Balanço sucinto dos retrocessos legislativos na Questão Agrária. Por Nilton Tubino, Acácio Leite e Sérgio Sauer

Com a posse em 1º de janeiro, o governo Bolsonaro publicou a Medida Provisória 870. Este primeiro ato deu o tom e a direção do novo governo também para as áreas socioambiental e agrária. A nova estrutura governamental foi definida com 22 ministérios e 19 secretarias especiais. A fusão de ministérios e a criação dos chamados superministérios – Economia, Agricultura, Cidadania – não resultaram propriamente em redução da máquina e da burocracia.

No entanto, o Ministério do Meio Ambiente, que correu risco de extinção, foi um dos mais enfraquecidos. A gestão da água e do Cadastro Ambiental Rural (CAR) foram entregues a outras pastas. Sua agenda de desenvolvimento rural sustentável e extrativismo, combate ao desmatamento e enfrentamento das mudanças climáticas (que projetaram internacionalmente o Brasil) foram esquecidas em benefício do setor ruralista mais atrasado. O resultado é a explosão do desmatamento no período, tangenciando os 10 mil quilômetros quadrados.

O Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA) foi fortalecido, pois incorporou a Secretaria Especial da Pesca, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), o Serviço Florestal Brasileiro (SFB) e a Secretaria Especial de Agricultura Familiar e Desenvolvimento Agrário (SEAD, antigo Ministério do Desenvolvimento Agrário-MDA), que estava vinculada à Casa Civil na gestão Temer. A atribuição de todas estas competências ao MAPA representa o que chamamos de “a raposa cuidando do galinheiro”, ou seja, setores do agronegócio comandando o CAR, as fragilizadas políticas de reforma agrária e as florestas nacionais. A recém-criada Secretaria Especial de Assuntos Fundiários (uma mudança institucional no MAPA para abarcar a gestão do INCRA) é comandada por Luiz Alberto Nabhan Garcia, pecuarista e presidente da União Democrática Ruralista (UDR). A equipe de Nabhan foi composta por ruralistas e delegados da Polícia Federal, sendo que um deles se tornou o atual presidente da FUNAI.

Na proposta inicial do governo Bolsonaro, a FUNAI sairia do Ministério da Justiça (MJ) e ficaria vinculada à Secretaria de Assuntos Fundiários, sendo que a parte de demarcação de terras indígenas ficaria a cargo do INCRA. Depois de várias derrotas do Executivo – tanto por decisões do Congresso e como do Supremo Tribunal Federal – a FUNAI retornou para o MJ. Independente da vinculação institucional da FUNAI, o governo não decretou nenhuma terra indígena em 2019, cumprindo a promessa eleitoral e a posição administrativa: “a minha decisão é não demarcar mais terras para índios”. Ao contrário, a pauta está alicerçada na mercantilização dos territórios, expressos em ameaças de não só liberar a mineração e o arrendamento, como também de rever demarcações de terras indígenas (ameaça verbalizada em 30 de agosto de 2019).

Somente do mês de fevereiro, o presidente do INCRA foi anunciado: o general da reserva João Carlos Jesus Corrêa, que foi comandante da 11ª Região Militar, diretor de Controle de Efetivos e Movimentações do Exército e chefe do Estado Maior do Comando Militar da Amazônia (CMA). Assim como o então presidente, os principais cargos da autarquia ficaram com militares. A gestão dos militares durou apenas nove meses, pois em outubro foi nomeado Geraldo Melo Filho. Indicado por Teresa Cristina (Ministra do MAPA) e Onyx Lorenzoni (Ministro da Casa Civil), o atual presidente do INCRA foi Secretário Adjunto de Relacionamento Externo da Casa Civil. É economista (formado na Universidade de Brasília) e foi superintendente do Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (SENA) no Paraná. Filho do ex-governador do Rio Grande do Norte e ex-senador, Melo Filho é sócio da empresa Seleção Guzerá Agropecuária Ltda., proprietária das Fazendas Canoas (Minas) e da Barra (Bahia).

Durante 2019, o INCRA editou normativas e orientações sobre a atuação do órgão:

– determinou, já no dia 8 de janeiro, a paralisação de todos os processos de demarcação de terras, atingindo diretamente 250 processos de obtenção de terras e 1,7 mil processos de delimitação de territórios quilombolas em todo o país.

– publicou ato desautorizando os superintendentes do INCRA a conceder audiências aos movimentos sociais que não possuam CNPJ; esta decisão foi revogada, mas as orientações para receber os movimentos foram burocratizadas;

– editou medidas de desistência de processos de aquisição de terras, mesmo aqueles processos em que os pagamentos já tinham sido realizados (depósito em TDAs);

– ausência na participação do INCRA nos processos de negociações de reintegração de posses, mesmo em áreas que estavam sendo negociadas pelo órgão;

– congelamento dos processos de seleção de famílias: existem dezenas de projetos de assentamentos (onde poderiam ser assentadas mais de 3 mil famílias), criados desde 2014, mas o INCRA não realizou a seleção das famílias;

– Em resposta a ofício da Procuradoria Federal do Direito do Cidadão (PFDC) do Ministério Público federal (MPF) sobre a situação das famílias acampadas, o INCRA respondeu que não detém o cadastro dessas famílias acampadas, demonstrando a total falta de compromisso com a demanda social por terra.

MEDIDA PROVISÓRIA (MP) 910, de 12 de dezembro de 2019

Amplamente anunciada pela imprensa, foi lançada em 10 de dezembro de 2019 a Medida Provisória (MP) nº 910, junto com os decretos 10.165 e 10.166, com direito a cerimônia no Palácio do Planalto realizada no mesmo dia. A MP 910/2019 institui novas regras para a regularização de terras, alterando dispositivos das Leis nº 11.952, de 25 de junho de 2009 (dispôs sobre a regularização fundiária das ocupações incidentes em terras situadas em áreas da União), nº 8.666, de 21 de junho de 1993 (institui normas para licitações e contratos da administração pública) e nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973, que trata dos registros públicos.

– A MP fez mudanças ampliando o limite máximo para até 2.500 hectares passível de regularização de posses em terras da União em todo território nacional. Esse limite (pela Lei 13.465/2017) era para posses na Amazônia, mas agora se aplica a posses em todo o território nacional;

– Com alteração na Lei 8.666, fica dispensada de licitação a aquisição (regularização) de posses de áreas da União de até 2.500 hectares em todo o território nacional;

– A MP abdica de fiscalização ou vistoria, pois alterou dispositivos legais possibilitando a regularização de posses de terras da União apenas com base na autodeclaração do pretenso proprietário até o limite de 15 módulos fiscais (ou seja, até 1.650 hectares na Amazônia);

– Amplia o prazo de ocupação/posses: o prazo era 2004, foi adiado para 2008, sendo que a MP 910 fixou o prazo anterior a 5 de maio de 2014. Ainda flexibiliza esse prazo, o estendendo até 10 de dezembro de 2018, se o posseiro adquirir a área diretamente por meio de compra pelo valor de mercado.

– nos casos de descumprimento de contrato firmados com órgãos fundiários até 10 de dezembro de 2019, os beneficiários poderão requerer a renegociação do contrato.

DECRETO nº 10.166, de 10 de dezembro de 2019

No mesmo ato de publicação da MP 910, foram publicados os Decretos nº 10.165 (altera o Decreto 9.309/2018, que regulamentou a Lei 13.465/2017, que dispõe sobre a regularização fundiária das áreas rurais) e nº 10.166 (trata do processo de seleção, permanência e titulação das famílias beneficiárias do Programa Nacional de Reforma Agrária).

– O Decreto 10.166 determina que, em 1º de junho de 2017, os assentamentos que contarem com 15 anos ou mais de criação, deverão ser consolidados em até três (03) anos;

– O Decreto 10.166 diminui a pontuação de família acampada (de 15 para 5 pontos na seleção pro assentamento);

– os assentados terão direito somente ao Título de Domínio, portanto, não existe mais a opção por Concessão de Direito Real de Uso (CDRU).

Mortes e conflitos no campo

Com o discurso de ódio e incentivo à violência, os dados parciais registrados pela CPT totalizam 29 assassinatos em conflitos no campo, entre janeiro e dezembro de 2019. 25 deles foram na Amazônia Legal (86% do total). O Pará lidera o ranking com 12 assassinatos, seguido pelo Amazonas com cinco, e Mato Grosso e Maranhão, ambos com três assassinatos.

Os trabalhadores rurais, sem terras e assentados, entre outros, somam 21 nesse caminho de morte, o que corresponde a 72% das mortes. Oito indígenas foram assassinados até dezembro de 2019, sendo que sete eram lideranças. Esse foi o resultado mais alto de assassinato de lideranças indígenas nos últimos 11 anos, de acordo com a CPT.

Existem diversos processos de reintegração de posse para serem executados nos próximos meses em diversos estados.

Agrotóxicos

De 2015 até o final de novembro de 2019, a média de liberação foi 303 agrotóxicos por ano. Em 2019, foram liberados 502 agrotóxicos para registro e comercialização.

Soma-se à liberação abusiva de agrotóxicos, as alterações realizadas na classificação de toxidade publicada pelo MAPA. No Ato nº 58, de 27 de agosto de 2019, o MAPA deu publicidade a alterações na classificação toxicológica, definindo que produtos classificados como “extremamente tóxicos” por provocar corrosão ou inflamações na pele ou nos olhos, serão reclassificados considerando apenas o risco de morte.

Outros pontos

– O orçamento de 2020 tem previsão de R$ 12.3 milhões para aquisição de terras para a Reforma Agrária; R$ 2.9 milhões para educação do campo e R$ 7.4 milhões para a assistência técnica;

– Agricultura familiar some do plano safra: o lema agora é “existe somente uma agricultura”;

 – No PPA 2020-2023, foram extintos os Programas “Fortalecimento da Agricultura Familiar” e “Reforma Agrária e Governança Fundiária” (programas vinculados ao Crédito Fundiário);

– Em novembro de 2019, o governo Bolsonaro revogou o Decreto que estabelecia o zoneamento agroecológico da cana-de-açúcar e impedia a expansão do cultivo por áreas sensíveis do país. A revogação do decreto 6.961, de 2009, na prática, libera o plantio de cana na Amazônia e Pantanal;

– Extinção de vários Conselhos, em especial o esvaziamento completo (portanto, extinção) do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA) e extinção do Conselho Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável (CONDRAF);

– Reestruturação do CONAMA por decreto, diminuindo a participação da sociedade civil;

– edição da Lei 13.846/2019, que altera a aposentadoria rural;

– edição da Lei 13.715/2019, que amplia a posse de arma de fogo em propriedades rurais;

– Militarização dos órgãos ambientais (IBAMA e ICMBio);

– Extinção do Fundo Amazônia.

– MP 914/2019 – Dispõe sobre o processo de escolha dos dirigentes das universidades federais, dos institutos federais e do Colégio Pedro II. Altera o processo de escolha dos reitores. Com esta mudança Bolsonaro pode nomear 33 novos reitores em 2020

– MP 905/2019 – Institui o Contrato de Trabalho Verde e Amarelo, altera a legislação trabalhista, e dá outras providências. Nova reforma trabalhista, termina com a fiscalização do trabalho escravo e limita a atuação do Ministério Público do Trabalho.

– Durante o ano de 2019 o governo pulicou 8 decretos relacionados a liberação de armas. Resultado: Até novembro, os novos registros concedidos pela Polícia Federal para posse de armas passaram de 47,6 mil em todo o ano passado, para 70,8 mil nos primeiros 11 meses de 2019. Em outubro, havia 1.013.139 registros de armas ativos no país, apenas no sistema mantido pela PF (Sinarm).

Projetos no Legislativo

Estão em tramitação no Senado Federal dois Projetos de Lei (PLS 107/2011 e PL 2.963/2019) e uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC 80/2019) que modificam a legislação agrária e impedem avanços nas já cambaleantes políticas de reforma agrária.

– A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) n° 80, de 2019, de autoria de Flávio Bolsonaro, altera os artigos 182 e 186 da Constituição Federal para dispor sobre a função social da propriedade urbana e rural;

– O Projeto de Lei (PL 2.963/2019), de autoria de Irajá Abreu e outros 26 senadores, regulamenta a venda e o arrendamento de terras para estrangeiros. O PL foi aprovado pelas Comissões de Agricultura (CRA) e Econômica (CAE), e segue para a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado;

– O PLS 107/2011, da Senadora Kátia Abreu, “altera a Lei nº 8.629, de 25 de fevereiro de 1993, para dispor sobre a fixação e o ajuste dos parâmetros, índices e indicadores de produtividade”; já foi aprovado nas CRA e CAE, e deve ser apreciado na Comissão de Constituição e Justiça.

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