Justiça Federal manda União recolocar corrente retirada por deputado na TI Waimiri-Atroari; indígenas vão processar parlamentar

Os Kinja dizem que a fiscalização e o bloqueio da BR-174, rodovia que corta o território Waimiri-Atroari, são para proteger animais e os próprios indígenas

Por Elaíze Farias, no Amazônia Real

Acima, o deputado Jeferson Alves no momento em que tenta cortar o tronco com uma motosserra (Foto: Reprodução Facebook)

Manaus (AM) – Os indígenas Waimiri-Atroari (autodenominados Kinja) vão entrar com uma ação cível e um pedido de indenização por danos materiais e morais contra o deputado estadual Jeferson Alves (PTB-RR). O parlamentar pelo estado de Roraima invadiu a terra indígena na manhã desta sexta-feira (28), e munido de uma motosserra e um alicate rompeu a corrente de isolamento do posto de fiscalização do local. A cena foi filmada por seus assessores e uma TV local, além de ser divulgada nas redes sociais.

No vídeo, Alves gaba-se do feito, pede apoio do presidente Jair Bolsonaro e diz que o gesto “é por Roraima, pelo Brasil”. “Essas correntes, se depender de mim, nunca mais vai (sic) deixar o Estado isolado”, anunciou. A Terra Indígena Waimiri-Atroari abrange o norte do Amazonas e uma parte do estado de Roraima.

Dois homens que acompanhavam o deputado prenderam dois indígenas (um deles, adolescente) na guarita de fiscalização e os deixaram trancados quando foram embora. Os fiscais indígenas tentaram filmar com celular a ação criminosa do deputado, mas foram impedidos pelos assessores.

“A conduta do deputado e seus asseclas, de querer agir com as próprias mãos, além de incitar as pessoas às mesmas práticas, se enquadra também em várias outras condutas tipificadas como crime na legislação penal brasileira”, condenou em nota a Associação das Comunidades Waimiri-Atroari. Para a entidade, o deputado e seu grupo incorreram nos crimes de ameaça, sequestro e cárcere privado, violação de domicílio, roubo, dano, dano qualificado, incitação ao crime, coação no curso do processo, exercício arbitrário das próprias razoes, além de causar ilícito civil de natureza material e moral.

Em decisão liminar concedida na noite desta sexta-feira, o juiz federal Felipe Bouzada Flores Viana, da 2ª Vara da Justiça Federal de Roraima, acatou pedido do Ministério Público Federal determinando que a Fundação Nacional do Índio (Funai) e a União recoloquem a corrente no posto de fiscalização. Funai e União também devem tomar medidas de proteção no trecho da terra indígena onde funcionam os postos de vigilância e a corrente. Também devem ser destacados servidores, policiais federais, policiais rodoviários ou agentes militares aptos “para assegurar a manutenção da ordem tendente a impedir novos atos de usurpação da função jurisdicional no que diz respeito à permanência das correntes”.

O Ministério Público Federal havia ingressado com uma tutela provisória de urgência na Justiça Federal solicitando que a União e a Funai tomassem providências para “assegurar a manutenção da ordem e impedir a prática de novos atos de usurpação da função jurisdicional no que diz respeito à permanência das correntes”. A procuradora da República Manoela Cavalcante foi além e afirmou que “não é alarmista prever que tal estado de coisas, se se mantiver inerte o poder público, poderá descambar para conflito violento com os povos indígenas que guarnecem os postos de entrada da TI Waimiri-Atroari”.

A existência de correntes e controle [na] BR-174 é alvo de um processo que tramita há 16 anos, sem decisão na Justiça Federal. Ele chegou até o Supremo Tribunal Federal (STF), que declinou da ação em 2019, fazendo com que o processo voltasse para a primeira instância. Para a procuradora, enquanto a questão não for decidida, deve-se voltar ao controle de tráfego com as correntes. “Busca-se, assim, evitar conflitos e instabilidade social enquanto não sobrevier sentença neste momento processual derradeiro”, justifica.

https://www.facebook.com/jefersonalvesrr/videos/2121143284697776/

O MPF de Roraima também abriu inquérito para investigar a conduta do deputado Jeferson Alves (PTB) e solicitou avaliação de medidas judiciais criminais de delitos do Código Penal. O MPF solicitou ainda que a Funai, o Exército Brasileiro, a Polícia Federal e a Polícia Rodoviária Federal adotem providências para “evitar a ocorrência de casos semelhantes, bem como eventuais conflitos decorrentes”.

Para o MPF, “com sua conduta, o deputado Jeferson gerou instabilidade social na região acerca de questão sensível, além de desrespeitar o Poder Judiciário, executando, por iniciativa própria, medidas ainda não deferidas judicialmente, embora já requeridas”.

Em nota, a Funai se manifestou, afirmando que acompanha o caso e que o controle do tráfego foi uma iniciativa do Exército para preservar as terras indígenas e “evitar ações predatórias da fauna”. A Funai não respondeu às perguntas sobre que providências vai tomar para proteger o território de novas medidas semelhantes iguais à do deputado estadual.

À Amazônia Real, o advogado do programa Waimiri-Atroari, Harilson Araújo, disse que a Associação também está tomando medidas legais e judiciais cabíveis contra o deputado. O procurador da República, Julio Araújo, que coordena o Grupo de Trabalho Povos Indígenas e Regime Militar, disse à reportagem que o episódio revela um claro desrespeito ao processo em curso na Justiça.

“O estabelecimento das correntes é um fato histórico, que tem o objetivo de minimizar os danos causados pela construção da rodovia, quando houve um genocídio do povo Waimiri-Atroari, e garantir a proteção socioambiental na área. A despeito do fechamento que ocorre diariamente, não há restrição à circulação de certos veículos. Tentar impor na marra uma outra solução para o problema é um desrespeito não apenas ao povo Waimiri-Atroari, mas às instituições e à democracia brasileira”, disse Araújo.

Junto com o procurador da República Fernando Merloto Soave, que atua no MPF do Amazonas, Julio Araújo assinou um ofício solicitando, em um prazo de 24 horas, que o superintendente da Polícia Federal do Amazonas, Alexandre Saraiva, o coordenador regional da Funai, em Manaus, Francisco de Sousa Castro, e o presidente da Funai, Marcelo Augusto Xavier da Silva, “manifestem-se quanto às medidas de segurança para assegurar o controle do raio exterior ao Território Indígena Waimiri Atroari e a sua estabilidade, devido aos potenciais riscos de ataques motivados pela atitude do Deputado do Estado de Roraima Jeferson Alves (PTB-BR)”.

Amazônia Real entrou em contato por telefone (gabinete) e por email com o deputado Jeferson Alves, mas ele não atendeu nem respondeu às perguntas.

Controle começou com o Exército

Os Waimiri-Atroari afirmam, na nota divulgada após o episódio do deputado, que o controle do tráfego de veículos no período noturno visa proteger os animais da fauna de hábitos noturnos e os indígenas que constantemente trafegam pela via em período de caça.

O posto de fiscalização do Território Indígena Waimiri-Atroari fica no Km 74 da BR-174 (Manaus-Boa Vista), divisa com a Vila do Jundiá, em Roraima – por isso ele se chama Posto do Jundiá. O bloqueio ocorre entre 18h30 às 5h30. Caminhões com cargas perecíveis podem entrar até as 22 horas. Mas não há proibição de passagem para ambulâncias, carros de autoridades públicas, ônibus de passageiros ou qualquer outro carro em situação de emergência.

Os indígenas confirmaram que o controle existe desde a construção da BR-174, na década de 1970, e foi instalado pelo Exército. Na década de 1990, o Exército saiu e repassou o controle das correntes para os indígenas. “Atos dessa natureza, além de ilegais e ilegítimos, apenas contribuem para a desconstrução de um longo processo de diálogo que vinha sendo alicerçado entre os indígenas Waimiri Atroari e a sociedade envolvente”, diz a nota.

Indígenas retidos na guarita

Indígenas instalam nova corrente no posto de fiscalização, após a ação do deputado
(Foto: Associação das Comunidades Wairimi Atroari)

Em depoimento dado na delegacia de Rorainópolis (RR), o indígena Tapa Jackson Atroari, de 21 anos, contou que ele e seu companheiro de fiscalização se sentiram intimidados e não reagiram. Eles afirmaram que conseguiram ver quando o deputado tentou serrar o tronco e que, sem sucesso, decidiu arrebentar a corrente. Segundo Tapa, os dois fiscais indígenas foram deixados trancados na guarita e precisaram romper a porta e comunicar ao chefe de posto da Funai.

Segundo os indígenas, a prática de romper corrente tem sido comum entre alguns caminhoneiros, mas eles nunca haviam visto alguém levá-la consigo, nem que o ato tivesse sido filmado e divulgado nas redes sociais como um troféu. Também foi a primeira vez que eles foram mantidos presos na guarita.

Conforme o relato do chefe do Coordenador de área da Funai dentro da Terra Indígena Waimiri-Atroari, Antônio Carlos Andrade, toda a ação do deputado durou cerca de cinco minutos, mas causou muita apreensão entre os indígenas, que também ficaram enfurecidos. Andrade também prestou depoimento na Delegacia de Rorainópolis.

Na tarde desta sexta-feira, um grupo de pelo menos 20 indígenas Waimiri-Atroari esteve na área onde aconteceu a ação do deputado para reinstalar a corrente. Entre eles, estava uma das principais lideranças Waimiri-Atroari, Wane Viana Waimiri-Atroari. (veja vídeo do momento em que os Kinja colocam a corrente na estrada BR-74 novamente):

“Os Kinja são defensores da terra deles. Mostram que têm direito deles sobre o território. O que este cidadão fez foi uma atitude totalmente irresponsável”, disse Antonio Carlos Andrade, à Amazônia Real.

Histórico de violações

Desde o final da década de 1960, os Waimiri-Atroari já sofreram incontáveis episódios de violência e violação de direitos. A BR-174 é uma das mais conhecidas. Construída na década de 1970, ela atravessou a terra dos indígenas, causando danos irreparáveis, violência e massacres. A população da etnia reduziu a ponto de quase ser dizimada.

Em uma audiência realizada há quase um ano, seis sobreviventes dos ataques contaram, em detalhes, como “homens brancos de uniforme ‘cor de mato’ entraram armados em suas terras, destruíram locais sagrados e provocaram a morte de crianças, adolescentes e adultos de aldeias inteiras”. Eles se referiam aos ataques de militares do Exército.

Na década de 1980, grande parte do território foi inundada para a construção da obra da Usina de Balbina, que abastece Manaus. A hidrelétrica é hoje exemplo de empreendimento negativo, que apenas trouxe danos ambientais e sociais. A terra indígena também é alvo de empresas mineradoras e de grilagem.

Nos últimos anos, os Waimiri-Atroari passaram a enfrentar um novo inimigo: as obras do Linhão de Tucuruí, que deverá atravessar seu território. Em reportagem publicada pela Amazônia Real, os Kinja afirmam que o percurso das torres de eletricidade é próximo das aldeias, roças, rios e lagos, lugares que para eles são sagrados. Eles também demonstraram a preocupação com os indígenas isolados Pirititi, que vivem em território ainda não demarcado, nos limites da terra Waimiri Atroari.

O principal líder da etnia, Ewepe Marcelo Atroari, questionou, na época, as ameaças do presidente Jair Bolsonaro. “Já fizemos a proposta ao governo de não passar na nossa terra; passa por onde é mais fácil, mas o governo diz que não tem recurso para passar o linhão no entorno da nossa terra: não tem recurso. Vai trazer [a obra] muita invasão, vão tirar a mata, vai ter desmatamento. O que me deixa triste é que o governo desse Bolsonaro não está nem aí para a vida do índio, nem para o povo que elegeu ele; nem para o ribeirinho e nem para o quilombola”.

O deputado Jeferson Alves no momento em que tenta cortar o tronco com uma motosserra. Foto: Reprodução Facebook

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