Delegações brasileiras de ativistas negros e indígenas chamam atenção global para o racismo e genocídio nas relações ambientais
Por Luana Melody Brasil, em O Tempo
Desde a primeira semana da COP26, a Conferência das Nações Unidas para as Mudanças Climáticas, a mídia, autoridades e lideranças internacionais têm dedicado atenção a grupos de ativistas brasileiros dos movimentos negro e indígena.
Em Glasgow, na Escócia, e em outros países da Europa, como França, Alemanha e Espanha, ecoaram as denúncias de racismo ambiental e genocídio. “Não existe a possibilidade de debater a crise climática sem falar do racismo ambiental”, sintetiza Douglas Belchior, historiador e cofundador da Uneafro Brasil, além de integrante da Coalizão Negra por Direitos.
Em entrevista à reportagem de O TEMPO na última semana da COP26, prevista para se encerrar neste sábado (13) e com chances de ser prorrogada, o ativista destacou que a participação do movimento negro na COP26 foi “um momento histórico”.
Além da Coalizão Negra por Direitos e Uneafro Brasil, também atuou em Glasgow a delegação da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq).
“No debate climático, esse sempre foi um lugar ocupado, majoritariamente, pelos brancos, o que acreditamos ser um erro. Sabemos quem é mais impactado pela emergência climática: são as populações vulnerabilizadas pelas políticas sociais e econômicas que provocaram desigualdade ao longo da história”, reforça Belchior.
Acompanhando essa perspectiva, Cris Faustino, ativista negra e membro da Rede Brasileira de Justiça Ambiental, classifica a participação dos movimentos sociais negros e indígenas na COP26 como “fantástica”, ainda que ela mesma não estivesse na conferência.
“É uma conquista que deixa a gente bastante orgulhosa. É importante que eles estejam demarcando esses espaços porque implica também que, mesmo com as nossas diferenças, esse assunto não vai retroceder no reconhecimento da dimensão racista das discussões ambientais”, nota Faustino, que também integra a Coordenação Colegiada do Instituto Terramar.
Do que trata o racismo ambiental?
Sendo uma das vozes que há mais tempo denuncia o racismo ambiental no Brasil, Faustino explica que o termo “é pedagógico” diante do processo de racialização dos povos brasileiros desde os tempos da colonização escravocrata. “Nos países colonizados, a formação da sociedade é atravessada por desigualdades, e dentre elas o racismo é fundante e estrutural. Existe fortemente a presença branca em todos os espaços de decisões e ausência preta e indígena nesses mesmos espaços”, reitera Faustino.
“O movimento negro achava que incluir o termo ‘ambiental’ fragmentaria a relevância da luta contra o racismo, mas hoje essa concepção tem mudado, graças às lideranças negras. Não dá mais para tirar de cena”, avalia a ativista.
Segundo Faustino, o racismo ambiental trata das relações de poder que atravessam os danos e degradação ambientais. “Refere-se a quem decide sobre a política e os pactos ambientais, sobre prioridades econômicas, sobre quem e como se pode usar e ocupar os territórios”, explica.
Quando há impactos ambientais, como no caso das mudanças climáticas ou tragédias envolvendo grandes empreendimentos. É o caso, por exemplo, do rompimento das barragens de mineração de Fundão, em Mariana, ocorrido em novembro de 2015, e o de Brumadinho, ambos em Minas Gerais, de propriedade das gigantes da mineração Samarco, Vale e BHP Billiton.
Nesses casos, há um padrão nas populações afetadas: são comunidades majoritariamente negras, indígenas, quilombolas, pesqueiras, catadoras de coco e de sementes, caiçaras, jangadeiras, populações ribeirinhas, marisqueiras, camponesas, entre outras.
“Essas populações não estão representadas nas grandes empresas, nos sistemas de justiça, nos parlamentos, muito menos no alto escalão do Poder Executivo. Isso é muito frágil para a democracia. Os movimentos sociais, sobretudo negros e indígenas, vêm tensionando a democracia”, observa Faustino. “Esses povos são silenciados e são desconsiderados, não têm acesso à informação desde o começo do planejamento de um grande projeto de exploração do território”, acrescenta.
Na perspectiva de Luiz Jardim Wanderley, geógrafo da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e pesquisador do Grupo Pesquisa e Extensão Política, Economia, Mineração Ambiente e Sociedade (POEMAS), o racismo ambiental se aplica aos desastres naturais, como enchentes, porque “afetam mais negros do que brancos, mais pobres do que ricos”.
“No caso do Rio de Janeiro, por exemplo, as favelas desmoronam. As áreas de alagamento têm as populações mais pobres, que precisam ser removidas”, exemplifica.
Wanderley vem estudando o racismo ambiental entre as consequências do desastre da barragem de Fundão, em Mariana. Ele nota que os dados públicos sobre desastres naturais e criminosos não trazem um recorte racial.
“É uma novidade considerar que há grupos particulares, como negros e indígenas, que sofrem mais com esses desastres. O racismo ambiental tem sido incorporado para mostrar que as mudanças climáticas não afetam a sociedade igualmente, de forma homogênea. Há grupos sobre quem recaem os danos dos modos de produção atuais”, reforça o pesquisador.
Segundo Belchior, o racismo ambiental vem chamando mais a atenção do mundo, e contou com o reforço da visibilidade das discussões sobre o clima sediadas no Reino Unido.
“O que acontece nesta COP é apenas um tempero, um primeiro passo, pois é fato que ainda somos minoria dentro deste evento. Mas precisamos relembrar que somos 56% da população brasileira. Nós falamos pela maioria. Então, demos um importante passo sobre nossa participação neste debate para nas próximas vezes, participarmos ainda mais”, promete o historiador.
Proteção aos guardiães da natureza
“Como disse o poeta José Carlos Limeira, estamos fazendo Palmares de novo. E nada mais importante do que o cuidado da terra para isso. Os quilombos eram um lugar de produzir vida, inclusive a partir da terra, ter autonomia sobre o que queremos comer e como viver”, destaca Belchior.
Nessa mesma linha histórica, Faustino nota que são principalmente as comunidades vitimadas pelo racismo ambiental que resguardam a sabedoria e os conhecimentos para melhorar as condições de vida no planeta.
“Mesmo que elas não se considerem ambientalistas, elas estão nessa luta de preservação do meio ambiente há muito tempo. Existe uma centralidade da participação desses povos na construção do novo. Se não tiver um reconhecimento da importância desses povos, do conhecimento e sabedoria que eles têm nas relações que estabelecem com a natureza, não tem como interromper esse processo autodestrutivo”, enfatiza a ativista.
De acordo com Belchior, os efeitos das discussões e denúncias feitas ao encontro global da Conferência da ONU vão seguir reverberando no retorno ao Brasil. “Estamos formulando uma série de ações a partir de agora. O próximo ano é muito importante para nós no Brasil. O tema climático tem que ser assunto eleitoral e faremos um trabalho permanente para isso”, anuncia.
Quando questionado sobre a receptividade internacional para a denúncia de racismo ambiental, Belchior não titubeia: “Por onde passamos na Europa fomos extremamente bem recebidos”, realçando a diferença no tratamento recebido por autoridades brasileiras no exterior, e sobretudo pelo próprio chefe do Executivo, que segundo o vice-presidente Hamilton Mourão, evitou ir a Glasgow porque “todo mundo vai jogar pedra nele”.
Denúncia de genocídio dos povos indígenas
Embora tratem de assuntos sensíveis e dolorosos para quem convive com as consequências do racismo ambiental e do genocídio, os ativistas negros e indígenas brasileiros não renunciaram à generosidade com celebridades, lideranças políticas e outros ativistas estrangeiros que os ocuparam na Europa com sessões de fotos e convites de viagens.
A COP26 recebeu a maior delegação de povos originários brasileiros da história da Conferência da ONU, com 40 indígenas. Como reportagem de O TEMPO mostrou no início do evento, a delegação expôs ao mundo a denúncia do genocídio cometido pelo governo do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) durante a pandemia do coronavírus.
Além disso, os indígenas argumentam que a demarcação de terras dos povos originários é uma das soluções para a crise climática do planeta. Um dos discursos realizados no evento que mais viralizou no Brasil e no mundo foi o da ativista do povo Paiter Suruí, Txai Suruí. “A Terra está falando. Ela nos diz que não temos mais tempo”, diz um trecho do discurso.
“Precisamos tomar outro caminho com mudanças corajosas e globais. Não é 2030 ou 2050, é agora!”, enfatiza a jovem influenciadora indígena. “Os povos indígenas estão na linha de frente da emergência climática, por isso devemos estar no centro das decisões que acontecem aqui. Nós temos ideias para adiar o fim do mundo”, aconselha. Confira o discurso na íntegra:
Compartilhar o discurso de ontem aqui com vocês:
— txai suruí #MarcoTemporalNão (@walela15) November 2, 2021
Meu nome é Txai Suruí, eu tenho só 24, mas meu povo vive há pelo menos 6 mil anos na floresta Amazônica. Meu pai, o grande cacique Almir Suruí me ensinou que devemos ouvir as estrelas, a Lua, o vento, os animais e as árvores.
–
A quilombola e marisqueira Eliete Paraguassu, de Ilha de Maré, Salvador, Bahia, foi a única brasileira a discursar no evento pela Ação Climática em Paris. © Paloma Varón /RFI