Denúncia da Convenção 169 da OIT pelo Brasil é inconstitucional, inválida e inócua, afirma MPF em nota técnica

Documento visa a subsidiar deliberação dos congressistas quanto ao Projeto de Decreto Legislativo 177/2021, em trâmite na Câmara dos Deputados

O Ministério Público Federal (MPF) enviou ao Congresso Nacional, nesta quarta-feira (17), nota técnica contrária ao Projeto de Decreto Legislativo (PDL) 177/2021, que visa a autorizar o presidente da República a denunciar a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) sobre Povos Indígenas e Tribais. A denúncia representa, na prática, a retirada do Brasil do tratado internacional que assegura o direito dessas populações à consulta prévia, livre e informada sobre quaisquer medidas que as afetem. O documento, elaborado pela Câmara de Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais do MPF (6CCR/MPF), alerta para as inconsistências e para a invalidade da proposta de denúncia.

O MPF defende que a Convenção 169 da OIT não pode ser validamente denunciada pelo Estado brasileiro sem a presença de outra norma mais protetiva dos povos e comunidades tradicionais e de abrangência internacional. Aponta ainda que a iniciativa contradiz as determinações da Constituição de 1988 e viola o princípio da vedação do retrocesso, que caracteriza o regime jurídico dos direitos fundamentais em geral. Segundo o órgão, “a denúncia deve fazer-se necessariamente em prol – jamais em prejuízo – dos povos e comunidades tradicionais”.

A nota técnica ressalta que a denúncia da Convenção 169 contraria diversos compromissos internacionais assumidos pelo Brasil, demonstrando “incoerência no comportamento do país no cenário mundial”. A atitude vai na contramão de todo um microssistema internacional de proteção aos povos e comunidades tradicionais, composto de tratados, interpretações oficiais e jurisprudência das cortes internacionais. Para o MPF, além de incoerente, a denúncia seria parcialmente inútil, pois há outras normas que garantem o direito à consulta e à participação dessas populações nos processos de seu interesse.

A imprescindibilidade da consulta prévia, livre e informada sobre ações e empreendimentos que impactem terras de indígenas e outras comunidades tradicionais também já foi reconhecida pelo Poder Judiciário brasileiro. Na avaliação do MPF, o procedimento ganhou estatura constitucional quando o Congresso Nacional assegurou a participação da sociedade nos processos de formulação, monitoramento, controle e avaliação das políticas sociais, por meio da Emenda Constitucional 108/2020.

Requisitos

O MPF argumenta que eventual denúncia da Convenção 169 da OIT requer o cumprimento de uma série de formalidades, o que não se verifica no caso brasileiro. A norma internacional estabelece que um Estado-membro somente pode efetuar a denúncia e retirar-se do tratado após dez anos da sua adesão. No caso do Brasil, há divergências quanto a essa contagem do prazo. Isso porque a medida foi aprovada pelo Congresso em 2002, mas a promulgação, por meio de decreto, ocorreu somente em 2004. Mas, em 2019, esse decreto foi expressamente revogado e renovado por outro, o que levaria a uma nova contagem e postergaria a possibilidade de denúncia. Além disso, como a denúncia da Convenção 169 afeta diretamente os povos e comunidades tradicionais, o MPF entende que é imprescindível que eles sejam consultados sobre o tema, sob pena de tornar o ato inválido.

A nota técnica pontua, por fim, que a defesa de normas que visem a proteção dessas populações ganha ainda mais relevância no contexto de pandemia da covid-19. Como já reconheceu o Supremo Tribunal Federal (STF), a vulnerabilidade dos povos indígenas e comunidades quilombolas foi agravada no período. Nesse contexto, o MPF considera que “a denúncia da Convenção 169 da OIT implica um atentado a pessoas e grupos particularmente fragilizados da sociedade brasileira, vítimas contínuas da opressão histórica”.

Íntegra da Nota Técnica (também abaixo)

Secretaria de Comunicação Social
Procuradoria-Geral da República

***

NOTA TÉCNICA – PROJETO DE DECRETO LEGISLATIVO 177/2021 (DENÚNCIA DA CONVENÇÃO 169 DA OIT)

Introdução

Está em tramitação no Congresso Nacional (inicialmente na Câmara dos Deputados) o Projeto de Decreto Legislativo 177/2021, de autoria do Deputado Federal Alceu Moreira, para autorizar o Presidente da República a denunciar a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) sobre Povos Indígenas e Tribais.

A 6ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal elaborou a presente nota técnica com o objetivo de subsidiar a deliberação dos congressistas, alertando para as inconsistências e para a invalidade da proposta de denúncia.

Conformidade constitucional da Convenção 169 OIT e vedação de retrocesso

A Convenção 169 da OIT não pode ser validamente denunciada pelo Estado brasileiro sem a presença de outra norma que a supere. Tal superação deve verificar-se sob o aspecto substancial e espacial. Somente se houver outra norma mais protetiva dos povos e comunidades tradicionais (“povos indígenas e tribais”, na linguagem da Convenção 169 da OIT) e de abrangência internacional, poder-se-á cogitar de eventual denúncia.

Os direitos veiculados pela Convenção 169 da OIT, como ocorre com a auto-identificação e com o direito à consulta dos povos e comunidades tradicionais, derivam do direito à própria existência enquanto povo e comunidade (o “direito de ser povo”, na expressão de Carlos Frederico Marés de Souza Filho), que é prévio à Convenção 169 da OIT e dela constitutivo. Trata-se de um princípio geral do Direito, constante logo no art. 1º do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos da Organização das Nações Unidas e enfaticamente retomado, com certa especificidade, no art. 47: “Nenhuma disposição do presente Pacto poderá ser interpretada em detrimento do direito inerente a todos os povos de desfrutar e utilizar plena e livremente suas riquezas e seus recursos naturais.”

Diversos mandamentos da Constituição brasileira de 1988 têm relação com a Convenção 169 da OIT, como a erradicação da marginalização, a redução das desigualdades e a vedação de qualquer forma de discriminação (art. 3º, III e IV); a autodeterminação dos povos (art. 4º, III); o direito de propriedade (art. 5º, XXII); a proteção às manifestações das culturas populares, indígenas, afro-brasileiras e de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional (art. 215, § 1º); os direitos dos índios (art. 231) e dos remanescentes das comunidades de quilombos (art. 68 ADCT). Afinal, a Convenção 169 da OIT está “em absoluta consonância com o modelo de sociedade idealizado pela Constituição da República de 1988, que consagra o pluralismo político como fundamento do Estado Democrático de Direito”.1

A Convenção 169 não apenas corresponde a esses dispositivos constitucionais, como os desenvolve. Por isso, a denúncia da Convenção 169 da OIT contradiz as determinações da Constituição brasileira e, como ato normativo estampado em decreto legislativo, incide em inconstitucionalidade material. Ao mesmo tempo, a denúncia provoca uma lacuna normativa que deixa menos protegidos os povos e comunidades tradicionais, enfraquecendo-lhes os direitos fundamentais e, desse modo, violando o princípio da vedação do retrocesso que caracteriza o regime jurídico dos direitos fundamentais em geral.

É sob esse prisma que deve ser interpretada a possibilidade de denúncia, expressamente prevista no art. 39 da Convenção 169 da OIT: somente quando a Convenção viesse a mostrar-se um obstáculo à promoção e proteção dos povos e comunidades tradicionais, ou seja, a denúncia deve fazer-se necessariamente em prol – jamais em prejuízo – dos povos e comunidades tradicionais (denúncia-avanço e nunca denúncia-retrocesso, como no caso). Ocorre que a Convenção 169 é dotada de plena atualidade, sendo amplamente festejada e aplicada. Em muitos lugares, inclusive no Brasil, a despeito de seu sucesso, ela ainda está em processo de divulgação e compreensão ao público em geral.

Portanto, longe de configurar um óbice, a Convenção representa um importante instrumento de esclarecimento e reivindicação de direitos, não apenas para os povos e comunidades tradicionais.

A Convenção 169 da OIT também é um importante instrumento de governança e implantação de políticas públicas para o Governo, que nela tem o mais completo guia de como relacionar-se adequadamente com esses grupos formadores da sociedade brasileira.

A vedação de retrocesso firma-se como princípio também na ordem internacional.2

O retrocesso representado pelo Projeto de Decreto Legislativo 177/2021 resta ainda mais evidente quando contemplado no contexto de deliberadas fragilizações nos campos das identidades, das culturas e do meio ambiente3, perpetradas pelo atual Governo federal. A discussão da denúncia à Convenção 169 da OIT soa ainda mais inoportuna diante de tantos outros descumprimentos e omissões que afetam os povos e comunidades tradicionais, como em relação à demarcação de terras e ao acesso a bens e serviços públicos.

Um argumento definitivo para a conformidade constitucional da Convenção 169 da OIT e para a inviabilidade jurídica de sua denúncia está em que ela veicula diversos direitos fundamentais aos povos e comunidades tradicionais tanto em sua dimensão coletiva, quanto a cada um de seus membros (conforme menções da Convenção aos “membros desses povos” e a seus “direitos humanos e liberdades fundamentais”). Qualquer alteração “tendente a abolir (…) os direitos e garantias individuais” é terminantemente vedada por ferir as “cláusulas pétreas” da Constituição brasileira (art. 60, § 4º, IV): nem emenda constitucional, nem qualquer outra espécie legislativa – como é o decreto legislativo – são admitidas.

Compromisso internacional e coerência

Rege-se o Brasil, em suas relações internacionais, pela prevalência dos direitos humanos em geral (Constituição, art. 4º, II) e, em especial, pela autodeterminação dos povos (art. 4º, III) e pelo repúdio ao racismo (art. 4º, VIII, final). A Convenção 169 da OIT corresponde a esses preceitos e concretiza o engajamento do país no conjunto das nações.

Quanto ao racismo, de que costumam ser vítimas os povos e comunidades tradicionais, o Brasil aprovou e promulgou recentemente – com algum atraso – a importante Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância (sendo que já havia sido promulgada, em 1969, a Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial). Houve, assim, mais uma manifestação oficial de “autodenúncia de racismo” – no sentido de assunção de responsabilidade – por parte do Estado brasileiro. A denúncia – no sentido de retirada – da Convenção 169 da OIT iria na contramão dos reforçados compromissos internacionais assumidos pelo Brasil e caracterizaria, além da ilicitude, uma vergonhosa incoerência no comportamento do país no cenário mundial.

A incoerência é manifesta ao considerar-se a existência de todo um microssistema internacional de proteção aos povos e comunidades tradicionais, composto de diversos tratados (de proteção contra o racismo, contra a discriminação das mulheres, de proteção à natureza e ao patrimônio cultural etc.), de interpretações oficiais (como é o caso do Comentário Geral nº 23 do Comitê de Direitos Humanos da ONU, ao art. 27 – sobre os direitos das minorias – do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, e do Comentário Geral nº 21 do Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da ONU, ao art. 15.1.a – sobre o direito de todos participarem da vida cultural), bem como de jurisprudência das cortes internacionais (por exemplo, o Caso do Povo Saramaka Vs. Suriname, de 2007, em que a Corte Interamericana de Direitos Humanos reconheceu ao povo indígena não apenas o direito de ser consultado, mas eventualmente o de conferir consentimento livre, prévio e informado; percebe-se que o consentimento consolida-se como “jus cogens” internacional).

Assim, a denúncia da Convenção 169 da OIT é incoerente por contrariar diversos tratados a que o Brasil se vincula e seria parcialmente inútil por subsistirem outras normas de proteção dos povos e comunidades tradicionais.

Não se deve olvidar que a Convenção 169 inscreve-se no ambiente da Organização Internacional do Trabalho, à qual o Brasil tradicionalmente se vincula. As relações de trabalho recebem uma atenção particular da Constituição de 1988, que consagra o valor social do trabalho como fundamento da República (art. 3º, IV), o trabalho como direito social fundamental (arts. 6º e 7º) e a valorização do trabalho como fundamento da ordem econômica (art. 170). Ademais, a OIT goza de um alto grau de democraticidade, “graças a sua peculiar estrutura tripartite, na qual as delegações dos Estados devem contar com um representante dos trabalhadores, um representante dos empregadores, além do representante governamental”.4

Sem justificativa para o enfraquecimento da situação jurídica dos povos e comunidades tradicionais e em contraposição aos compromissos internacionais assumidos pelo Brasil, a denúncia da Convenção 169 da OIT não cabe na discricionariedade dos Poderes Legislativo e Executivo. Eventual autorização que fosse conferida por meio de decreto legislativo seria inválida e não teria o condão de vincular o Presidente da República, que está juridicamente compelido a dar cumprimento à Convenção.

Formalidades para a denúncia não verificadas

A própria Convenção 169 da OIT prevê um procedimento rigoroso para a denúncia, com requisitos temporais explícitos. Com efeito, dispõe o art. 39 que um Estado membro convenente poderá efetuar a denúncia “após a expiração de um período de dez anos contados da entrada em vigor”, tendo um ano para tanto, renovando-se o período decenal se não ocorrer a denúncia. A iniciativa do Projeto de Decreto Legislativo 177/2021 inspira-se nesse contexto temporal, porém a contagem do prazo é polêmica.

Para o Brasil, a Convenção 169 da OIT, após aprovação pelo Congresso Nacional (Decreto Legislativo 143, de 20 de junho de 2002), teve o instrumento de ratificação depositado em 25 de julho desse ano e, nos termos de seu art. 38.3, entrou em vigor doze meses depois, em 25 de julho de 2003. Nessa conta, a denúncia poderia ocorrer, passados vinte anos, no intervalo de um ano, ou seja, entre 26 de julho de 2023 e 25 de julho de 2024. A promulgação tardia da Convenção 169 da OIT, por meio do Decreto 5.051, de 19 de abril de 2004, não interfere na validade internacional, a menos que se considere a integração de vontade do Presidente da República como necessária, o que faria com que o período de denúncia fosse de 20 de abril de 2024 a 19 de abril de 2025. Por último, esse decreto de promulgação da Convenção foi expressamente revogado – e renovado – pelo Decreto 10.088, de 5 de novembro de 2019 (art. 2º, LXXII), o que levaria a uma nova contagem, com o período de denúncia postergado para o longínquo 6 de novembro de 2029 a 5 de novembro de 2030.

Além da questão da data, há um sério problema reflexivo em relação à denúncia da Convenção 169 da OIT. Eventual denúncia afetaria diretamente os interesses dos povos e comunidades tradicionais e a Convenção estabelece a imperiosa necessidade de consulta prévia, livre e informada sempre que uma medida afetar os interesses desses povos e comunidades (art. 6º). Assim, por imperativo lógico, a denúncia não prescinde da necessária consulta aos povos e comunidades tradicionais, sem a qual careceria de validade. Por conseguinte, caso pudessem ser superados os demais óbices formais e materiais que o Projeto de Decreto Legislativo 177/2021, de modo intransponível, acarreta, ainda assim a Convenção 169 da OIT jamais poderia ser denunciada sem que houvesse uma consulta prévia, livre e informada a respeito.

A importância fundamental da Convenção 169 da OIT e a consulta prévia, livre e informada

É certo que a Convenção 169 da OIT não está sozinha e forma hoje um quadro normativo bastante diversificado, composto de outras normas internacionais e internas, de jurisprudência e de doutrina. A supressão da Convenção 169 da OIT não deixaria os povos e comunidades tradicionais totalmente desguarnecidos, seja perante o ordenamento jurídico brasileiro, seja perante o internacional.

Um dos pontos mais importantes da Convenção 169 da OIT refere-se à consulta prévia, livre e informada como mecanismo de participação efetiva dos povos e comunidades tradicionais nos assuntos que lhes digam respeito. Essa modalidade democrática de contemplação de grupos não-hegemônicos (“minorias”) já está entronizada na prática jurídica e não depende mais apenas da Convenção. A propósito, o asseguramento do consentimento prévio informado em relação ao conhecimento tradicional associado está previsto na Lei 13.123/2015. O Tribunal Federal da 1ª Região tem jurisprudência que afirma a imprescindibilidade da consulta prévia, livre e informada quando são impactadas as terras de indígenas e outras comunidades tradicionais.5 Importa, no plano prático, conferir à consulta prévia, livre e informada uma operacionalização emancipatória. De modo geral, pode-se afirmar que a consulta ganhou estatura constitucional quando o Congresso Nacional assegurou “a participação da sociedade nos processos de formulação, de monitoramento, de controle e de avaliação” das políticas sociais, conforme a redação conferida ao art. 193, parágrafo único, da Constituição, pela Emenda Constitucional 108/2020.

O argumento serve para apontar a inocuidade da denúncia à Convenção 169 da OIT e o desgaste político desnecessário dessa discussão. Não se pode aceitar, porém, que a Convenção se tenha tornado supérflua, como sustenta a infeliz justificativa do Projeto de Decreto Legislativo 177/2021. Ao contrário, esse projeto que é ineficaz, pois não conseguirá alcançar os resultados alvitrados, visto que, por exemplo, não afetará a necessidade de consulta aos povos e comunidades tradicionais concernentes, tampouco o autorreconhecimento como critério básico de identificação, o que já é determinado por diversas outras normas como o art. 1º, parágrafo único, IV, da Lei 12.288/2010 – Estatuto da Igualdade Racial; o art. 3º da Lei 12.711/2012 – “sobre o ingresso nas universidades federais e nas instituições federais de ensino técnico de nível médio”, e o art. 2º da Lei 12.990/2014 – sobre reserva de vagas a negros “nos concursos públicos para provimento de cargos efetivos e empregos públicos no âmbito da administração pública federal, das autarquias, das fundações públicas, das empresas públicas e das sociedades de economia mista controladas pela União”; o autorreconhecimento foi validado pelo Supremo Tribunal Federal na ADPF 186/DF (rel. Min. Ricardo Lewandowski, 26/04/2012), na ADC 41/DF (rel. Min. Roberto Barroso, 08/06/2017) e na ADI 3239/DF (red. p/ acórdão Min. Rosa Weber, 08/02/2018).

A Convenção 169 da OIT ainda é uma legislação muito atual e importante, cobrindo sistematicamente diversos aspectos, sendo talvez a mais detalhada no tocante aos povos e comunidades tradicionais.

Como marco normativo, a Convenção 169 da OIT promove a alteridade e se abre à “epistemologia do outro”. Justamente por promover o diálogo entre culturas, a Convenção 169 não é supérflua. Não se trata de uma concessão, sob a lógica colonialista do Direito formal, mas de uma conquista dos povos e comunidades tradicionais em face do Poder Público, eis que não há mais tutela: a democracia não tolera que o Estado se imponha sobre os povos6 e sim que os povos se imponham e constituam o Estado. A Convenção 169 da OIT inscreve-se no movimento anti e decolonialista. O Projeto de Decreto Legislativo 177/2021 caminha na contramão do modelo emancipatório trazido – em perfeita sintonia com a Constituição de 1988 – pela Convenção 169 da OIT, pois pretende voltar ao ultrapassado paradigma do assimilacionismo. A justificativa do PDL 177/2021 menciona um “projeto de crescimento do Brasil” completamente apartado de um desenvolvimento integral, que por sua vez não prescinde de sua dimensão humana. Ocorre que a garantia de desenvolvimento nacional, prevista no art. 3º, inciso II, da Constituição brasileira7, só pode ser compreendida em harmonia com os demais objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, de construção de uma sociedade livre, justa e solidária (inciso I), de erradicação da pobreza e da marginalização, de redução das desigualdades sociais e regionais (inciso III), e de promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (inciso IV). A Convenção 169 da OIT contribui enormemente para a consecução de tais objetivos.

Como poderoso mecanismo legal de proteção na perspectiva intercultural8, a Convenção 169 da OIT guarda uma posição fundante em relação a diversos outros diplomas legais e sua denúncia repercute negativamente sobre as demais normas. O princípio da proibição do retrocesso pode ser invocado, uma vez mais, para objetar a denúncia em face do vasto arcabouço legislativo existente a tratar de povos e comunidades tradicionais.

Dentre os notórios desdobramentos da Convenção 169 da OIT no âmbito normativo interno, merece ser citada a Resolução 230/2021 do Conselho Nacional do Ministério Público, que “disciplina a atuação do Ministério Público brasileiro junto aos povos e comunidades tradicionais”. Medidas como essa, que se referem à atuação das funções essenciais à Justiça, reforçam a higidez da Convenção 169 da OIT e o descabimento de sua denúncia. O abandono da Convenção trará prejuízos sensíveis e concretos em relação aos povos e comunidades em geral, eventualmente não especificados em outros diplomas legais (que se reportam expressamente a índios e quilombolas, por exemplo), sendo que o Ministério Público não mais contaria com esse importante instrumento jurídico para sua atuação.

Também deve ser lembrado que se encontra pendente de ratificação, em nosso país, o Acordo Regional de Escazú sobre Acesso à Informação, Participação Pública e Acesso à Justiça em Assuntos Ambientais na América Latina e Caribe, o qual entrou em vigor, no plano internacional, em 22 de abril de 2021. O Acordo foi firmado pelo Brasil logo que aberta sua assinatura aos Estados-partes, em 27 de setembro de 2018, e o fato de ainda não ter sido internalizado – mediante os procedimentos de aprovação pelo Congresso Nacional, com a subsequente edição de decreto legislativo e promulgação em decreto presidencial – não exime o país de suas obrigações no plano internacional, mormente em tema de vedação do retrocesso. Ocorre que, quando afetados povos indígenas e demais povos e comunidades tradicionais, o direito à informação adequada – que é um dos objetivos do Acordo de Escazú – conecta-se com o direito à consulta prévia, livre e informada. Tanto no regramento específico trazido pela Convenção 169 da OIT, como naquele previsto no Acordo de Escazú, por exemplo, a informação deve ser prévia, permitindo que os povos e comunidades tradicionais consultados deliberem a partir do conhecimento do conjunto de informações existentes, sem o que a consulta não atenderá ao pressuposto da boa-fé.9

Povos e comunidades tradicionais: situação de vulnerabilidade

A universalidade dos direitos fundamentais potencializa a atenção que merecem as pessoas e grupos em situação de vulnerabilidade. Com efeito, ainda que os direitos fundamentais contemplem todos, são as situações de vulnerabilidade que suscitam a afirmação de tais direitos e desafiam-lhes a implementação. 10

Povos e comunidades tradicionais costumam encontrar-se em situações de especial vulnerabilidade e a Convenção 169 da OIT busca justamente socorrê-los em face das fragilidades e contingências provocadas pela sociedade hegemônica. O Supremo Tribunal Federal ainda recentemente reconheceu a vulnerabilidade agravada dos povos indígenas e comunidades quilombolas em relação à pandemia de Covid-19 (ADPF 709/DF MC, rel. Min. Roberto Barroso, 03/08/202011; ADPF 742/DF, red. p/ acórdão Min. Edson Fachin, 24/02/2021).

A denúncia da Convenção 169 da OIT implica um atentado a pessoas e grupos particularmente fragilizados da sociedade brasileira, vítimas contínuas da opressão histórica (a propósito, veja-se o “Relatório Figueiredo” sobre violência aos índios na ditadura militar instaurada em 196412). A fragilidade qualifica a violação aos direitos fundamentais dos povos e comunidades tradicionais e, na medida em que impacta desproporcionalmente pessoas e grupos em situação de vulnerabilidade, atenta contra o princípio da igualdade.

Essas ponderadas razões jurídicas recomendam a rejeição ao Projeto de Decreto Legislativo 177/2021.

Brasília, na data da assinatura digital

ELIANA PERES TORELLY DE CARVALHO
Subprocuradora-Geral da República
Coordenadora da 6ªCCR/MPF

MARIA LUIZA GRABNER
Procuradora Regional da República
Coordenadora do GT Quilombos – 6ªCCR/MPF

WALTER CLAUDIUS ROTHENBURG
Procurador Regional da República
Membro do GT Quilombos – 6ªCCR/MPF

WILSON ROCHA FERNANDES ASSIS
Procurador da República
Coordenador do GT Povos e Comunidades Tradicionais – 6ªCCR/MPF

Notas:

  1. Nota técnica da Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR) e da Associação Nacional dosProcuradores e das Procuradoras do Trabalho (ANPT), de 20/07/2021.
  2. RAMOS, André de Carvalho. Curso de direitos humanos. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2018, p. 103.
  3. Veja-se o Projeto de Lei 2001/2019, que estabelece uma série de restrições às unidades de conservação dedomínio público em função da desapropriação e indenização de propriedades privadas.
  4. Curso de direitos humanos. 5. ed. São Paulo: Saraiva, p. 294.
  5. Exemplo: Apelação cível 0002556-15.2003.4.01.4200, 5ª Turma, rel. Desembargador Federal Souza https://pje2g.trf1.jus.br/consultapublica/ConsultaPublica/DetalheProcessoConsultaPublica/documentoSemLoginHTML.seam?ca=ff58093f50143a097890d7957d4c194b3fd7544414860c041f06cefa3774f10c38f745679188c50c45e3c896637f8b2d7ad66b8b1e3b758f&idProcessoDoc=107471551. Acesso em 14 set. 2021.
  6. SOUZA Filho, Carlos Frederico Marés de. O renascer dos povos indígenas para o direito. Curitiba: Juruá, 2002, p. 78.
  7. No mesmo sentido: MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Não é interesse do Brasil denunciar a Convenção 169 da OIT. RDnews – portal de notícias de MT. 05 mai 2021. In: https://www.rdnews.com.br/artigos/conteudos/143901. Acesso em: 14 set. 2021.
  8. ARAUJO JUNIOR, Julio José. Direitos territoriais indígenas: uma interpretação intercultural. Rio de janeiro: Processo, 2018, p. 78-88.
  9. DIAS NETTO JUNIOR, Edmundo Antonio. O Acordo de Escazú e nossa democracia socioambiental nãorealizada. Jota, 28 out. 2018. Disponível em: <https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/acordo-deescazu-e-nossa-democracia-socioambiental-nao-realizada-28102018>. Acesso em: 26 set. 2021.
  10. ROTHENBURG, Walter Claudius. Direitos sociais são direitos fundamentais: simples assim. Salvador: Juspodivm, 2021, p. 259 et seq.
  11. ARAUJO JUNIOR, Julio José. ADPF 709: a voz indígena contra o genocídio. Jota, São Paulo, 08 jul. 2020. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/adpf-709-a-voz-indigena-contra-o-genocidio08072020. Acesso em: 14 set. 2021.
  12. https://midia.mpf.mp.br/6ccr/relatorio-figueiredo/relatorio-figueiredo.pdf. Acesso em: 13 set. 2021.

Arte: Ascom MPF PA

Deixe um comentário

O comentário deve ter seu nome e sobrenome. O e-mail é necessário, mas não será publicado.

dezenove − onze =