Manifesto “Racismo ambiental no Vale do Ribeira (SP e PR): conservação da natureza e justiça na luta dos povos indígenas e comunidades tradicionais”

Neste 22 de abril, quando se celebra o Dia da Terra, mas também quando lembramos da invasão deste território que hoje é conhecido por Brasil, o Fórum dos Povos e Comunidades Tradicionais do Vale do Ribeira lança o manifesto “Racismo ambiental no Vale do Ribeira (SP e PR): conservação da natureza e justiça na luta dos povos indígenas e comunidades tradicionais”. O documento, disponível também em vídeo, denuncia as pressões sofridas pelas comunidades da região, promovidas pelo Poder Público e por agentes do Capital, visando a exploração desta terra.

A retirada das comunidades de seus territórios, negando sua ancestralidade, seu modo de vida tradicional e seus direitos, mesmo com todo o respaldo da ciência e de documentos históricos que comprovam sua existência na região há séculos, é uma das faces mais cruéis do que se chama de “racismo ambiental”. Com o pretexto de “proteger o meio ambiente”, instituições públicas e privadas atacam caiçaras, indígenas, quilombolas e caboclos que, há gerações, mantêm a Mata Atlântica e sua rica sociobiodiversidade.

Ouça as vozes dos povos e comunidades tradicionais do Vale do Ribeira e seus parceiros, e apoie esta causa! Para nós, a proteção da natureza significa cuidado, respeito e resistência! Há’vete!

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Racismo ambiental no Vale do Ribeira (SP e PR): conservação da natureza e justiça na luta dos povos indígenas e comunidades tradicionais

O Vale do Ribeira, localizado no sul do Estado de São Paulo e leste do Estado do Paraná, é geralmente mencionado pelos baixos níveis no Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). Contudo, a diversidade social e ambiental dessa região é alvo de interesses de diferentes governos, instituições e empresas, o que parece apontar para uma riqueza ainda inexplorada, apesar dos ciclos econômicos predatórios na Mata Atlântica remontarem ao período colonial. É nessa região que vivemos e nos constituímos como parte da história ancestral do país.

Nós, povos indígenas e comunidades tradicionais, vivemos neste Vale há séculos. Aqui, elaboramos conhecimentos e práticas tradicionais que mantiveram altas taxas de conservação dos territórios. Porém, carregamos também a memória das inúmeras violências que sofremos, contra as quais lutamos. Apesar dos nossos direitos inscritos em legislações estaduais, nacionais e internacionais, precisamos ainda lutar para permanecer onde nossos ancestrais deixaram suas marcas simbólicas, ecológicas e espirituais.

No chão das nossas comunidades, os povos caboclos, caiçaras, guarani mbya, nhandeva e quilombolas, principalmente, organizam o Fórum dos Povos e Comunidades Tradicionais do Vale do Ribeira (FPCTVR). Nossa articulação entre essas comunidades ocorre num contexto de conflitos sociais e ambientais que, considerando o período recente, derivam de um vasto processo de grilagem e de violência legado pela ditadura civil-militar de 1964. Sabemos, através da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo Rubens Paiva (CNV), que, nesse período, centenas de milhares de casos de violações de direitos humanos atingiram populações de agricultores e pescadores no Vale do Ribeira. Foram violados nossos territórios coletivos, as moradias, as roças, a pesca, nossos valores, quando não o corpo e a dignidade de nossas famílias e da nossa mãe e irmã natureza, na qual vivemos integrados, respeitando seus ciclos.

À ditadura sucederam outras formas de autoritarismo e formas de opressão social e política por iniciativa de governos federais, estaduais, bem como dos diferentes municípios do Vale. Além da tentativa de construção de um complexo de barragens no rio Ribeira, de grandes rodovias, de condomínios habitacionais de luxo e do já em curso turismo desordenado e massificado, as sobreposições de territórios coletivos e tradicionais por categorias de Unidades de Conservação (UC) estão também inseridas no bojo dos grandes empreendimentos que restringiram ou proibiram completamente os modos de vida comunitários, processo que levou à pauperização e à marginalização social de diferentes grupos.

Figura 2: Manifestação do FPCTVR na cidade de Iguape (SP), 2018. Fonte: FPCTVR.

Nos encontros do Fórum aprofundamos o debate sobre e as iniciativas para conter a política ambiental do governo do Estado de São Paulo, quando esta se manifesta através da violência, notadamente pelo racismo ambiental no Vale do Ribeira.

O racismo ambiental pode ser definido como as medidas e práticas de instituições públicas ou privadas, governos e agentes particulares que se realizam através da violação de direitos e de formas de violência social, política e ambiental “que recaem de forma implacável sobre grupos étnicos vulnerabilizados e sobre outras comunidades, discriminadas por sua ‘raça’, origem ou cor”.[1]

O racismo ambiental afeta diretamente os nossos territórios tradicionais, contaminando-os quimicamente ou com lixo, explorando seus bens naturais de uso comum através da mercantilização desenfreada na natureza, ignorando a ocupação originária e tradicional das comunidades. Unidades de Conservação criadas sem consulta prévia aos povos, desconsiderando nossa história e a diversidade do nosso modo de vida também levaram ao empobrecimento e à expulsão de nossos territórios.

Medidas administrativas dos órgãos ambientais, apoiadas ou não em legislações que contaram pouco ou nada com a nossa participação, têm violado garantias constitucionais, as próprias legislações estaduais e tratados internacionais – a exemplo da Convenção 169 da OIT –, nesse caso, detentores de força supralegal, das quais o Brasil é signatário. Em conjunto, essas legislações visam garantir a proteção e a valorização do modo como nos organizamos comunitariamente, bem como das nossas práticas e técnicas ecológicas, considerando a relevância da presença socioeconomicamente fortalecida dos nossos povos, tanto para a conservação do bioma da Mata Atlântica, no Vale do Ribeira, como para a melhoria das condições de vida da população.

Há tempos afirmamos os benefícios ecológicos e sociais baseados nos territórios que tradicionalmente ocupamos. Pesquisas acadêmicas e diversas instituições públicas e privadas têm demonstrado cientificamente a importância dos nossos modos de vida para a proteção de diferentes biomas. Em 25 de março de 2021, o novo relatório da Organização das Nações Unidas (ONU), baseado em mais de 300 estudos realizados ao longo de duas décadas, aponta que “povos indígenas e comunidades tradicionais em geral têm sido melhores guardiões de suas florestas em comparação com os responsáveis pelas demais florestas da região.”[2]

O documento mostra que as taxas de desmatamento são consideravelmente menores nos territórios onde habitam povos e comunidades tradicionais na América Latina e no Caribe, dado nosso modo de vida, nossas técnicas sustentadas e atualizadas de geração em geração, a forma como mantemos os biomas e persistimos em nossas lutas. As recomendações da ONU são explícitas no sentido de chamar os diferentes setores da sociedade para criarem incentivos às organizações comunitárias, bem como de fortalecer a “segurança da posse desses territórios”. Não estamos, portanto, sozinhos.

Mas ainda temos de superar as diversas formas de violência que sofremos.

Figura 3: Bandeira do Brasil pintada em manifestação do FPCTVR, na cidade de Iguape, 2018. Fonte FPCTVR.

O racismo ambiental no Estado de São Paulo, por exemplo, vale-se da legitimidade social e política da pauta ambiental para operar e velar, através da atuação de órgãos do Estado, como a Fundação Florestal e a Polícia Militar Ambiental, medidas de violência contra as comunidades, o que resulta no enfraquecimento das organizações comunitárias, quando não em uma limpeza demográfica via expulsão. Nesse sentido, o racismo ambiental diminui a sociobiodiversidade no Vale do Ribeira.

Sob o signo da preservação da natureza, os órgãos ambientais aplicam políticas de controle dos territórios de povos e comunidades tradicionais, o que beneficia um conluio de interesses entre grandes ONG’s ambientalistas e empresas privadas, ávidas em capitalizar os recursos sociais e ecológicos do Vale do Ribeira. O mais recente exemplo disso é a tentativa de impor, via legislação estadual, a concessão privada de Parques Estaduais em São Paulo de forma exclusiva para o benefício de grandes empresas e ONG’s. Desconsiderando a autonomia e capacidade das comunidades sobre a gestão de seus próprios territórios, como recentemente atestou a ONU, essa iniciativa relegará, quando muito, um destino em que nós seremos incluídos como mão de obra sub-remunerada em grandes empresas de turismo. A pressão é para que deixemos nossas identidades étnicas, nossa relação de séculos com os territórios e nossos conhecimentos indígenas e tradicionais para nos tornarmos pobres.

Por isso, enquanto povos e comunidades tradicionais organizadas no Fórum, denunciamos o modo como as políticas ambientais têm sido instrumentalizadas pelos governos, e que tem resultado em diversas formas de violência. Essa política, além de contar com medidas localizadas nos territórios tradicionais, por parte da Polícia Militar Ambiental, de gestores públicos e de guarda parques de Unidades de Conservação, lança mão de uma máquina de repressão jurídico-política contra as comunidades, não raramente através de setores do Ministério Público Estadual (MPE). Dessa forma, o racismo ambiental atinge amplamente a vida e os territórios de nossas comunidades.

Em vista dessa situação, o Fórum reafirma seu compromisso com uma política ambiental comprometida com a justiça social e inclusiva quanto à presença de povos que, muito antes da “sustentabilidade” ser um termo descritivo da proteção da natureza, já mantinham seus territórios cuidados e conservados. Os baixos níveis do IDH referentes ao Vale do Ribeira apenas apontam as consequências, dentre outros fatores, das violências que sofremos. Nesse contexto, as comunidades afetadas pelo racismo ambiental do governo do Estado de São Paulo continuarão sendo acolhidas pelas ações do Fórum, pois sabemos que é essa política que tem degradado as condições socioeconômicas e ambientais de vida na região. Além do mais, trata-se do respeito a parâmetros legislativos já garantidos nos marcos na Constituição de 1988, mas que, infelizmente, também nesse caso têm sido minados pelos que, oficialmente, deveriam ser os responsáveis em preservá-los.

Para nós, a proteção da natureza significa cuidado, respeito e resistência.

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[1] Ver Tania Pacheco: https://racismoambiental.net.br/racismo-ambiental-o-que-eu-tenho-a-ver-com-isso/)

[2] Ver mais detalhes em: https://brasil.un.org/pt-br/123183-novo-relatorio-da-onu-povos-indigenas-ecomunidades-tradicionais-sao-os-melhores-guardioes)

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