa curtos-circuitos, que nos deixa diante de nossas contradições. A história de Nazareth é só um pequeno espelho no qual podemos nos ver refletidos.

Enquanto deixamos o Chiriaco para trás e vemos a sua casa, Osman me conta que o médico falou com a sua mãe e que a deixou muito preocupada. Ele não entendeu muito bem o que ele disse, nem sua mãe. Osman só entende que tem “alguma coisa, uma doença”, mas agora não se sente mal.

– E o que você falou a sua mamãe? – pergunto.

– Se eu tiver uma doença e morrer, eu morro, ué – sorri Osman, antes de ir brincar com os amigos.

A ideia da morte ainda é distante para ele.

E não poderia ser diferente.

Na última vez que nos falamos, em fevereiro de 2017, um ano depois do vazamento, Osman Cuñachí acabava de fazer 12 anos. No celular de seu pai, me contava que já começara as aulas do fundamental 2. Continuava levantando às cinco da manhã para montar na sua bicicleta e sair para o colégio. Regressava à uma da tarde para almoçar, brincar com os seus cachorros Lucky, Bobby e Micky, fazer a lição de casa, ajudar a mamãe com a roça, ver Dragon Ball na televisão com os irmãos, caçar escorpiões com os amigos. Já não sentia tantas tonturas: só restavam pequenas cicatrizes nos braços e nas pernas por ter se coçado tanto. “Só quero estar saudável como qualquer menino, não ter medo de um tumor”, me disse. Ainda queria se mudar para Lima algum dia e seguir seus planos: ser arquiteto ou goleiro profissional. Aprender caratê. Tomar banho de mar. Ir ao cinema. Ser menos tímido com as meninas. Ter, enfim, seu próprio smartphone.

Tem 12 anos.

Tem ainda, deveria ter, toda uma vida pela frente.

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