Covax: os bastidores da decisão do governo de comprar o mínimo de doses

Por Leila Salim Maíra Mathias, no Outra Saúde

BASTIDORES DA REJEIÇÃO

Vídeos exclusivos de reuniões interministeriais mostram que o governo Jair Bolsonaro agiu para dificultar a aquisição de vacinas contra a covid-19 através do consórcio Covax Facility, coordenado pela Organização Mundial de Saúde (OMS). O material, divulgado pela revista digital Crusoé no último sábado, expõe bastidores até agora desconhecidos de reuniões que ocorreram entre agosto e setembro do ano passado.

Exemplo é a fala de Talita Saito, subchefe adjunta de política econômica da Casa Civil, que em 15 de setembro – três dias antes do prazo final para adesão ao consórcio – comunica que Jair Bolsonaro ainda não tinha tomado uma decisão sobre o  assunto.

Além disso, Saito informa sobre uma “alteração de posicionamento” do Ministério da Saúde, que havia decidido pela redução à metade da quantidade de doses a serem adquiridas. “Baixou de 20% para 10% da população”, diz. 

A situação de Pazuello também parece se complicar. É que os vídeos trazem uma fala da embaixadora do Brasil em Genebra, Maria Nazareth Farani Azevêdo, informando explicitamente no dia 12 de agosto que o preço unitário das doses havia caído de US$ 20 para US$ 10,55. À CPI, Pazuello caracterizou a proposta do Covax como “nebulosa” e disse que as vacinas teriam sido oferecidas ao preço inicial de US$ 40 a dose. 

Chama atenção também o argumento apresentado por Rafael Mansur, advogado da União com atuação no Ministério da Saúde, em uma reunião interministerial no dia 2 de setembro. Ele diz que “um fator que dificultou a análise [do contrato] foi essa questão do português e do inglês”, ponderando que a barreira do idioma havia atrapalhado a análise do “texto jurídico”. 

O assunto voltou a aparecer em 17 de setembro, véspera do prazo final para adesão ao Covax: Jair Capelosi, consultor jurídico do Ministério da Saúde, queixou-se outra vez sobre as propostas contratuais estarem “todas em inglês” e pondera que fariam falta as “cópias traduzidas”. 

Só que não… Na ocasião, Fábio Marzano, do Itamaraty, interrompeu Capelosi para lembrar que todos os documentos haviam sido traduzidos e encaminhados pelo Ministério das Relações Exteriores para facilitar as tratativas. 

O esforço do Ministério da Saúde para dificultar a adesão parecia ser tanto que o consultor da pasta desconsiderou o trabalho do Itamaraty e clamou por uma “tradução oficial”, argumento rebatido pela chancelaria brasileira em Genebra já que nas tratativas com o Covax, em caso de divergências contratuais o que valeria legalmente, seria a versão original, em inglês. 

O resultado já sabemos: o Brasil foi um dos últimos a ingressar no consórcio e o fez de maneira limitada. Rejeitando a oferta para aquisição de doses suficientes para imunizar metade da população, o país optou pela quantidade mínima – correspondente a 10% dos brasileiros. 

E TEM MAIS

Apareceu mais uma contradição no depoimento prestado por Eduardo Pazuello à CPI. Documentos obtidos pela comissão após a quebra de sigilo telemático do general da ativa mostram que, ainda quando ministro, ele se reuniu com o senador Eduardo Girão (Podemos-CE) por fora da agenda oficial para tratar da distribuição de cloroquina e hidroxicloroquina por hospitais militares. Quando depôs à CPI, o ex-ministro negou ter incentivado ou recomendado o uso do medicamento para o combate à pandemia. 

Já a negociação de 30 milhões de doses de CoronaVac com uma empresa intermediária pelo triplo do preço oferecido pelo Instituto Butantan, revelada em vídeo pela Folha, rendeu a Pazuello uma denúncia à Procuradoria da República no Distrito Federal. O autor da representação é o deputado Ivan Valente (PSOL-SP), que também encaminhou a denúncia ao Ministério Público Militar, ao Ministério da Defesa, ao Comando do Exército e à Comissão de Ética Pública da Presidência, pedindo apuração de crime de responsabilidade. 

COPIA E COLA

Na sexta, a Bharat Biotech anunciou a rescisão do acordo com a Precisa Medicamentos. No comunicado, a farmacêutica indiana nega “veementemente” a autoria de duas cartas que fazem parte do processo administrativo de compra da Covaxin e foram enviadas ao Ministério da Saúde pela empresa brasileira. O contexto dessa história é o contrato de R$ 1,6 bilhão (15 dólares por 20 milhões de doses) que os irmãos Miranda denunciaram à CPI e ao presidente Jair Bolsonaro – que teria atribuído os rolos da negociação ao líder do governo na Câmara, Ricardo Barros (PP-PR).

As cartas entregues pela Precisa ao ministério têm fortes indícios de fraude. Uma carta elege a empresa brasileira como “representante legal e exclusiva no Brasil” da Bharat, “com poder de receber todas as notificações do governo”. A outra é uma declaração de inexistência de fatos impeditivos para a contratação junto ao Ministério da Saúde. A base desses documentos pode ter sido um pedido de visto, do qual se aproveitou assinatura do representante da empresa indiana e carimbo, como mostra o Estadão

A empresa brasileira nega a manipulação. Segundo o UOL, a Precisa pretende apresentar uma perícia sobre os documentos, jogando a culpa das alterações na Envixia, uma empresa dos Emirados Árabes que atuou como ponte entre Índia e Brasil. À CPI, a Precisa já tinha atribuído a autoria das cartas à Envixia.

O dono da Precisa, Francisco Maximiano, e a diretora-executiva da empresa, Emanuela Medrades – que estava “exausta” na CPI – planejam viajar à Índia na próxima quarta-feira (28) para tentar reverter a decisão da Bharat. 

Não seria a primeira vez que uma empresa de Maximiano é suspeita de fraudar documentos. A Global Saúde, sócia da Precisa, é investigada pelo Ministério Público Federal por usar um laudo de avaliação fraudado, num caso que lesou o Postalis, fundo de pensão dos Correios, em R$ 40 milhões.

Diante do comunicado da Bharat, o senador Omar Aziz (PSD-AM), presidente da CPI, indicou que vai pedir que o Supremo reavalie o habeas corpus concedido a Maximiano, que permite que o empresário fique em silêncio no depoimento à CPI, que deve acontecer no início de agosto. Mas, cá entre nós, os últimos acontecimentos só reforçam a tese de que Max é investigado – não uma simples testemunha – e, portanto, tem o direito de não produzir provas contra si. 

O comunicado da Bharat também teve reflexos na Anvisa. No sábado, a agência reguladora  encerrou o processo de autorização temporária de uso emergencial da Covaxin, já que ele foi apresentado pela Precisa. Na sexta, já havia suspendido a autorização para estudos clínicos da Covaxin no Brasil. Os testes não chegaram a acontecer.

ENROLADO

Mais estranhas coincidências ligam Ricardo Barros ao escândalo da Covaxin. Agora, um empresário próximo ao líder do governo na Câmara é apontado como sócio oculto da empresa que forneceu a garantia financeira – irregular, diga-se de passagem – à Precisa Medicamentos no contrato bilionário do imunizante indiano. 

O empresário em questão é Marcos Tolentino. Segundo a Justiça de São Paulo, ele seria sócio oculto de sete empresas – entre elas a FIB Bank Garantias, empreendimento usado pela Precisa para oferecer uma “carta de fiança” no valor de R$ 80,7 milhões ao Ministério da Saúde.

Tolentino, que é dono da Rede Brasil de Televisão, do Paraná, aparece junto de Bolsonaro e Barros no Palácio do Planalto, numa foto publicada pelo próprio deputado em suas redes sociais no último dia 13. Ele também foi levado por Barros a uma reunião no Ministério das Comunicações em 20 de janeiro. Eles não negam que se conhecem “há muitos anos”. 

ABERTO

Na sexta, a Procuradoria da República no Distrito Federal abriu inquérito civil para investigar Roberto Ferreira Dias, ex-diretor de Logística do Ministério da Saúde, que teria pedido propina de 1 dólar por vacina no outro escândalo, que envolve 400 milhões de doses da AstraZeneca. 

FINALMENTE

O Ministério da Saúde finalmente resolveu tirar as grávidas e puérperas que se vacinaram com AstraZeneca do limbo da vacinação. Uma nota técnica da pasta orienta que essas mulheres recebam a segunda dose de outro imunizante, de preferência da Pfizer, que tem estudos de intercambialidade. Se essa vacina não estiver disponível, a pasta autoriza que seja usada a CoronaVac.

O documento foi assinado pela secretária Extraordinária de Enfrentamento à Covid-19, Rosana Leite de Melo, na noite de quinta-feira. A aplicação da vacina da AstraZeneca em grávidas e puérperas foi suspensa, por precaução, pelo Ministério da Saúde em 11 de maio, após o registro da morte de uma grávida do Rio de Janeiro que havia tomado o imunizante. 

DESABASTECIMENTO

Várias capitais zeraram seus estoques de vacinas. Rio de Janeiro, Belém, Campo Grande e João Pessoa tiveram de anunciar a suspensão da administração da primeira dose hoje, atrasando o calendário. O problema também atinge Florianópolis e Maceió que, no entanto, decidiram manter a aplicação da primeira dose para gestantes e puérperas. O Ministério da Saúde informou ontem que 10,2 milhões de doses serão enviadas aos estados esta semana – mas não soube responder o dia exato das remessas, nem as quantidades a serem distribuídas por unidade da federação.

DUROU POUCO

Menos de 24 horas após a 10ª Vara de Fazenda Pública de São Paulo determinar que o governo do estado iniciasse a vacinação de todos os 207 mil detentos de seu sistema prisional, a medida foi revogada. O presidente do Tribunal de Justiça de SP, Geraldo Franco, suspendeu na última sexta a decisão a pedido da Procuradoria. O órgão argumentou que a vacinação da população carcerária está acontecendo junto à da população geral, de acordo com a faixa etária dos detentos. Até o momento, apenas 56 mil presos foram vacinados no estado. A liminar que garantia vacinação imediata de toda a população privada de liberdade em São Paulo foi concedida após ação da Defensoria Pública, que reivindicou a prioridade prevista no Programa Nacional de Imunizações (PNI) a este grupo. 

NAS RUAS

No sábado, todos os estados brasileiros registraram protestos do 24J. Foi mais um dia da série de mobilizações que pede o impeachment de Jair Bolsonaro, mais vacinas e medidas para enfrentamento da crise social – como a geração de empregos e a retomada do auxílio emergencial de R$ 600. Os atos foram embalados pelos acontecimentos da última semana, com destaque para as ameaças à realização das eleições de 2022. 

Além de todas as capitais e cidades do interior do Brasil, houve protestos no exterior. Tóquio, Berlim, Salamanca e Lisboa foram algumas das cidades que ecoaram os gritos de “Fora Bolsonaro” pelo mundo. Segundo apuração do El País, as maiores manifestações foram registradas no Rio de Janeiro, Brasília, Recife e São Paulo. A Frente Ampla, formada por movimentos sociais, partidos políticos e entidades sindicais, calculou oficialmente mais de 500 cidades e cerca de 600 mil pessoas participando dos protestos. 

Na Avenida Paulista, manifestantes fazem menção à suspeita de negociação de propina de 1 dólar por dose da Covaxin. Foto: Elineudo Meira

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