O Presidente está acima da lei? Assim parece advogar a PGR

Por Alfredo Attié, em Direitos Fundamentais

Tenho insistido em não apenas salientar o risco que a permanência do atual governo traz para o Estado Democrático de Direito, mas, sobretudo, em caracterizar, desde o início,[1] o regime que busca impor como regime anticonstitucional.[2]

Essa caracterização também abrange o clima politico e jurídico que engendra, assim como uma série de atos e discursos de apoiadores, na sociedade civil e nas instituições públicas e privadas.

O Presidente da República manifesta-se todos os dias contra a Constituição, ao mesmo tempo em que afirma, de modo hipócrita,[3] que se mantém “dentro de suas quatro linhas” (sic). Seus seguidores seguem a mesma receita, na ação e na omissão. Ministros fazem questão de pregar valores e atitudes anticonstitucionais. Um deles ofendeu o STF, em reunião ministerial e foi alçado a diretor de organismo internacional. Outro, sugeriu “passar a boiada” (sic), outro ainda dirigiu-se diretamente ao Congresso, manifestando sua opinião pelo voto impresso, seguida de ameaça de quebra da ordem constitucional. Houve, ainda, quem pregasse contra a ordem internacional dos direitos humanos, chamando-a de “globalismo” (sic), e quem empregasse normas não recepcionadas pela atual Constituição, para buscar punir liberdade de expressão.

As políticas públicas, os direitos e os deveres atinentes ao trabalho, à seguridade social, que abrange a saúde, ao meio ambiente, ao patrimônio cultural, seu cuidado e preservação, aos direitos humanos e dos vulneráveis e minorias, à erradicação da pobreza, à integração regional americana, sulamericana, latinoamericana, e internacional, para a promoção da paz e da justiça, para o desenvolvimento sustentável, para a proteção das famílias, dos indígenas, dos afrodescendentes, dos gêneros, da ciência, do empreendedorismo, enfim, tudo isso que decorre da Constituição e dos Tratados internacionais, estão em suspensão e postos em xeque, por uma concertação governamental que os nega e os deseja fazer minguar e extinguir.

Esse regime anticonstitucional é, segundo defino, a recusa deliberada em cumprir normas constitucionais, inclusive seus valores e princípios, acompanhada de militante campanha, às vezes aberta e deliberada, outras, dissimulada, contra tais normas e valores. Um regime anticonstitucional se instaura sorrateiramente na ordem politico-jurídica, ou a invade, com a firme intenção de a desmoralizar. Esse regime mantém a letra da Constituição, mas nega seu fundamento e sua eficácia, desejando substituí-la por uma verdade que cria ou copia, cujos fundamentos são diversos, estranhos  e opostos aos que enuncia a Constituição. E faz fincar a eficácia do que faz e deixa de fazer em argumentos que não são aceitos, admitidos, sequer tolerados pela ordem constitucional.

Esse regime anticonstitucional já se apresentou várias vezes na história da política e do direito, especialmente na grave crise de suspensão da ordem politico-jurídica havida no curso do século XX. Ali, ele se pôs como antessala de golpes, regimes autoritários e despóticos, assim auxiliando no engendramento de ordens totalitárias. Serviu também para dar cobertura a violência de Estado, que, em ditaduras abomináveis, perseguiu, censurou, expulsou, prendeu, torturou, sequestrou e matou, sem receio de mentir para esconder a nua crueldade e maquilar seu desprezo pela humanidade.

Ao se colocar, de modo militante e obsessivo, contra a Constituição, esse regime não escolhe apenas adversários de ocasião, mas o próprio povo como antagonista.

Ao fazer pouco caso da Constituição, inclusive, de modo irônico, tentando desfazer-se de seus fundamentos (as “quatro linhas” da pobre metáfora do futebol), ele procura quebrar os liames politicos que a Constituição representa, isto é, os liames de confiança entre os próprios membros da sociedade políica, bem como os que devem existir entre o povo, suas instituições e aqueles que exercem as funções públicas.

A antessala do totalitarismo sempre tem sido a quebra da corrente de representação. Observe-se que, por exemplo, ao ameaçar a eleição e ao pregar desrespeito à eleição, o que se deseja é gerar desconfiança no principal fundamento do princípio democrático, que é a soberania popular. Para que fique mais uma vez bem claro, a Constituição exige que haja representação política e que essa representação somente se legitime pela eleição livre, realizada com periodicidade. Fundamentalmente, a representação somente se legitima pelo voto.

O liame entre o povo e representantes tem seu fundamento na afirmação de que o poder é exercido por pessoas eleitas. Disso decorre o fato simples da vida política de que, quem exerce função pública sem voto, deve cumprir seu dever por meio da obediência irrestrita às leis, criadas por quem recebeu o voto.

E assim se deve compreender a importante função do Ministério Público, cuja atividade, tão prestigiada pelos consituintes, coloca-o como um das chaves-mestras do sistema constitucional brasileiro. A ordem penal depende da ação responsável do Ministério Público, portanto, a própria segurança e mesmo a justiça dependem de sua ação e de seu modo de agir. O mesmo se pode dizer, muito embora em escala mais atenuada, dos interesses coletivos e difusos, que têm na sociedade e nos grupos intermediários sua agência fundamental, mas na atuação responsável complementar do Ministério Público sua garantia efetiva.

Entretanto, duas notícias chamaram a atenção da opinião pública, nos últimos dias. Falam de dois pareceres da Procuradoria-Geral da República, nos quais estariam sendo afirmadas duas questões que supreendem a consideração jurídico-política, porque em confronto com esses princípios e deveres que devem reger a conduta desses que denomino de órgãos da legalidade, para os distinguir dos órgãos da legitimidade pelo voto. Ou seja, aqueles que apenas se devem colocar como a boca que pronuncia a prosa da lei, para recordar, numa tradução mais justa, uma fórmula importante, nos dias atuais olvidada, de um espírito engenhoso. Esses órgãos da legalidade são como seres inanimados, que não podem moderar nem a força nem o rigor da lei, acrescente-se.

Pois bem. No caso, da prisão preventiva de um ex-deputado e ex-condenado criminalmente, o primeiro desses pareceres que referi teria afirmado que não se justificaria a prisão, que passaria por “cerceamento de liberdade de expressão” (sic), e não como prevenção contra ameaças feitas por quem teria exibido armas de fogo e lançado elogios a ditadura e ameaças contra a democracia, inclusive com ofensas a instituições fundamentais do Estado Democrático de Direito. Sobre essa manifestação já teci brevíssimos comentários,[4] frisando seu equívoco ou antilogicidade, por admitir que a ameaça a direitos e garantias pode ser interpretada como liberdade de expressão e porque entende ato de defesa legítima do Estado Democrático de Direito como de cerceamento (censura ou impedimento prévio) de ilícito já cometido.

Mas há um outro parecer, no qual se afirma, em sede de representação pelo cometimento de ato ilícito pelo Presidente da República, que o ato seria atípico, do ponto de vista penal, somente passível de sanção administrativa. Tratava-se a conduta de não apenas provocar aglomeração em meio à pandemia, sem usar máscara de proteção, ainda retirando a máscara de uma criança. Conduta, aliás, que não se perfez de modo autônomo ou com independência em relação a outras atitudes, em verdadeiro ritual negacionista e de pregação contrária a mecanismos de prevenção e de precaução da saúde pública perpetrado pela mesma autoridade do Executivo federal.

A subscritora do parecer teria afirmado, segundo sublinha a imprensa, que “os estudos que existem em torno da eficácia da máscara de proteção são somente observacionais e epidemiológicos,” pelo que seria “equipamento cujo grau de eficácia preventiva permanece indefinido,” ao “não ser possível afirmar que, por si só, deixe realmente de impedir introdução ou propagação da Covid-19”(sic).

Ora, a autoridade em questão não apenas deixou de utilizar máscara, e insinuou a extinção de seu uso, mas tem realizado intensa campanha contra a ciência e as recomendações da Organização Mundial de Saúde e as principais autoridades científicas internacionais, fazendo pouco caso dos estudos sérios a respeito da pandemia, a par de ser responsável pelo atraso considerável no início da vacinação em nosso País – fato, aliás, apurado por Comissão Parlamentar de Inquérito e referido, no conjunto de ações deletérias de alguns líderes politicos extremistas, em publicações importantes internacionais.

Não cabe a jurista algum emitir opinião sobre questão da alçada de outras ciências. No caso, para espanto do povo brasileiro, a opinião referida no parecer parece aderir a uma tese defendida pela própria autoridade representada criminalmente.

Mas não é apenas isso que surpreende, mas igualmente a simplicidade do argumento de que o fato seria um ilícito administrativo. Ora, desde quando o Chefe do Excutivo está autorizado a cometer atos ilícitos administrativos? Ou seja, desde quando ele se pode colocar acima da lei e escolher o que deve ou não cumprir, quais ilícitos pode ou não cometer? Para dar apenas um exemplo recente, o impeachment já foi utilizado, no Brasil, para sancionar um alegado ilícito administrativo, relativo a fato, sem consequências patrimoniais, de adiantamento de ordem de despesas ou de empenho para pagamento de benefícios sociais constitucionais. Ou seja, se houve ilícito administrativo, cometido pelo Presidente, estaríamos diante de hipótese de início de apuração de crime de responsabilidade, com encaminhamento do procedimento à autoridade responsável para dar início ao processo de impeachment (artigos 9º , inciso 7, e 6º, inciso 8, da Lei 1079/50).

Esses fatos, que aqui comentei rapidamente, como cabe em artigo de imprensa, em verdade apontam para o aspecto mais preocupante desse que denomino de regime anticonstitucional, insisto.

A política não se resume a um ato, mas se constitui sempre de um processo, ou seja, atos e discursos encadeados. No caso dos golpes ou rupturas contra a democracia, ocorre o mesmo. Golpes de Estado são processos que começam a se consolidar quando as estruturas de controle, de fiscalização e de defesa do Estado Democrático de Direito se desfuncionalizam, ou seja, deixam de aderir ao modo como a Constituição as concebeu e desenhou.

Os agentes da anticonstitucionalidade querem se arvorar em representantes do Estado, querem um titulo de existência na sociedade politica fora da Constituiçao, assim enquanto forças militares, milicianas, religiosas, de fakenews, de pseudociiência, de falta de conexão democrática e republicana, de irresponsabilidade.

Nós, que acreditamos no processo histórico de constituição do Estado de Direito, da Democracia e dos Direitos humanos, que fazemos cumprir nossos Deveres e lutar pela efetivação das Políticas Públicas, não reconhecemos esses títulos antipolíticos e anticonstitucionais.

[1] Mesmo antes, alertando para os riscos de sua eleição, por exemplo, em seminário organizado por Tapera Taperá. ver em https://www.youtube.com/watch?v=8RnDpgq-nds.

[2] Em artigos, palestras e aulas. Ver, por exemplo, Alfredo Attié. “Síncope na Composição do Espaço Público Brasileiro” in Revista Democracia e Direitos Fundamentais, publicada em 22/06/2020, acessível em  https://direitosfundamentais.org.br/sincope-na-composicao-do-espaco-publico-brasileiro/;  Alfredo Attié. “Anticonstitucionalidade e Antipolítica” in Revista Democracia e Direitos Fundamentais, publicado em 04/08/2021, acessível em https://direitosfundamentais.org.br/anticonstitucionalidade-e-antipolitica/; além de Alfredo Attié. Sistema Político-Jurídico Contemporianeo, aula em Curso de Direito Constitucional Aplicado, publicada em 26/06/2020, acessível em https://www.youtube.com/watch?v=9_9VWJJXc5A). Também é possível consultar Alfredo Attié. Brasil em Tempo Acelerado: Política e Direito. São Paulo: Tirant, 2021.

[3] Hipocrisia é dissimulação, fingimento.

[4] Ver Alfredo Attié. “‘Elogiar a ditadura exibindo armas não é liberdade de expressão, mas ato ilícito’ in Interesse Pe¨blico, Folha/UOL, publicado em 14/08/21, acessível em ”https://blogdofred.blogfolha.uol.com.br/2021/08/14/elogiar-a-ditadura-exibindo-armas-nao-e-liberdade-de-expressao-mas-ato-ilicito/

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