Mesmo durante as restrições impostas por decretos estadual e municipais, empreendedores mantiveram trabalhos em campo, colocando em risco populações vulneráveis, como indígenas, quilombolas, ribeirinhos, vazanteiros e pescadores artesanais
O Ministério Público Federal (MPF) ingressou com ação civil pública contra as empresas SPE Formoso Energia S/A e Quebec Engenharia S/A, para que elas sejam impedidas de realizar atividades de campo na área de impacto do projeto da Usina Hidrelétrica de Formoso, a ser instalada no leito do Rio São Francisco, em Pirapora (MG), na região norte do estado.
Também são réus na ação a União, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) e a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel). Neste caso, o objetivo é obrigá-los a fiscalizar as atividades de licenciamento ambiental ou estudos preliminares do empreendimento que estejam sendo realizados em desconformidade com as normas sanitárias da pandemia da covid-19 e impliquem em contato ou interação social com povos indígenas, quilombolas e outras comunidades tradicionais, especialmente nos municípios de Buritizeiro, Pirapora, Lassance, Várzea da Palma, São Gonçalo do Abaeté e Três Marias.
Nessa região, vivem os indígenas Tuxá, as comunidades quilombolas João Martins e Tira Barro, além de pescadores artesanais, ribeirinhos, vazanteiros, barranqueiros e remeiros (povos tradicionais mineiros que histórica e etnograficamente ocupam território nas margens e ilhas do rio São Francisco).
O receio do Ministério Público Federal é que as atividades realizadas pelos empreendedores resultem na contaminação dessas populações pelo SARS-Cov-2, acarretando tanto a eventual extinção de povos tradicionais, como a sobrecarga da rede assistencial de saúde pública, com possível insuficiência dos leitos clínicos e de terapia intensiva atualmente existentes.
Em ofício ao MPF, a própria Secretaria de Saúde do Estado de Minas Gerais salientou que, “considerando o período pandêmico vivenciado atualmente, é notório que os povos em voga possuem uma histórica vulnerabilidade imunológica e baixos índices de desenvolvimento humano. Com isso, nessas populações, verifica-se um alto índice de doenças crônicas, tais como anemia, hipertensão arterial, desnutrição, diabetes, o que as categoriza como grupos de risco ante a pandemia da covid-19”.
Desobediência às restrições – De acordo com a ação, empreendimento de tal natureza acarreta tanto o aumento do contingente de pessoas na área de sua implantação, como a consequente circulação e intensificação dos contatos com as populações locais, o que, além de contrariar as medidas definidas pelas autoridades sanitárias para evitar a propagação do vírus e novas infecções, gera insegurança e desconfiança nas comunidades.
Questionadas, empresas e órgãos públicos federais, como a Secretaria Especial do Programa de Parcerias de Investimentos do governo federal, limitaram-se a afirmar que estão sendo adotados os devidos protocolos sanitários, “para a retomada das atividades de forma segura, gradativa, planejada, regionalizada, monitorada e dinâmica, considerando as especificidades de cada setor e dos territórios, de forma a preservar a saúde e a vida das pessoas”. No entanto, o fato é que denúncias dão conta de que, desde meados de outubro de 2020, trabalhadores das empresas Quebec Engenharia S/A, Tractebel Suez e SPE Formoso estão realizando trabalhos de campo nas cidades de Pirapora, Buritizeiro, Várzea da Palma e Lassance, mesmo diante do agravamento da pandemia.
“É preciso considerar que os povos tradicionais, por sua vulnerabilidade, têm essa condição reconhecida no Plano de Vacinação contra covid-19 do Estado de Minas Gerais. Além disso, a Lei 14.021, de 7 de julho de 2020, criou medidas de vigilância sanitária e epidemiológica para prevenção do contágio e da disseminação da covid nos territórios indígenas e estipulou medidas de apoio às comunidades quilombolas, aos pescadores artesanais e aos demais povos e comunidades tradicionais”, lembra o procurador regional dos Direitos do Cidadão, Helder Magno da Silva.
A lei também estabeleceu expressamente a restrição de acesso de pessoas estranhas às comunidades, como forma de impedir a disseminação e circulação do vírus entre os povos.
“Por isso, chama atenção que, apesar das diversas restrições decretadas pelo governo estadual e pelas prefeituras municipais na região de implantação da UHE Formoso ao longo dos últimos meses, durante as quais apenas serviços essenciais estavam autorizados a funcionar, os empreendedores tenham mantido suas atividades em campo, em desobediência não apenas aos decretos governamentais, como à própria Lei 14.021”, afirma o procurador da República.
Lembrando que a ausência de uma estabilização segura dos números de novas infecções em Minas Gerais não afasta a possibilidade de surgimento de uma nova onda, ou mesmo a propagação das chamadas cepas brasileiras, o MPF defende a necessidade de se proibir a realização de atividades econômicas que não possuem nenhum caráter de essencialidade e podem ajudar a disseminar o vírus entre as populações vulneráveis.
A ação também pede a condenação dos réus por dano moral coletivo, diante do risco a que expuseram as vidas de diversos contingentes populacionais, em especial dos indígenas, quilombolas e demais povos e comunidades tradicionais que vivem na região do empreendimento.
Clique aqui para ler a íntegra da inicial da ação.
(ACP nº 1020334-84.2021.4.01.3800)
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Arte: Secom/MPF